O Mestre (The Master), de Paul Thomas Anderson (EUA, 2012)

abril 8, 2013 em Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira

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A nostalgia de um amor perdido
por Pedro Henrique Ferreira

A primeira imagem de O Mestre é um plongèe das águas em movimento de algum local que desconhecemos. Mais adiante, esta imagem será retomada. Ela não será associada diretamente a qualquer outra que sugira uma continuidade de espaço ou tempo. É uma espécie de pequeno leitmotif cujo sentido nos escapa. As águas correm. O que é possível se afirmar além disto? A segunda é o rosto de um soldado encoberto por uma mureta. Ele pisca, olha em volta, mas não temos ideia de onde ele está. O fundo é desfocado, de forma que o contexto deste close-up não nos seja revelado. Curiosamente, é o único momento que Freddie Quell (Joaquim Phoenix) usa um capacete, e provavelmente a única imagem que presencia a guerra. É possível olhar para esta única imagem e acreditar que houve uma guerra mundial?

Nestas duas imagens está o germe da estratégia estética que Paul Thomas Anderson utilizará para dar forma a um drama: um processo radical de rarefação, erguendo a narrativa por poucos fragmentos de cada situação. Há uma guerra acontecendo, mas o que vemos é um primeiro plano de um soldado olhando ao redor. Há uma viagem de navio, mas o que vemos é a água fluindo. Há o fim de uma guerra sendo narrado em um rádio, mas o que vemos é o marinheiro roubando gasolina de uma garagem para se embriagar. Em vez de usar estas imagens para representar um contexto, isto é, para colocá-las em uma rede que lhes dê um sentido maior, o diretor não permite que elas sirvam de vergôntea para outra coisa, criando uma espécie de curto-circuito. É justamente este procedimento que, na junção de duas imagens, dá à obra a sua aparência elíptica, desconexa, enigmática.

Mas e se acreditarmos que a imagem é efetivamente mais do que ela é? Que o close-up de um soldado em um local pouco esclarecido representa toda uma classe e um momento histórico específico. Que uma mistura de álcool com água de coco representa as sequelas que eles adquiriram com a exposição à guerra. Que um corpo esculpido na areia, na ausência de um corpo real, pode substituí-lo. Ou na metáfora que O Mestre utilizará mais adiante: é possível tocar uma parede e sentir mais do que madeira, uma janela e sentir mais do que vidro? A operação do diretor consiste justamente em confrontar estes dois processos conflitantes, um que se prende a um aspecto único e imediato das coisas, e outro que as utiliza para realizar um pequeno grande salto e inserí-la em um contexto que não está lá. Trata-se de explorar as tensões e simbioses possíveis entre estes dois pólos contrários – o que vemos em uma imagem é um rosto ou é a guerra? É a água ou uma travessia? O vidro ou o que está do outro lado da janela?

Neste confronto entre aquilo que temos à mão e o que podemos projetar estar lá é que O Mestre encontra esta tensão formal que se igualará ao drama da figura central do longa-metragem – um ex-militar que retorna da guerra cheio de sequelas emocionais, tendo dificuldades de se adaptar à sua nova condição na sociedade. Em um texto datado de 1936 (“O Narrador”), Walter Benjamin observava que, ao retornar da primeira grande guerra, os veteranos voltaram incapazes de narrar o que vivenciaram, por causa de suas experiências traumáticas. Ora, mesmo que o primeiro ato de O Mestre exponha o quão deslocado e sem rumo se encontra uma figura sequelada como Freddie, noção perfeitamente sintetizada no impressionante travelling que acompanha o personagem central fugindo de um grupo de camponeses em uma grande plantação, o que se faz notável é como Paul Thomas Anderson irá verter as causas: o trauma da guerra se torna um amor interrompido, nunca consumado, que em seguida, já nos anos 1950, não poderá ser retomado.

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Esta oposição começa a se tornar evidente a partir do momento em que o veterano de guerra diz enxergar órgãos sexuais quando lhe mostram figuras abstratas em uma sessão de análise. A anunciada perversão sexual fica exposta, e, logo em seguida, quando o veterano diz ter nostalgia de um amor perdido, fica clara esta dualidade pela qual O Mestre operará – de um lado está o órgão sexual, e do outro o amor. Diante de uma imagem abstrata, sem nuanças que a liguem a algo exatamente palpável, o veterano de guerra enxerga nela um órgão sexual. É um rastro do que é o seu filtro primeiro no mundo, em uma caracterização que apesar da notável diferença de tom, nos lembra a relação do personagem de Vereda Tropical com as melancias. Onde no curta-metragem de Joaquim Pedro de Andrade havia um sentimento cômico de renúncia, Paul Thomas Anderson cria um outro mais histriônico e doentio. A imagem não é de uma vagina, mas ele parece não querer associá-la a outra coisa que não a um instinto básico. Após a guerra, toda forma de abstração conduz a um impulso imediato. A figura abstrata em um papel se torna um pênis e uma vagina. Também fica claro que não se trata de uma escolha, mas de uma incapacidade psíquica-motora, causada por um trauma de origens mais remotas (ou simplesmente pela intoxicação, o filme não esclarece). Talvez a mesma sequela que justifique a atuação amaneirada de Phoenix, o corpo estranho do herói bem notado por José Geraldo Couto em texto ao catálogo do IMS. Mas esta incapacidade também representa uma ruptura que o torna, em certo sentido, descrente do amor, pois ele exige ir além do corpo, cumprir uma distância que o herói torto não reconhece, e que, como veremos mais adiante em alguns flashbacks, não foi capaz de percorrer.

Alguns vestígios estão plantados desde o princípio. O que origina sua revolta contra um dos clientes da loja de fotografias onde trabalha não é somente o fato de estar alcoolizado, mas a menção feita pelo homem de que encomenda a imagem para a esposa. Insatisfeito com o repertório de fotos de pessoas sorridentes embaladas ao som de “Get Thee Behind Me Devil”, uma espécie de inventário de época do ideal americano no imediato pós-guerra, Freddie briga com o seu cliente porque, ao ouvir falar em casamento, quer aproximar a luz demais, distorcer a figura, queimar o homem. Em seguida, quando caminha em direção à tripulação de Lancaster Dodd (Phillip Seymour Hoffman), e, consequentemente, encontra um sentido para a sua vida na tal seita, o que presencia é justamente a realização daquilo que ele não conseguiu realizar: o casamento.

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Se o primeiro ato do longa-metragem é a caracterização desta figura monstruosa, seus hábitos destrutivos, e sua relação traumática com as imagens e possíveis referências a este binômio conflitante de sexo-amor, O Mestre irá aos poucos se tornar uma obra de contrastes, trazendo à tona uma figura com tendências contrárias à de Freddie para lhe opor: Lancaster Dodd e sua “Causa”, ofertando a Freddie a possibilidade de um pacto. A notável força de O Mestre aposta em, por um lado, fazer um espelho do embaralhamento mental desta figura um tanto ultrapassada, vagante, sem concatenar as cenas; por outro, no showdown dramatúrgico entre os dois personagens principais, um relacionamento que adquire uma profundidade digna dos melhores trabalhos de Nicholas Ray – figuras de naturezas contrárias se identificam e criam um improvável vínculo de amizade e respeito.

O que atrai Freddie a Dodd, que o faz “comprar sua causa” e aceitar ser um objeto de experimento, é ver em seu método a possibilidade de reatar aquele laço perdido. O que o faz entrar no barco em primeiro lugar (em um travelling seguindo-o vagando e avistando uma festa no topo do barco) é ver realizado o casamento. Aos poucos, o método demonstra a sua estratégia de atuação. Estamos diante de um novo voto, que agora não passa pelo sentimento, ou pela paixão à mulher amada, mas por um autocontrole psicologizante que irá curá-lo da sua incapacidade, purificando sua alma, resgatando-o da descrença e assim, supostamente, tornando-o capaz de reatar os laços com o amor do passado. Como diz o mestre da seita no primeiro discurso em que apresenta seus métodos, antes da Causa, o casamento era algo enfadonho. Mas agora, seria possível “enlaçar o dragão”, mediado mais por uma vontade política de fazê-lo do que por um sentimento irrevogável. Mais por um trabalho terapêutico com o inconsciente do que pelo gesto apaixonado.

O veterano de guerra, envolto em motivações impulsivas, que agia com violência quando contrariado e enxergava órgãos sexuais em formas abstratas, agora deveria “educar-se”, deveria aprender a controlar-se suficientemente para refinar a maneira como filtra o mundo. Em vez de ver formas sexuais nas imagens abstratas, por exemplo, precisaria pela abstinência encontrar uma ascese ao amor. Reciclando-se quanto ao passado nebuloso, seria guiado neste processo que encontrará uma metáfora sincrética no exercício de tocar a janela e ter de visualizar aquilo que está do outro lado.

Mas logo, erigindo uma simpatia de mão dupla, o mestre também se mostra atraído pelo discípulo, sobretudo pelas tais poções preparadas por ele que, em realidade, são misturas violentas. Em entrevista, o diretor Paul Thomas Anderson descreveu o seu personagem como alguém misterioso, que guarda um segredo do mundo. A mesma palavra é utilizada na resposta que Freddie dará a Dodd quando indagado sobre os ingredientes das tais poções: elas contêm segredos. Um segredo que nasce da mente turva do ex-militar, sua qualidade ímpar, uma mistura química que traz um vislumbre de sua condição tortuosa no mundo, que excita, agrada e anima o seu mentor. Desdobrando este conflito central em composições que ressaltam seu lado artificial, O Mestre investe em um trabalho de encenação vigoroso para versar sobre uma impossibilidade de conciliação, uma separação: Freddie não consegue remediar o amor perdido e abandona a Causa para viver livre, sem mestres. A Causa, por sua vez, no exato momento em que perde seu gênio violento, começa a institucionalizar-se em um escritório. É um movimento dialético de união, diferenciação e cisão entre a ordem e a paixão, o controle e o descontrole, dualidades que vão se tornar mais presentes no pensamento cinematográfico justamente a partir dos anos 1950.

Um regime clássico é normalmente caracterizado por uma harmonia entre a natureza e o homem, o objeto e sua representação, a palavra e a coisa. É uma condição das possibilidades de construção de uma forma de conhecimento exato. Quando o pacto que justifica esta adequação é rompido, há uma desmedida (para mais ou para menos) entre a forma e o que ela representa, entre o que é e aquilo que podemos ver. Retornando a um momento histórico pós-guerra, O Mestre flerta com um conjunto de obras que tratavam do fim do classicismo, entendido como o fim do acordo entre a imagem e seu correlativo real (Vertigo) espelhado na impossibilidade de se realizar aquela plenitude que a Hollywood dos anos 1940 realizava na paixão (lembremos, por exemplo, da frase lúgubre de Boggart em No Silêncio da Noite – “vivi por uma semana enquanto te amava”). Abraçando os signos desta inadequação em sua forma, O Mestre irá retornar para este momento e abordar a falência do clássico.

Mas o filme também irá versar sobre o surgimento de um novo classicismo que estaria ligado aos métodos experimentais da Causa. Há uma oferta de redenção que Dodd faz a Quell, e é como se esta oferta fosse também a de um novo clássico possível àquele homem que o viu ruir. É quando chegamos ao que possivelmente é o tema mais amplo sobre o qual O Mestre se detém, que gira em torno desta enevoada promessa de redenção ao sujeito que, em meados dos anos 1950, já havia visto uma decadência. Através dele, o filme explora o confronto entre a descrença no conteúdo/crença na matéria (Quell) com a oferta de um novo acordo que promete restaurar a harmonia perdida, reavivar a união rafaelesca entre o homem e o mundo (Dodd).

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Mais quais as características deste novo regime? Não é mais possível se propor um retorno naive a uma unidade natural, a uma impressão de harmonia e equivalência entre as partes. Não após a disjunção postulada entre a imagem e seu correlativo real, isto é, após o rompimento de um acordo. Não se pode resgatar a naturalidade do clássico com a ontologia que o marcara. Da mesma forma, e se espelhando justamente nesta impossibilidade, também não se pode reavivar o encanto do amor pleno apostando no gesto cego e apaixonado no qual inúmeras obras dos anos dourados de Hollywood depositavam suas fichas. Freddie Quell não acredita poder reconciliar-se somente voltando para a casa após a guerra. Há um medo estranho, dúbio, a ser curado. Um herói e uma heroína da Hollywood clássica se apaixonavam perdidamente e enfrentavam obstáculos exteriores para concretizar o amor. Jamais tinham que enlaçar um dragão antes.

Dodd oferecerá a Quell o seguinte pacto: um resgate do amor através de um gesto político de controle, através de uma ordem que interpela este sujeito caraterizado mais pela força de vontade do que pela paixão, mais pela “educação” do sujeito do que por sua ação imediata. Mais pelo aprender a ver do que pelo simples olhar. Mas a promessa vai aos poucos sendo marcada por charlatanismos, pelo enriquecimento à custa daqueles que ainda vêem a luz ao fim do túnel e procuram um programa que possa guiá-los até lá. Nenhuma afirmação é peremptória quanto à figura do Mestre – por vezes, ele nos aparece como um mentiroso, enganando pessoas por bases inteiramente falsas; em outras, como um líder carismático wellesiano criando um império. Somos jogados de um lado para o outro junto ao personagem central, à adesão e descrença, admiração e revolta, carinho e inimizade em relação a esta figura, no que talvez seja um correlativo da posição titubeante do diretor quanto às possibilidades de articulação de uma forma clássica sob bases inteiramente falsas.

O Mestre aporta o germe inicial desta nova proposta de classicismo, fundado na dualidade controle-descontrole, na vontade política de sua execução, na coordenação de uma das partes (a sobriedade) e no silêncio da outra (a loucura), no programa inquebrantável de se realizar o clássico, marcado por uma extrema consciência (o que metaforiza a presença pujante de Dodd na obra) e coesão. No contexto dos anos 1950, quando o herói se tornava um alcoólatra problemático sem grandes rumos no mundo, porém nostálgico quanto a um amor perdido (e por isso, justamente por isso, sendo um moderno), este caminho consciente, que flerta com uma certa religiosidade, se apresentaria como uma promessa de aprendizado e reconciliação, de reinvenção das convenções, de reativação de algo a preencher o vácuo deixado. É notável como são estas mesmas dualidades que continuam até hoje operantes em muitas safras do cinema norte-americano. O mesmo entendimento dos caminhos necessários à realização do amor descrito por Dodd estão em inúmeras obras contemporâneas dos mais diversos gêneros, e talvez fosse necessário um estudo mais aprofundado para verificar como tal forma opera no interior delas – lembremos da lição dada por um dos personagens secundários da comédia romântica Eu, Meu Irmão e Nossa Namorada: “o amor não é um sentimento, é uma habilidade”. O mocinho precisa aprender a amar em vez de simplesmente amar.

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Mas O Mestre as traz à tona justamente para indagá-las, colocá-las em xeque, criando oposições, vácuos, caminhos sem saídas. O que talvez seja um sinal de que o cinema norte-americano que busca preencher a lacuna deixada pela Hollywood clássica apresentou soluções, reinventou seus códigos e suas formas de atuação, mas nunca realmente resolveu o seu trauma, nunca realmente solucionou o impasse esboçado ainda nos anos 1950. Sob um prisma de inconclusão e, até certo ponto, desespero, O Mestre se estabelece como uma obra impressionante sobre a disjunção irremediável que já naquele momento de formação acontecia. De um lado, se prostrou a institucionalização do clássico sob a égide do controle-descontrole (Dodd); do outro, um homem livre e doentio (Quell), incapaz de acatar às promessas desta institucionalização, o moderno deixado na eterna nostalgia da plenitude perdida, abraçado a um corpo de areia.

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