O Menino e o Mundo, de Alê Abreu (Brasil, 2013)

fevereiro 11, 2014 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Fábio Andrade

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O traço e a moldura
por Fábio Andrade

Desenhistas e escritores compartilham uma mesma angústia: olhar para a página em branco. Se no cinema o branco é o excesso de informação (luminosa) – algo trabalhado em filmes tão distantes quanto Persona (1966), de Ingmar Bergman, Le Revelateur (1968), de Philippe Garrel, e O Nevoeiro (2007), de Frank Darabont –, na escrita e no desenho o branco é antes de tudo a cor que antecede a criação. É da página em branco, aqui convertida em tela, que Alê Abreu parte neste O Menino e o Mundo, e a impressão fabricada de que começamos o filme junto de seu artista, no ponto zero da criação, é um aperto de mãos que garante, de pronto, nossa fidelidade pelo resto da projeção. Diante da identificação na angústia, é fácil compreender o impulso do filme ao começar a preenchê-la: partir do traço aparentemente mais básico, do esboço figurativo mais simples, para, aos poucos, ir lentamente incorporando outras formas, cores e técnicas, até que a folha esteja repleta de vida.

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Há sempre um risco neste processo. Assim como o escritor precisa impor certo ritmo ao tamborilar das palavras, tentando encontrar a dose exata entre os freios da precisão semântica e a ameaça dos floreios libertinos do fluxo de consciência, o risco é de a beleza da angústia trêmula daquele primeiro traço ser soterrada pelo barroquismo virtuoso da folha saturada de idéias (algo ainda mais temerário na prática de animação, que carrega consigo sempre um dado de superação técnica). O Menino e o Mundo, porém, é um filme fatalmente angustiado, muito por Alê Abreu não só encontrar o equilíbrio entre esses dois extremos, como trazer para o centro do filme o ouro da tradição concretista (seja nas artes visuais ou na literatura): transformar o peso da página em branco em potência expressiva.

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No filme, o fundo branco não é exatamente a ausência de expressão; ele é a expressão exata da ausência. E como seu protagonista é um garoto inventado que sai para descobrir o mundo (e o mundo – como sabem bem as crianças – está longe de ser só belo) quando constata a ausência de seu pai, a idéia de ir desenhando cada pedra no caminho com rapidez apenas suficiente para antecipar seus passos é questão de justiça poética. Estamos todos juntos – público, menino e mundo – seguindo a discreta guia do cineasta. Da mesma maneira, quando seu pai vai embora, o trem mergulha na imensidão branca do fundo ausente, se perdendo no nada inacessível que ronda todos os passos dados em tela. Do branco viemos, para o branco voltaremos. Se O Menino e o Mundo é um filme para crianças, não restam dúvidas de que são crianças bastante melancólicas.

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Mas os colchetes que emolduram essa jornada que nasce e morre no nada (ou quase) são sequências quase idênticas, que correm em sentido inverso no começo e no final do filme: um pequeno ponto que expande na tela branca, até se revelar uma espécie de mandala que, por sua vez, contém outros pontos que ampliam na tela até… no final, fazendo o movimento reverso, o mundo volta a ser a mandala, que se transforma em um pequeno ponto que persiste no centro da tela, até os créditos finais. Há, naturalmente, um fim estrutural nessa escolha, mas também um objetivo material não menos importante: todo aquele branco é, na verdade, uma moldura para o traço. Do traço é possível se criar um mundo ou um menino, e pelo traço é possível colocar o menino dentro do mundo e o mundo dentro do menino. Em O Menino e o Mundo, o traço é o verdadeiro protagonista.

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A cada nova sequência, Abreu parece buscar o único traço possível para expressar a ontologia do que ele quer mostrar. Se não restam dúvidas que a vida seria mais simples se a aparência coincidisse com a essência – questão igualmente importante para Platão, Marx e Vertov (três nomes fundamentais para este filme) –, na imagem desenhada essa empreitada parece menos impossível. No desfiar do filme, o traço – que, em sua linha principal, busca uma síntese impossível entre o primitivismo genial de um Don Hertzfelt e o virtuosismo exuberante de um Bill Plympton – tateia por essa imagem que se faça ontológica, que carregue no próprio corpo todo o seu significado. Com essa mão livre, mas não pura (pois não hesita em combinar Toulouse Lautrec, León Ferrari, Jorge Bodanzky e recortes de revista em sua busca por algo que transcenda a referência e a técnica), o filme chega a algumas construções surpreendentemente agudas em sua literalidade: a banda policial que toca instrumentos em formato de revólveres e metralhadores; as modelos de publicidade feitas de colagens absolutamente desproporcionais; a geometria desconcertante que conecta o trabalho no campo, as linhas de montagem nas fábricas e as pilhas de containers em um barco – e que, pelo simples contraste com o traço livre e limpo que dá feições ao protagonista, fala mais do que um texto jamais será capaz de falar. O Menino e o Mundo é todo recheado desses grandes achados formais que passam pelo filme com leveza, sem demandar a interrupção do fluxo da projeção para a demonstração de suas inegáveis habilidades.

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Se o filme não tem falas – ao menos não falas inteligíveis por nós, criaturas sem traço – ao som fica a difícil missão de amplificar a voz do protagonista: é preciso fazer ouvir o próprio traço. Daí a escolha bastante acertada de esvaziar ao máximo o background sonoro, descolando cada som que está em primeiro plano do seu entorno (como acontece na imagem), e ao mesmo tempo tecer, com esses elementos esparsos, uma espécie de sinfonia, um andante de obra contínua que avança sem que o lápis jamais seja tirado do papel. Em alguns momentos, esse trabalho rende sutis pontuações narrativas que arrancam inevitáveis sorrisos – das quais a melhor é, sem dúvidas, o enfileiramento de três portas iguais que, pelo som, reconhecemos se tratarem de um bordel, uma igreja e um boteco. Mesmo quando o som encontra funções mais concretas na cena, há espaço para a interação muitas vezes inteligente entre ruído e música – como uma chuva que cai com uma salva de palmas ou o conjunto de flores que, quando arrancadas, atacam em pizzicato uma corda de violão. Se por vezes esse tipo de interação cai na mímese mais banal do famoso efeito Mickey Mouse, essa mesma interação guarda surpresas sutis, polvilhadas ao longo do filme.

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No entanto, um som é também um traço, e um traço é único também por sua textura, sua intensidade, sua infidelidade natural que o impede de ser submetido à possibilidade de repetição. Se, por um lado, há feitos notáveis na partitura sonora do filme, por outro O Menino e o Mundo sofre da triste síndrome da alta fidelidade que sacrifica a distinção de cada timbre, de cada pequeno elemento sonoro, em nome de uma planificação de limpidez e padronização “de mercado” que termina por soar um tanto insípida. Apesar de o filme lidar com notável criatividade com seus desafios de construção sonora, falta justamente o salto além da funcionalidade encontrável nessa impressão de handmade que perdura e encanta no trabalho de imagem – questão que tem mais a ver com personalidade sonora do que com acabamento. 

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Essa parede de bons tons, porém, é apenas um dado de uma relação proposta pelo filme que, mesmo nutrida por fidelidade e admiração, parece encontrar seu limite em uma incontornável percepção: o cinema não se faz só de traço. Tampouco de criatividade e justeza de olhar. Por mais que O Menino e o Mundo seja uma feliz surpresa dentro do universo do cinema brasileiro (e do cinema como um todo), sobrevive, ao final, a sensação de uma experiência de certo modo incompleta. Em parte, isso se dá por uma dificuldade na construção fina dos tempos, essencial para o aspecto sinfônico que o filme tenta construir. Embora a impressão de uma narrativa que se desenrola como um novelo arrastado pelo chão seja fundamental para a fruição do filme, a dificuldade em dosar as durações das sequências e das passagens entre elas acaba chamando atenção excessiva para os blocos dramáticos individuais. Mas em outra parte, até mais importante, o limite está na sensação de que o filme refuga sempre que olha para o abismo – e, nisso, a sequência da chegada do trem do pai à estação permanece como momento exemplar do potencial dramático que o filme tem e nem sempre consegue levar às últimas consequências. O Menino e o Mundo é um filme melancólico, de fato, mas sua tristeza tem um potencial infinito que o filme parece ter receio de desbravar.

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É justamente o domínio dessas duas instâncias – tempo e intensidade dramática – por Pete Docter e Bob Peterson na sequência de abertura de Up – Altas Aventuras (2009) – para não sairmos do universo do cinema de animação – o que permite o mergulho no abismo, sem que o espectador se importe se seu guia irá ou não trazê-lo de volta. É essa coragem, no fim das contas, que difere os filmes belos das experiências cinematográficas realmente intensas e transformadoras. A maior tristeza de O Menino e o Mundo está em sair do cinema ciente de que se viu um belo filme, mas se esforçando para silenciar o lamento por ter faltado, ao traço, a coragem (e a petulância) de ser maior que a moldura. 

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