O Espírito de ’45 (The Spirit of ’45), de Ken Loach (Reino Unido, 2013)

outubro 7, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fabian Cantieri

thespiritof45

Velha nostalgia estéril
por Fabian Cantieri

Nenhum homem pode ultrapassar seu próprio tempo,
pois o espírito de seu tempo é também seu próprio espírito”.

G.W.F. Hegel

Capturar o Zeitgeist britânico do pós-guerra. Taí uma ousadia tremenda, como levanta o próprio título. Mas como fazê-lo? Ken Loach entra em campo com um ímpeto de quem sabe administrar o resultado com o manual embaixo dos braços. Loach tem em mãos (ou em arquivo) um material enorme – a história recente da Inglaterra -, e a partir dele, pretende apreender o espírito de uma comunidade, de uma época que ao fim, como veremos, nos serve de exemplo. Este Zeitgeist, portanto, não é um fim em si mesmo, mas um discurso retórico.

Usar imagens como suporte de ideias que não estão necessariamente contidas no material bruto não é nada novo. Desde o EMB – Empire Marketing Board Film Unit –, em 1926, que o documentário se consolidava como a máquina sofisticada de propaganda do império britânico. A questão nunca foi a natureza propagandística, mas seus recursos invisíveis que escondem esta mesma natureza. Nisto, um filme panfletário, quando minimamente sábio, por questão de justeza, quando não brada aos berros sua parcialidade, ao menos, faz questão de evocar seu partidarismo. Pra quem já viu talvez qualquer outro filme de Ken Loach, essa premissa é clara antes mesmo de as luzes se apagarem.

Mas o marxismo de Loach ou o marxismo em si nunca pode ser auto-evidente. É preciso contar, exteriorizar, debater ou recriar a dinâmica da polis que se auto-implode. Regra de Aristóteles: a retórica, quando problematizada em si mesma, torna-se tanto mais eficiente quanto coercitiva; “somos persuadidos sobretudo quando entendemos que algo está demonstrado”. É aqui que O Espírito de ’45 parece um filme socialista feito para socialista, mas daqueles que não olham ao redor por achar que sua práxis seja cabal. Quem não embarca na teoria por inteiro, aquele que sempre suspeita, acaba vendo personagens encaixados em função de um discurso para um fim maior sendo que este “fim maior” dificilmente o é para além do diretor. A coerção se enfraquece.

A certa altura, quando já passamos do bem-estar da moradia com dois banheiros inacreditavelmente bom-para-ser-possível e adentramos o reino da crise, vemos um piqueteiro reclamando: “quem é esse que dá voz de comando para um policial dar chutes na minha canela”, corta para… Margaret Tatcher num plano vazio de significado – ela apenas olha e gestualiza dando tchaus para o público. O significado, claro, está no corte político e abominável que anula a própria perversão que a pura imagem da ex-primeira ministra facilmente poderia suscitar. É o tipo de manipulação da qual nos acostumamos a suspeitar. Se não éramos suspeitosos, acabamos por nos tornar.

Existe uma clara contradição em O Espírito de ’45 que não deixa de ser uma contradição do próprio cinema: como almejar o etéreo através do materialismo da imagem? Como se reconciliar ao passado, ao ponto da sensação fugaz de tocá-lo? Para Loach, esta resposta também já é dada há tempos: na banalidade do cotidiano do acontecido e na fala, na reminiscência do povo, do homem ordinário, que aqui tem o sentido mais louvável possível, do trabalhador comum. Os médicos, ferroviários, sindicalistas – estes assumem o papel que o jornalismo diário atribui aos “ólogos” de plantão, pois aqui não há estatística a ser buscada, mas a busca por um sentimento em comum.

O problema é que, na beleza desse esquadrinhamento, existe o outro lado da razão. Ao perpassamos pela causa do bem-estar social, recaindo na nacionalização da mineração, ferrovia, aço, luz, etc, cria-se um impasse: a dialética sentimental não dá conta da sustentação deste espírito agregador de um tempo coerente e justo; é preciso abrir espaço para um entendimento sobre o que se está em discussão. E, antes mesmo de nos aprofundarmos sobre as raízes do processo de nacionalização de setores fundadores da economia moderna bretã, corta-se para a antítese, ou melhor, para sua vil representação – Margaret Tatcher. Não há chances (e chaves) de compreensão da privatização, apenas o repúdio institucionalizado.

A resposta de combate do filme a isto vem em forma idílica. A solução é no mínimo incomum – foge do clichê de atribuir toda a carga de salvaguarda do mundo aos jovens, que têm energia para atribuíla aos mais velhos. Ao fim, ouvimos a declaração da senhora se dirigindo aos seus contemporâneos: “desliguem a TV, tirem seus fones de ouvido e contem como era em 45!”. É o ano da nostalgia colorida que embebeda nossos sonhos infrutíferos. Para o último plano, em bebop dançante, Pete Townshend haveria de criar a resposta: hope I die before I get old.

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