O Dia dos Idiotas (Tag der Idioten), de Werner Schroeter (Alemanha Ocidental, 1981)

maio 5, 2014 em Em Pauta, Luiz Soares Júnior

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O gesto de Caliban
por Luiz Soares Júnior

O abismo lançou seu grito, a profundeza elevou suas duas mãos”.

(Cântico de Habacuc 3:1)

A crueldade é antes de tudo lúcida; consiste em uma espécie de direção rígida, de submissão à necessidade. Não há crueldade sem consciência, sem uma espécie de consciência aplicada. É a consciência que imprime ao exercício de todo ato da vida sua cor de sangue, sua nuance cruel, pois está subentendido pensar que a vida implica sempre na morte de alguém”.

Antonin Artaud, O Teatro e seu Duplo

Eu não devo sonhar”, exclama mudamente uma semi-sonambúlica Carole (Carole Bouquet), entre um primeiro flash hipnagógico e uma overdose de café austríaco. O lingüista Émile Benveniste pensava que a condição originária da linguagem – anterior à sua cristalização em conceitos – consistia essencialmente em interjeições. O Nome era antes de tudo uma forma de saudação exaltada ao divino que me aparecia. Vaticínios, transes histéricos, epifanias místicas, libações catársicas – há experiências em nosso mundo que ainda conservam esta forma primeira, fresca e presente, do Logos se manifestar. Neste filme em que o corpo se torna o eixo de um exuberante festim somático, é o êxtase expletivo o leitmotif: celebração, liturgia, maldição, “Te Deum” gozozo e maléfico. A suntuosidade barroca do cinema de Werner Schroeter aqui se consuma nesta percussão da palavra pela encenação psicodramática, nesta coreografia extática onde um enxame de gestos é mobilizado para restituir ao corpo doente as pompas do carnaval artaudiano: “Aliás, todos estes ruídos são ligados a movimentos; eles são o acabamento natural dos gestos, que possuem a mesma qualidade que eles”. A exclamação mágica tamisa o gesto de um terrífico encantamento; não é um mero adorno, mas o próprio núcleo da mise en scène, o que a inspira e cristaliza.

A linguagem adquire aqui a gravidade encarnada dos primórdios, quando falar (exclamar) confundia-se com ser; talvez a loucura seja, com a infância e o transe pático do teatro, o estado privilegiado para a retomada desta indistinção entre palavras e coisas, verbo e carne: quando volta do banheiro, uma das internas inventa uma série de trejeitos vocais (grunhidos, resmungos, gritos sufocados) e manuais para exprimir seu desespero diante da mulher enforcada na janela. Ela precisa estar à altura da visão, traduzi-la mimeticamente em seu pobre corpo desolado, castrado metodicamente pelos soníferos; a resistência que lhe resta para proferir uma palavra minha e afoguear um corpo meu é ferir a opacidade monocromática do sanatório (em azul pastel) com esta desmesura vibrantemente demoníaca da psicose, por meio da qual aflui o Eros vertiginoso do cromatismo fúnebre que envenena o filme: encarnado, negro. A fabulação expressionista é uma espécie de meio de cultura, no qual se forjam personas imaginárias – o refúgio terminal da subjetividade: em plano-seqüência, as estações da cruz de cada personagem desfilam diante de nós (em Palermo ou Wolfsburg, de 1980, Schroeter nos dá uma espécie de abregé deste itinerário que os personagens descrevem: a Paixão de Cristo recriada por um imaginário maneirista).

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Mas em O Dia dos Idiotas, não são apenas os personagens que alucinam (e se esforçam por encarnar os seus demônios nos corpos-efígie, inscrevê-los o mais limpidamente possível na Verônica lúgubre do plano). O filme alucina com eles: no atabalhoado dos faux-raccords, na agudeza dos ângulos extremos, no chiaroscuro preciosista e nos personagens arquetipicamente esquizos, um delírio caligárico (e caligráfico) ressurge. Raro plano nos restitui o espaço em sua unidade e totalidade; vultos, cintilações, entrevisões, vieses, interstícios nos defrontam. O fantasma a tudo corroeu (ou antes: refigurou?), transformando o plano em um mosaico de objetos parciais; qualquer aspiração reconciliada à integridade do campo e da figura encontra-se solapada; visualmente, a metonímia é a regra de ouro. O próprio tempo sofreu uma condensação e uma descontinuidade atonais: os planos se entrechocam e se fraturam, alinhavados por uma causalidade de pesadelo e um crescendo de êxtase – e é no intervalo de sua diferença que surgem os corpos, rasurados por uma fatal, irremediável cisão: insuturáveis.

A razão disto está em Schroeter ser antes de tudo um alegorista – alguém que cultiva a ruína como modus vivendi do espetáculo dialético. É o fragmento que serve de fio-condutor para este afresco alucinante. Daí a relevância do gesto – um caleidoscópio figurativo de fragmentos (de corpos, de espaços), intensivamente ativados por uma montagem matemática e disléxica (sim, porque a Schroeter não se há de negar precisão lapidar e método no corte, mas igualmente o delírio associativo, o furor do contágio metafórico: “Loucura embora, tem lá seu método”).

Sempre me pareceu esta uma função de essencial relevo da construção cinematográfica – mas um tanto estranhamente subestimada: a criação de um aparelho gestual, pelo qual se cristalizam as duas prestidigitações de que o cinema é capaz: restituir o arsenal virtual do ser (intenções, paixões, sensações) à flor da matéria; torná-lo visível e háptico ao olho. E, em razão de ser uma imagem temporal, possibilitar igualmente a intrusão das fantasmagorias, os influxos fantasiosos, o trabalho do Id, etc. Se a decomposição analítica dos instantâneos de Muybridge são os pioneiros cinéticos de catalogação do gesto, é no panorama de idiossincracias posturais das internas de Charcot que encontramos um paralelo aqui. Em Schroeter, a vertente barroca: o gesto “inacabado” obseda e fetichiza, mas de forma singularmente espectral; ele constitui o índex de sua própria impossibilidade; assinala a improbabilidade de uma perfeita motricidade, o déficit de uma continuidade ideal. “No cinema, uma sociedade que perdeu seus gestos busca reapropriar-se do que perdeu, e ao mesmo tempo designa a sua perda”. (Agamben).

Se gesto há, é equilibrando-se sobre a tênue linha entre o intrincado e o desconcertante; daí o caráter “desajeitado”, irregular, entrecortado que ele apresenta em seu cinema, e aqui de forma paradigmática: a montagem o condena a uma incompletude seminal, a permanecer o instantâneo de seu próprio inacabamento; uma estética do choque constelacional, na qual o plano se torna a urna funerária destes estilhaços de movimentos e espaços. À transparência clássica da cristalina e auto-contida mão espalmada de Ariel, substitui-se a convulsão furiosa da pata de Caliban. Lembremo-nos por exemplo dos transportes místicos da enfermeira católica, olhos para cima em “Sancta Maria mater Dei” sob a luz irisada das janelas; mas ela nunca chega lá – o gesto nunca chega ao êxtase; permanece truncado e vacilante; o corte, providencial e implacável, sempre aparece com o intuito de interromper, deslocar – mas, sobretudo, contaminar uma ascese com a intersecção de uma orgia, um rosto angelical com uma máscara de malignidade, etc. Perverter é a regra deste metrônomo cruel. Outro exemplo: a dança circular, opiácia dos funcionários “nobres” da clínica; Schroeter se compraz em interromper a continuidade desta seqüência de duas pontuais formas: quando Ingrid Caven lança a frase: “Vocês todos têm câncer!”, um corte súbito mostra o salão novamente. Outro corte, introduzido pela próxima frase: “Vocês não sabem dançar!”. O que nos restam são substitutos canhestros, mutilados de gestos – flashs que buscam justamente representar a impossibilidade que um cineasta tardio encontra de conceber uma seqüência contígua e contínua (com começo, meio e fim, etc), um campo e um contracampo que se correspondam segundo um raccord clássico, etc.

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O Dia dos Idiotas é prenhe destes “momentos privilegiados e inconclusos”, encapsulados pelo gesto-crisálida, brandidos pelo brado expletivo. Mas não só aqui, onde o que domina é a histeria, entre catatônica e hiperestésica, dos movimentos de Carola, esta Amina (“La Sonnambula”, de Bellini) dos anos da ressaca. Todos estes gestos que irisam sua obra são núcleos nevrálgicos da modernidade estilhaçada: as mãos retesadas que envolvem num sudário fúnebre o rosto de Madalena Montezuma em O Rei das Rosas (1986); o dedo em riste das mães dos assassinados, durante o auto-de-fé que encerra Palermo oder Wolfsburg; os dedos esguios e nervosos de Candy Darling, concha ressoante contra a qual percute a coloratura neurastênica do hermafrodita, em A Morte de Maria Malibran (1972); o “Avanti!” vultoso e sibilante com que o gesto de Valeria Cavioli-Simonetti saúda e iconiza a morte da filha em No Reino de Nápoles (1978), Piccolo teatro tragico; o tônus cariciante com que Carla Gerer, enlevada pelo “Piccolo Concerto in C Maior”, de Vivaldi, cultiva e cultua o peito nu do amante em Argila (1969); o automatismo espiritual estudado de Malina (1991), que o filme se encarrega de implodir num apocalipse esquizo-sinestésico, em que a personagem (e o filme) naufragam; e todos estes devires e flutuações do corpo, entre o esfuziante do cabaré concerto e o Folie! Da Traviata, com que as marionetes patéticas e desencantadas de Schroeter desfilam o Teatro de Variedades do Wirtschaftswunder alemão em Der Bomberpilot (1970), Eika Katappa (1969), Willow Springs (1973)… “O camp é uma forma de historicismo relido histrionicamente” ( Phillip Core).

Do Imagem Tempo, de Gilles Deleuze: “Não há menos pensamento no corpo do que choque e violência no cérebro. Não há menos sentimento num e noutro. O cérebro comanda o corpo, que é apenas uma excrescência sua, mas também o corpo comanda o cérebro, que não é mais que uma parte dele; em ambos os casos não serão as mesmas atitudes corporais nem o mesmo gestus cerebral.(… ) Mas se o cálculo fracassa, se o computador falha, é porque o cérebro não é um sistema razoável, tampouco o mundo um sistema racional. A identidade do mundo e do cérebro, o autômato, não forma um todo, antes um limite, uma membrana que põe em contato o fora e o dentro, torna-os presentes um ao outro, os confronta e enfrenta”. Esta vindicação anti-dualista com que Deleuze analisa o universo de Kubrick e de Resnais (dos cineastas ditos “cerebrais”) também serve para O Dia dos Idiotas. O sanatório-décor que nos recebe aqui é (à semelhança de Marienbad, como O Iluminado) um grande modelo de analogia com o cérebro – este monstro onde se disputam a opacidade resistente dos fluxos corporais, os estímulos acintosos do mundo que nela incidem, a totalidade auto-centrada da consciência… mas de um cérebro que perdeu suas coordenadas de “auto-regulação”, e acaba fatalmente por voltar-se contra si mesmo. Todos estes elementos aí confrontam a sua prova de fogo, e é na autômata Carola que se projetam e refratam: sua indiferença, tingida com laivos de masoquismo narcisista, é o écran privilegiado para estas circunavegações fantasmagóricas. Carola é um revelateur do mundo implodindo à sua volta.

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Mas Carola não é o único personagem transparente, sobre quem o demoníaco das contendas somáticas espraia suas sombras. Ingrid Caven, a impassível diretora do sanatório, é seu duplo – aquela que comanda as disposições do panóptico, a mestra de cerimônias e a instrutora do inferno frígido das regras e dos princípios. Dentro e Fora, duas faces de um mesmo mecanismo apocalíptico. “O Dentro é a psicologia, o passado, a involução, toda uma psicologia das profundezas que mina o cérebro. O Fora é a cosmologia das galáxias, o futuro, a evolução, todo um sobrenatural que faz o mundo explodir”. Esta exterioridade incomensurável, este Totalmente Outro que Bonitzer ouviu gemendo às margens do fora de campo de India Song (1975), de Margueritte Duras, finalmente consegue penetrar na grande máquina de reprodução do Mesmo, solapando suas funções, transtornando suas engrenagens. O Fora apoderou-se do Dentro, e ao final literalmente: O Dia dos Idiotas reconta a história desta tormentosa possessão. 

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