O cinema de F.J. Ossang: da parte maldita e outros luxos punk

março 11, 2013 em Em Vista, Luiz Soares Júnior

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L’affaire des Divisions Morituri (1985), F. J. Ossang

por Luiz Soares Júnior

“Puro Ser e puro Nada são o Mesmo. (…) Sua Verdade consiste neste movimento
de imediata desaparição de um no outro: em tornar-se”.

Hegel, “Fenomenologia do Espírito”.

“Comece do começo, disse o Rei, muito gravemente; e permaneça
neste caminho até encontrar o fim: então, pare”.
Lewis Carrol, “Alice no País das Maravilhas”.

“De todos os luxos concebíveis, a morte, sob sua forma fatal e inexorável, é certamente o mais caro”.
Georges Bataille, “La part maudite précédé de La notion de dépense” (1948).

Complôs e terrorismo sempre assombraram o cinema francês, mas segundo o espírito classicista da litote (uma forma de elipse “por negação”), da atmosfera low profile, dos tempos mortos e resoluções anti-climáticas. De Les Vampires (Feuillade, 1915) a Out 1 (Rivette e Schiffman, 1971), de Le Doulos (Melville, 1962) a Les Nuits Rouges (Franju, 1974), de Os Espiões (Clozout, 1957) a Le Rouge-gorge (Zucca, 1985), de Othon (Straub e Huillet, 1970) a En Haut des Marches (Vecchiali, 1983), os subterrâneos sempre ameaçaram emergir e supurar uma cratera na superfície,  implodir o modus vivendi do plano. Mas é com o terrorista Ossang que esta ruptura se instaura, plenamente e de direito, e transforma o filme num condensado de estilhaços, onde várias línguas – o punk rock, o panfleto, o quadrinho, o Putsch surrealista – se congregam num esperanto esquizo, cuja função é a de suprimir a unidade e homogeneidade da seqüência em nome da iconicidade do plano, sua implosão háptica.

Mas esta iconicidade (antes: este plano mônada?) não é fruto de um partis pris estático e estetizante; as potências energéticas e temporais “descarregadas” na sequência são aqui retidas em suspenso, integralmente restituídas em sua tensão dialética. “Penso que no século XX, o cinema revolucionou a  literatura – o cinema mudo consistiu no surgimento de uma narrativa em rede (réseau), que excede a narrativa seqüencial. A especificidade do cinema não está em viajar para fora do tempo, mas em criar uma espécie de deslocamento entre o tempo e o espaço, que corresponde à aceleração do tempo em nossa sociedade. Quando ocorrem estas precipitações, aparecem em seguida os ‘recuos para trás’, mas a memória deste só opera de forma relativa. Este retorno produz uma perda no tempo, e só a luz é capaz de fixar, de memorizar esta diferença – a criar futuro. Neste começo de século, eu diria que estas células se precipitam, que a máquina se dirige para trás, não existe mais uma real memória. (…) é isto que deve existir em meus filmes, esta sensação real. Vasto número de coisas desapareceu, tiramos do estoque um número máximo de células nervosas, a história consiste sempre nesta perda colossal de memória”. ( Entrevista a Nicole Brenez, “Gazette des scénaristes”, 2001).

A máquina de montagem de Ossang encadeia os planos segundo uma lógica do futuro do pretérito – tempo verbal onde se inscreve uma instância de indeterminação probabilística do futuro, de vir-a-ser conjugado no presente: “Ano que vem, estarei terminando os meus estudos em Milão”. A imagem icônica em seu cinema forma uma constelação que não opera segundo o present tense embalsamado da fotografia, ou o pretérito perfeito idólatra da efígie; como a mônada leibniziana, mobiliza uma temporalidade própria, possível, que assinala a sua natureza utópica.

A alegoria – corpus de fragmentos, de cacos de um “passado que restou” -, de que tantos modernistas se serviram para estabelecer uma relação crítica com a tradição, aqui se serve da estratégia, figurativa e rítmica, do collage; na montagem de suas constelações, percute o beat monocórdico punk (de onde Ossang veio), creditado por uma estética do choque-intermitente e sincopado vagalhão de detritos, imagéticos e sonoros, dirigidos contra o corpo do espectador, base harmônica de uma jam session cacofônica.

Jean-Louis Scheffer, em seu clássico impressionista L’homme ordinaire du cinéma, identificou na experiência de recepção do cinema (o espectador) uma consangüinidade fenomenológica com a percepção do sonhador; o sonho, através dos “estratagemas” retóricos da condensação e do deslocamento, aspira a tudo transformar em imagem, inclusive o discurso. No sonho, o rastilho da experiência é decupado em sintagmas lapidares e refulgentes: os ícones que sintetizam o trabalho da Memória e da imaginação. Mas ele elidiu o demoníaco desta experiência: as condições a que está submetido o espectador de cinema – amarrado à cadeira e na escuridão- identificam-no tanto ao sonhador quanto ao supliciado. Ao vermos um filme, somos aqueles que sofrem (no sentido de ser passivo, objeto de) a potência de suas imagens, como o torturado sofre em sua carne a soberania plena do torturador. Se há um corpo e um psiquismo que podem ser reivindicados pela estética de choque do cinema de Ossang, é este: a tabula rasa do corpo do supliciado para o seu algoz e cúmplice, na qual este inscreve, a sangue e fogo, as cláusulas deste contrato de maldição.

Le Trésor des Îles Chiennes (1990), F.J. Ossang

Le Trésor des Îles Chiennes (1990), F. J. Ossang

Como todo grande modernista – estes dialetas da tradição, que a reprocessam perversamente, des-cobrindo os seus foras de campo, suas máscaras e espelhos -, o seu cinema se coloca sob o signo saturnino do Negativo; formal e diegeticamente, o que se celebra aqui é uma experiência da Revolução como o clímax entrópico de um Por-vir apocalíptico. Après moi, le Deluge… Formalmente, por esta linha de montagem centrífuga – na qual o tempo, o espaço e os corpos dos personagens sofrem uma curto-circuitagem recorrente, atropelados por slogans ou por planos de detalhe puzzles – que jamais conseguiremos reconstituir novamente, integrar ao sistema do filme,  tornando o uso do fora de quadro uma prova de acusação da narrativa “sintagmática seqüencial”, acusada de abrigar sob sua cúpula poderes de narrar e de mostrar regressivos, ou mesmo reacionários…

Como de rigor em construções mitológicas, o cinema de Ossang procede por justaposição e acumulação – mas secundadas por uma montagem paratáxica, digamos; o elo causal ou dedutivo, inexistente no raccord, só nos é possível inferir a posteriori, quando o filme for um Outro do Outro… o seu tônus é rapsódico, não novelístico. Aqui, erigem-se gestos, saturam-se atmosferas, encarecem-se trajetórias – no mais das vezes, concentrados de luz e velocidade; a nova temporalidade que suscita seria eisnteineana, não newtoniana; uma Física energética, não atomicista: intensidades, não extensões. Bólidos catódicos e hipnóticos… os slogans aqui, “os programas revolucionários” – como no sonho – são compostos de sensações e cristais de imagens…

O que poderíamos narrar (fixar, reter) das trajetórias exangues e bad trip dos terroristas drogados de Le Trésor des Îles Chiennes, comandados por um “Primeiro ministro” Nosferatu (Diogo Dória)? Os closes hiperestésicos no braço do médico morfinômano, injetando-se… o que retemos de La Dernière Énigme – inspirado pelas cartas “acusatórias”de Sanguinette, situacionista italiano – contra o terrorismo de Estado? Estas zonas de sombra, regadas a monóxido de carbono – os subúrbios espectrais, que o punk usurpou… as cacofonias do gesto e do grito – escandidas por poses de samurai, batidas disléxicas do Throbbing Gristle… em Zona Inquinata, as rasantes que os corpos do Cowboy e da drogada descrevem, antes de sucumbir ao contracampo – tiro ou facada, há sempre nesta espreita um bote venal… em L’affaire des Divisions Morituri, tráfegos intermináveis – de carro ou de câmera-, e trânsitos cromáticos, com estas superexposições coloridas onde o expressionismo é reeditado com um fito icônico que rememora suas inspirações originais – segundo Panofsky, no alto-relevo das catedrais medievais… nestas lutas bela e ferinamente coreografadas, um espécime selvagem ultrapassa o plano do plano, e nos assalta; a câmera é este predador que se lança na captura de partículas – energéticas, temporais – para devolvê-las ao figurativo, para dar-lhes um relevo e uma profundidade… este “retorno do figurativo”, porém, não indexa o narrativo, não integra a Figura à gramática expectante e espetacular da seqüência: ela permanece uma “mônada em suspenso”, reservatório de Maravilha e Horror. Mas o “lado Vertov” aqui é decisivo: a “montagem intelectual de atrações” preside a tudo, lança e relança os dados do jogo. A energia (como em Entusiasmo) está a serviço de uma Idéia, só que não expropriada ou subsumida por esta; jogam, deslocam-se.

La Dernière Énigme (1982). F. J. Ossang

La Dernière Énigme (1982). F. J. Ossang

Nietzsche distinguia duas formas de niilismo, o reativo e o ativo. O primeiro consiste em destruir por destruir, sem que novos valores fossem criados e substituíssem os valores revogados pelo gesto parricida. No ativo, destruir é operação de retroescavação ontológica, onde o criador “limpa” o campo dos destroços de uma tradição para dar lugar a outra. No reativo, o Negativo é o Fim (último); no ativo, Meio. O terrorismo- formal, político e existencial – de Ossang tem por horizonte um niilismo ativo: a criação de um novo cinema, de novas estratégias (de choque) para a percepção e cognição visuais; mas sua tática consiste em servir-se de um niilismo reativo: a sua arte é programaticamente suja, venal, embólica. Ela cultua o negativo per-si. Na diegese dos filmes de Ossang, o Negativo se manifesta nestas experiências limítrofes de caos, exílio, danação: overdoses, Putschs mortais, corpos fatigados ou torturados, veias supuradas, estilhaços (do plano, dos homens); uma via-crucis reflete-se e refrata-se na outra.

E eis aqui outro núcleo dialético a ser explorado: seus filmes cultivam um certo maneirismo “Ímpio”, reciclando técnicas, gêneros, “assinaturas” da História (presente) do cinema: o fondu, a íris do cinema mudo; o chiaroscuro tenebrista de Darius Khondji, que em nada deve aos “escrínios fascinatórios” clássicos; o noir e o road movie, o rough cut e o grão telúrico do cinéma verité. Possui, portanto, a aura sofisticada de um cineasta tardio, de um artista “que chegou tarde demais”… mas esta suntuosidade está a serviço do terminal e do demoníaco: Fin de partie. No ocaso de uma certa História do cinema, outros ocasos se anunciam… é um cinema da parte maldita (Bataille), da celebração incondicional, luxuosa da destruição e do caos como condições necessárias mas não suficientes da Utopia. Morituri te salutant.

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