O Buraco (The Hole), de Joe Dante (EUA, 2009)

fevereiro 11, 2014 em Em Pauta, Rafael C. Parrode

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Dimensões da imaginação e do horror ou O Inferno de Dante
por Rafael C. Parrode

O Buraco, último filme dirigido por Joe Dante, foi, em 2009 – ao lado de Avatar, de James Cameron -, o filme pioneiro no uso das novas tecnologias de terceira dimensão em Hollywood – momento em que se celebrou uma possível nova era para a indústria do cinema – apesar de ele só ter estreado comercialmente nos Estados Unidos três anos depois e ser lançado direto no mercado de DVD brasileiro. Ofuscado pelo sucesso instantâneo do filme de Cameron e a consequente lenta e gradual implantação de toda uma nova tecnologia para o circuito exibidor que restringia ainda mais o número de salas, o filme terminou circulando apenas por festivais – uma ironia, em se tratando de um filme de gênero de apelo juvenil e dirigido por um dos grandes mestres do estilo no cinema americano.

É interessante pensar em como ambos os filmes, inaugurais para este momento de “renascimento” da indústria hollywoodiana, tenham, cada um a seu modo, buscado estabelecer um ponto de contato entre as tecnologias do presente e as convenções narrativas fundadoras do cinema clássico americano, ainda que produzindo resultados bastante diversos. Se, em Avatar, Cameron parte dos clichês sobre a construção do mito fundador do homem americano, do desbravamento do oeste pelo colonizador, da narrativa clássica e romântica, retomando Ford, Griffith e De Mille principalmente, Dante, por sua vez, propõe um percurso bem mais simples e eficaz, uma vez que ele vai buscar exatamente nas experiências deflagadoras do 3D dos filmes “B” dos anos 1950 e nas aventuras juvenis dos anos 1980 (tal qual seu Viagem ao Mundo dos Sonhos, de 1985, filme que dialoga de maneira brilhante com O Buraco, mas também Gremlins, de 1984, Viagem Insólita, de 1987, Pequenos Guerreiros, de 1998, Matinee, de 1993) inspiração essencial para estabelecer um diálogo mais complexo com esse momento de déjà vu tecnológico inventado por Hollywood para salvar-se de sua monotonia patente por mais uma vez.

Em O Buraco há, sobretudo, um interesse pela percepção dos espaços, pela construção e disposição minuciosa dos objetos e dos corpos buscando acima de tudo dar uma dimensão espacial-psicológica aos cenários, através de uma organização da mise en scène para estabelecer uma conexão física e emocional com o espectador. Há influências claras de Hitchcock e seu Dique M Para Matar (1954) e a experiência claustrofóbica com os interiores, as cores e as pulsões provocadas no e pelo filme.

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Disque M Para Matar (1954), Alfred Hitchcock

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O Buraco (2009), Joe Dante

Mas Dante também bebe de outras fontes do cinema de baixo orçamento dos anos 1950, no qual a experiência com a terceira dimensão se deu de formas mais livres e experimentais, especialmente em A Criatura da Lagoa Negra (1954) de Jack Arnold, em que a dimensão de profundidade do horizonte se dava pelas manipulações na película feitas pelo próprio diretor; e A Casa de Cera (1953) de André de Toth, outro grande mestre dos espaços internos que, tal qual Hitchcock, percebe no 3D um ponto de contato a mais entre cinema e teatro, uma experiência de proximidade com o palco e com a fisicalidade dos atores que o cinema em duas dimensões não permite.

A Criatura da Lagoa Negra, Jack Arnold

A Criatura da Lagoa Negra (1954), Jack Arnold

O Buraco (2009), Joe Dante

O Buraco (2009), Joe Dante

Nesse contato com o 3D, assim como todos esses cineastas, Dante está mais preocupado com a profundidade dos planos, com o que o filme projeta para dentro, com o que se percebe no lugar mais fundo que se possa enxergar. E é exatamente sobre isso que se centra toda a diegese do filme, afinal O Buraco é sobre uma família que se muda para uma casa onde existe um buraco aparentemente sem fundo, e que traz à tona traumas pessoais em forma de monstros e fantasmas. Nesse movimento de escavação promovido por Joe Dante para dentro desse buraco negro sem fim que é o cinema – metáfora também do inconsciente humano, seus medos e horrores – o filme assinala um percurso de retorno ao princípio do cinema de horror, do cinema fantástico como metáfora e materialização de nossos medos e delírios, criando num primeiro momento uma espécie de inventário do horror e seus sub-gêneros, para em seguida mergulhar fundo no passado, no urphantaisen do cinema. Assim, se num primeiro momento Dante parece querer antes confrontar e inverter os clichês narrativos do gênero, reunindo uma série de ícones do cinema e da literatura fantástica (a criança fantasma, o boneco assassino, o pai serial killer, citações a Poe e à Divina Comédia de Dante Alighieri) – seres que saem do buraco e se materializam no mundo real para assombrar e violentar suas vítimas – promovendo uma espécie de acerto de contas com os gêneros, ao final ele sabe que não há reconciliação possível, a não ser que se promova uma transgressão, que se rompam os limites mundanos, mergulhando profundamente no buraco, até se descobrir num mundo paralelo – delírio expressionista, cinema mudo, faustiano, em que Dante busca retomar a féerie de Meliés, o horror, o surreal e o psicológico em Murnau, Lang e Dreyer.

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Entretanto, Dante sabe do irreconciliável! Sabe que novos monstros surgem a cada dia, desestabilizando a ordem do mundo, e que só o embate, corpo a corpo, entre fantasia e real, pode desintegrá-los. Ele é pessimista ao assumir e reconhecer que a indústria e seus anseios não reservam mais lugares para o confronto, para o embate, para o novo, substituindo-os por uma estagnação intelectual e cultural cultivadas pela dependência tecnológica, pela hiperfragmentação do mundo, pelo excesso e pelo clímax. Se O Buraco de fato transcende a sua premissa a princípio ingênua, é porque Joe Dante tem consciência da afirmação proposta por Godard de que “todo grande filme de ficção tende ao documentário e todo grande documentário tende à ficção, quem optar por um encontrará o necessariamente o outro no fim do caminho”. O arranjo narrativo proposto por Dante de fato faz com que seu filme se revele um documentário sobre a própria mise en scène, sobre os limites e convenções de um gênero e seu percurso afetivo, político e histórico diante das transformações propostas pela indústria. O Buraco é um documentário sobre a ficcionalização do real, sobre a materialização do inconsciente em matéria fílmica, da máquina do cinema e sua tentativa de lidar com suas fragilidades e imprevisões diante de seu futuro incerto.

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