Nobody’s Daughter Haewon (Nugu-ui ttal-do anin Haewon), de Hong Sang-soo (Coréia do Sul, 2013)

março 11, 2013 em Coberturas dos festivais, Do Arquivo, Em Campo, Em Cartaz, Pablo Gonçalo

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Tofu
por Pablo Gonçalo

Existe uma famosa anedota que circunda a biografia do cineasta Yasujiro Ozu. Certa vez, ao lançar uma obra nova, um jornalista o provocou dizendo que todos os seus filmes eram iguais, que pareciam praticamente os mesmos. Com uma reação surpreendente, Ozu entendeu aquela observação como um elogio – era isso precisamente que ele buscava: encontrar uma excelência a partir da repetição. Afirmou que fazia cinema como alguém que incrementa, aos poucos, uma mesma receita de tofu, numa repetição incessante, incansável, em busca do mesmo gosto, do mesmo tom. A declaração de Ozu revela um tipo bem peculiar de artista e uma forma delicada de lidar com o gesto da criação. Há um certo legado modernista que tende a olhar com receio, ou mesmo menosprezo, artistas que buscam ser exímios por meio do ensaio primoroso frente as formas que encontraram. No entanto, para um artista como Ozu, a repetição é um meio, um método, um caminho, em busca de um ideal que os inquieta.

De maneira indireta, todo novo filme de Hang Sang-soo remete à frase de Ozu. Eles parecem capítulos pequenos, menores, singelas comédias humanas, que criam uma série interconectada e independente. São, sempre, os mesmos filmes que vemos. Não apenas por acompanharmos os mesmos personagens: professores, cineastas, estudantes, roteiristas, atores, atrizes, músicos, pintores e artistas. Não apenas por flertarmos com o cotidiano dessa vivência boêmia e de conversas longas, amenas, saborosas, no novo arranjo afetivo dos seus pares, quando numa mesa, frente a frente, entre virotes de saquê. Cada novo filme de Hong Sang-soo nos apresenta variações sutis de um mesmo tema dramático e de uma forma cinematográfica de força minimalista.

Não é diferente com Nobody’s Daughter Haewon, seu último filme, que estava na mostra competitiva da última Berlinale. Se buscarmos uma novidade, um gesto de mudança do artista, encontraremos um protagonista feminino, que, por sua vez, oferece variações interessantes, já que a maioria dos filmes de Hang Sang-soo tem como ponto de partida um jogo masculino de sedução. Nesse, o que vemos são os devaneios, os tormentos e os sofrimentos causados pela jovem Haewon (Jung Eunchae), uma estudante, que vive encantada e encantando seus professores e colegas. Mesmo com uma protagonista mulher, e um ponto de vista invertido da sua dramaturgia, acompanhamos o constante jogo de assédio, sedução, abertura e reclusão em relação ao universo de amizade e troca.

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Em certo momento, temos dúvida se o que vemos no filme são apenas os sonhos de Haewon, enquanto ela lê um ensaio do sociólogo Norbert Elias sobre a morte, ou se são fatos realmente vividos pela personagem. No entanto, o diretor explora justamente esses espaços transitórios, o terreno movediço dos desejos potentes mas ainda não concretizados. Talvez seja por isso que a dramaturgia de Hang Sang-soo esteja permeada por hesitações, dúvidas, receios. Seus protagonistas, sempre apaixonados, convivem com sentimentos confusos, pendendo ora para um universo possível, ora para outro, de confronto entre o desejo e os fatos.

Assim, Haewon deixa-se seduzir pelas paqueras do professor e cineasta Seongjun (Lee Sunkyun), que é casado e tem um filho pequeno. Ou por um reconhecido professor coreano que dá aula em San Diego, na Califórnia. O espaço da luta pela conquista, nos seus filmes, é preenchido pelas inúmeras ofertas, caras ao universo feminino. Troca-se o ponto de vista do jogo de sedução: em vez de uma insistência cheia de testosterona, os devaneios femininos de possibilidades amorosas, românticas, latentes, de mundos possíveis, mas ainda não concretizados. Talvez apenas um olhar trocado, mais misterioso, num encontro improvável (e dramaticamente forçado), tenha de fato conquistado Haewon. Nas demais paqueras, ela flerta com os seus desejos, suas vaidades e as ansiosas vontades dos outros homens que se projetam nela. As insistências masculinas em Nobody’s daughter Haewon são espelhadas no rosto da sua protagonista, ainda um tanto menina, ainda um tanto filha, tornando-se mulher, que acolhe, de forma carinhosa e parcial – sempre parcial – as cantadas que recebe.

Numa das cenas mais interessantes desse filme, Seongjun encontra Haewon num belo templo antigo, que dá vista para uma ampla paisagem, alta, de frente para um abismo. O casal de amantes – real, ou sonhado – fica sentado na calçada e Seongjun compartilha um trecho da Sinfonia 07 de Beethoven, escutado num player um tanto ultrapassado. É um instante também transitório, no qual o jogo de sedução, ansiedade e sofrimento dos personagens é suspenso por alguns minutos. Seongjun afirma que poderia escutar aquela música sem parar. Haewon também sente-se tocada pela sinfonia. A cena, contudo, oscila entre o delicado e o patético, como se fosse uma comédia que sabe acolher o sentimento dos personagens e, com um passo atrás, os observa numa distância precisa, bem calculada, que não chega a ridiculariza-los totalmente, mas sugere um riso frente aquelas mesmas sensações.

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E é nesse espaço, sutil e fronteiriço, que encontramos a força da dramaturgia que Hong Sang-soo costura, como um artesão cuidadoso dessas zonas de ambigüidades. É algo bem diferente das composições mais teleológicas que costumamos ver, na canônica estrutura dos três atos e nas dúvidas que apenas reforçam as decisões e as vontades dos personagens. Em Hong Sang-soo, os próprios personagens estão inseguros dos seus desejos e essa dúvida está bem distante de um paradigma psicanalítico. Afinal, não há catarse, mas apenas deslocamentos pontuais, pequenos, também provisórios, também transitórios, que, ao final, parecem dissolvidos pela própria insignificância que o tempo e o mundo real conotam frente àqueles sentimentos.

Mais do que fazer um cinema de prosa ou de ser um observador do cotidiano, Hong Sang-soo observa as dúvidas e as ambigüidades dos seus personagens a partir de um ponto de vista neutro, esquivando-se, por princípios, de imprimir um sentido. O neutro, assim, seria um local caro ao narrador e poeta oriental tão bem analisado por Barthes. O neutro quer nada conotar, é mais inquieto em observar aquilo que desaparece do que o que permanecerá. O curioso é constatar que o próprio tofu – como um prato tão sintético da cultura oriental – se esmera em propiciar um gosto neutro. As variações de sabor surgem de fora para dentro, a partir dos temperos mais diversos. Em Nobody’s Daughter Haewon, temos como tempero um rico ponto de vista feminino. No entanto, o tofu de Hong Sang-soo permanece essencialmente o mesmo – o que seria um gesto de acuidade estética, bem distante de um paradigma vanguardista ou modernista. Filmar sempre o mesmo filme, sempre melhor, seria um índice de perfeição, caro, talvez, ao miglior fabbro, como a literatura ocidental gosta de canonizar os seus melhores poetas.

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