No Reino de Nápoles (Neapolitanische Geschichten), de Werner Schroeter (Itália/Alemanha Ocidental, 1978)

maio 5, 2014 em Em Pauta, Luiz Soares Júnior

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A crisálida do verme
por Luiz Soares Júnior

Toda musa é pobre.”
Jean Cocteau, Entrevistas sobre o cinematógrafo

Só o sadismo pode dar à estética do melodrama um fundamento na vida”.
Proust, Os prazeres e os dias

Constitui todo o fascínio e a atração das ruínas fazer com que uma obra humana seja quase percebida como um produto da natureza”.
Georg Simmel, As ruínas. Ensaio de estética

Ao longo de um espaço arruinado – um terceiro andar? uma varanda? cornijas gastas, cal descascado, tijolos dispersos aqui e ali -, uma criança vaga, tateia e vasculha; uma câmera espia por ela (uma criança está sempre muito ocupada consigo mesmo para ser plenamente, aí no mundo); ausculta e ressoa por ela. A câmera indiscreta recua e pára; um espaço coalescente se instaura ali, um entre-deux: entre o corpo da criança que avança e as paredes alquebradas, entre o Norte e o Sul, o nascente e o poente (um sol preguiçoso veio brincar também). Então, a câmera se imbui de uma inesperada paixão, e começa a impulsionar-se para a frente, em retilínea e diretiva marcha: para o mundo que nos espera lá, neste rincão meridional tecido de árias antigas, refrões gastos, ídolos carcomidos, gestos brandidos como espadas, grandiloqüência de Te Deum.

Jacques Lourcelles viu no suposto naturalismo de Toni (Jean Renoir, 1935) o cadre rugoso ideal para a retomada do élan trágico no espírito moderno. “O realismo (…) é aqui apenas um cadre estético, um meio eficaz e fecundo para guiar o espectador ao coração de uma tragédia, de um conflito de paixões de caráter eterno, intemporal, e até mesmo cíclico.” Talvez não estejamos tão distantes do sentido da empreitada de Werner Schröeter em No Reino de Nápoles – sob a condição de ampliarmos desmesuradamente o círculo desta démarche, e intuirmos que não apenas o vultoso gesto trágico tem lugar aqui, mas também a pantomima histriônica, o funesto spleen do devaneio, etc. Como Nietzsche, fascinado pela evidência gloriosa das paixões que as cigarreiras e os pescadores de Bizet manifestavam em passos de dança e gestos graciosos, Schroeter se deixa apaixonar pelo estrépito sincopado da palma mediterrânea – seus gritos lamurientos, sua indolência sensual, sua barcarola cotidiana. Como nas grandes obras clássicas (e falar em clássico aqui implica em dizer primevo; primeiras, originárias), a imitatio é a chave de acesso ao ser; em cenas-chave, empenha-se amorosamente em mimetizar os trejeitos desta gente, proporcionando-lhes no entanto, pela clareza lapidar da exposição e atenção ao detalhe, a aura de um momento em alto-relevo: na menina que (imitando por sua vez a mãe, conformando-se ao arquétipo da Mamma/Madona) limpa e veste o irmão mais novo; no burburinho extático, arregaçando o vestido de núpcias ou diante da filha moribunda, de Valeria Cavioli-Simonetti; nos discursos inflamados de Simonetti; no filho efeminado que, acariciado pela mão da dileta mãe, acende um cigarro em homenagem ao papagaio… Concluímos daí que o Mediterrâneo são estas mãos e mães em fúria, estas bocas retorcidas pelo Logos da persuasão demagógica, estes olhos inflamados, esta patológica exposição do corpo-sismógrafo às pulsões (e quem disse que a Idéia não é uma pulsão? Quem disse que não se ama, e delirantemente, um partido, uma herança, um destino?).

Mas este aparente reinado da desordem e do fausto melodramáticos fundamenta-se sobre um trabalho rigoroso de montagem – de fato, uma das mais rigorosas que já vi no cinema. Dezenas de anos, eventos históricos e familiares, idiossincracias, ritos, etc, são concentrados gráfica e ritmicamente (melo+drama) em vinhetas. Conglomerados episódicos destilam a quintessência de uma comunidade – e, por refração e implicação, de uma família e de um país. Outras refrações: do dialeto, da música, da ideologia (o partido comunista), da apologética (a Igreja católica). Esta concentração do grande devir nestes pequenos e intensivos espaços-tempos tem, por sua vez, seu núcleo essencial no gesto: cada vinheta é orientada e alinhavada pela ênfase, sublinhada pela câmera com escrúpulo demonstrativo, em uma figura ou movimento. Uma base material, objetiva é o esteio do drama (e da música): o rosto, envolto por um sudário fúnebre, da estátua da Virgem Maria na igreja; o coche fúnebre (na seqüência da morte de Mamma Pagano); o sapateio de Valeria sobre a mesa em seu casamento; a mão trêmula e fumegante de Pupetta Ferranto empunhando o revólver durante a cena que vai decidir de seu destino; a cortina encarnada que recobre o leito “público” de Rosaria, a prostituta, etc.

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Como pode se depreender dos exemplos, são delimitados pela câmara-esquadro os objetos que constituem o eixo de um aparato cênico, a pedra de toque de uma convulsão dramática, a cristalização de um pathos: no desenrolar da sequência, a “figura” é envolvida por espirais de drama e música; como a sonata de Vinteuil, torna-se o leitmotif de uma pequena construção dramática e musical que a montagem vai estruturar: assim, o “corpo” de mármore da Virgem, que antes aparecera “velado” na igreja, volta à cena durante o episódio do transporte da estátua da Pietá para Nova York. Nesta sequência, Schroeter intercala a visão aérea da estátua com as imagens de Rosa, filha de Valeria, moribunda, braços em cruz e olhos extáticos. Assim, a improvável ascenção de Rosa aos céus é sugerida (inferida, sonhada, e finalmente abjurada) pela correlação estabelecida pelo corte com a santa alçada pelo guindaste. Um panorama alegórico de conhecimento descortina-se aí, neste espaço imantado e intermitente que a miríade de planos descreve: O movimento descrito por esta ascese (irônica embora, ao associar a “ascenção” de Rosa ao vôo da estátua da Virgem) inspira-nos uma espécie de transcendência negativa – negativa porque só nos aparece como efeito de negação da imanência (a estátua de mármore), que ameaça a cada transe histórico engolfar ou mutilar o homem: a reificação, inerente à confecção de estátuas e outros imagos do divino, é tudo o que nos restou para a fruição do sagrado, é como ele nos aparece hoje, cultuado no “tabernáculo” da publicidade (os planos da imagem transportada são acompanhados pelo som off de uma reportagem de televisão).

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A situação chave deste inventário didático-materialista (a indicação da figura ou objeto que vão constituir o núcleo de cada episódio) é dada no começo do filme: quando Valeria recebe das mãos do soldado negro americano um saco de farinha, e gentilmente o conduz ao quarto da filha… ao voltar para a sala, agarra com mão adunca o “presente”, mas a câmera de Schroeter é ainda mais incisiva que o espírito empreendedor da mulher, e se firma e fixa, ciosa de seu tesouro. Esta explícita denotação do que “vale” no mundo de escombros do pós-Guerra dá as cartas de No Reino de Nápoles: os fios e os pespontos da(s) trama(s) serão enredados pelos vieses da infra-estrutura, em particular pelas forças produtivas materiais; os grandes golpes de cena do filme – sua mais-valia dramatúrgica e operática – são colocados sob o signo da Necessidade, do Interesse corporativo, da Especulação: quando a exuberante patroa Pupetta Ferrante “seduz” com ademanes de vaudeville a jovem Vittoria, é para introduzi-la na mecânica predatória do jogo, prostituindo-a para o cliente que vai salvar sua fábrica. Na genial sequência da morte de Rosa, a mística e a mítica operísticas da cena (Callas ao fundo, cantando Bellini) são “sustentadas” por um dado de inegável fatura infra-estrutural: a inexistência no mercado àquela ocasião da penicilina. Uma montagem ofegante contrapõe o Ora pro Nobis da morte da moça com a fuga desesperada da mãe pelas farmácias da cidade. (Ao final da seqüência, Valeria assassina o marido comunista, por ela responsabilizado, segundo a causalidade de uma lógica “econômico-imaginária”, pela ausência do remédio no mercado e conseqüente morte da filha).

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Aliás, o filme inteiro parece sustentar-se sobre o alicerce desta lógica ambidestra, na qual o capital e o delírio seviciam-se mutuamente; e a superestrutura (a Política, a Religião, e finalmente a Arte) serve-se da infra-estrutura, em um mesmo e Outro movimento, como de seu alicerce e fermento inspirador. O amaneirado dos atores é revelador da alienação de que são títeres: o acréscimo na máscara é proporcional à virulência da imanência; o “teatro” – unção do gesto, alambicado do olhar, lentidão e traços de charge no bico-de-pena dos personagens – é um meio secreto de resistência aos estilhaços da História; resistência à altura do homem, semeada no corpo. Como o maneirismo, consiste em uma afirmação (sinuosa embora, labiríntica) da subjetividade. A maniera do gesto aqui recobre a miséria como a crisálida ao verme, transfigurando-o. E o teatro doméstico ressoa, com seus arquejos de realejo, as grandes sinfonias corais da História: o fascismo, a Reunificação, o Milagre… Do Teatro do Mundo: não por acaso, as duas forças motrizes, as instituições que rivalizam em Poder ao longo da história da família são a Igreja e o partido comunista – instituições com uma inspiração messiânica comum, especialistas em orquestrar paixões e urdir mises en scène de massa – com peso ideológico e apologético rivais, ao longo do século XX. A concepção da arte moderna segundo Baudelaire emprega-se de pleno direito como epígrafe à obra deste poeta alegorista: “O que é a arte pura segundo a concepção moderna? É criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista” (Escritos sobre a arte).

Em um estudo sobre As Tentações de Santo Antônio (cerca de 1500), de Bosch, Jurgis Baltrusaitis detém-se sobre um personagem em particular: “Mas é no centro do quadro que se situa a cena mais enigmática: uma cabeça sobre pernas, ornada com um turbante sombrio, senta-se com desenvoltura diante do eremita. Santo Antônio apercebe-se da figura e desvia os olhos. Tudo está em seu lugar neste perfil de traços grosseiros mas regulares. As pernas musculosas, calçadas de botas sobre uma malha colante são de um extraordinário realismo. É esta normalidade no impossível (a cabeça em cima das pernas) que parece unicamente assustar o santo, em meio ao festim de diabos. (…) Um diálogo parece se desenrolar. Toda a visão se desenvolve em torno desta conversação muda entre o monstro e o monge”. Quando mostrei este filme a um amigo aturdido, ele me sussurrou ao final da projeção: “Estranho!”. Como o monstro humain trop humain de Bosch, No Reino de Nápoles destila uma estranheza idiossincrática, nascida desta implicação entre o familiar e o inaudito, a “pequena diferença”: aqui, como nos Schroeter mais assumidamente alegóricos, o music hall, o teatro, a ária invadem a sala de jantar, os cômodos, etc. O teatro e a ópera empobrecem, ficam domésticos e citadinos, à mão de quaisquer; o culto cede o lugar ao valor de exposição, o gesto é “desapropriado” de seu fascínio e gala, o arcabouço da mise en scène aparece: memento mori?

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Mas nos outros filmes, ainda estavam claros os limites que separavam o teatro (pobre embora, para-si) e a vida: a ribalta e o proscênio conservavam-se; os números se destacavam, mesmo que em chave caricata, “tardia”. Aqui, tudo é teatro – a Democracia cristã, o nascimento do filho, a morte da mãe… Indiscernível mascarada; o teatro foi assimilado completamente pela vida, tornou-se indistinguível do ser: o ator agora é a própria ribalta. Vitória do somático, da écriture encarnada. A estranheza vem destas micro-encenações instauradas pelas performances dos atores, contrapostas contra o diapasão essencialmente realista do fundo: o teatro ou a vida? vide a “performance” final de Rosaria, a prostituta, que se confunde com sua própria morte (a sarabanda de palhaços que passa)… o teatro ou a vida? à alternativa impossível formulada por Camilla (A Carruagem de Ouro), Schroeter cor-responde dialeticamente: com a pirueta galhofeira do ironista e a rêverie saturnina do melancólico.

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