My Class (La Mia Classe), de Daniele Gaglianone (Itália, 2013)

maio 31, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

myclass

O cinismo da má consciência
por Fábio Andrade

“Há uma norma de acolhida ao estrangeiro, de aceitar as diferenças, de aceitar o outro, que também significa que devemos nos comportar como se não existissem outras formas de ser. (…) Não vejo diferença entre ‘integração’ e ‘assimilação’, mas sei que toda discussão acerca da aceitação de diferenças passa pela eliminação dessas mesmas diferenças”.

Jean-Luc Nancy em Vers Nancy (2002), de Claire Denis

My Class tem um set up bastante simples e que fica claro logo em seus primeiros minutos: um professor de italiano (Valerio Mastandrea) ensina os meandros de sua língua materna a um grupo de alunos estrangeiros. O recorte remete imediatamente a Entre os Muros da Escola (2008), filme de Laurent Cantet que lapidava um projeto de transparência realista com tamanho virtuosismo que fazia o tiro sair pela culatra, direcionando a atenção do espectador mais à excelência do realismo do que ao mundo “real” que ele supostamente almejava retratar. My Class parte do mesmo desejo, mas adiciona uma nova e muy contemporânea dobra a esta representação: é preciso abranger também a realidade da filmagem e resultar em uma transparência que, de tão cristalina, revela sua própria opacidade. Esse desejo já fica patente na sequência de abertura do filme: Daniele Gaglianone inclui, na montagem, o momento de preparação da filmagem, em que assistentes colocam microfones de lapela nos alunos e dizem para que ajam com naturalidade.

Em seu primeiro ato, o filme se dedica a promover e captar as relações e interações dentro desta sala de aula, esboçando um princípio de ação potencialmente interessante: como a diferença se manifesta quando subordinada ao mesmo? A toda pergunta ou provocação do professor, cada aluno reage de uma maneira particular, partindo de seus princípios culturais, sociais e individuais de formação. A sensação é de se estar diante de uma condensação das pequenas diferenças que se impõem e que abalam a percepção de qualquer viajante que se vê distante de casa e dos pequenos hábitos locais que até então eram tomados como certeza universais. Se há uma latência política na percepção física de que o mundo é maior do que se assume na vivência cotidiana, e de que o sujeito é uma engrenagem menor e menos vital a este todo do que o individualismo diário permite enxergar, o filme de Daniele Gaglianone tem uma premissa suficientemente rica para propor uma experiência potencialmente transformadora do sujeito e de seu papel em uma comunidade.

De boas intenções, diz o ditado, os velhos impérios estão cheios. Pouco a pouco, My Class vai deixando escapar, sob as mangas de sua suposta correção política, antigos grilhões que, de tão ancestrais, são exibidos como nobres alianças de compromisso. O primeiro incômodo está na configuração do recorte: mais que uma grande aldeia global, a sala de aula de Daniele Ganglianone é como um zoológico terceiro-mundista, onde figuras dóceis e miseráveis se esforçam para neutralizar qualquer traço resistente de estrangeirismo. De fato, a diáspora em direção ao primeiro mundo é uma questão concreta, e ignorá-la seria gesto de igual condescendência. Mas se, a princípio, My Class esboça a intenção de promover a diferença a partir do encontro com o comum (pessoas diferentes partilhando a mesma sala de aula, a mesma língua, as mesmas questões, a mesma realidade estrangeira, o mesmo país), a motivação deste recorte por uma ótica colonial já um tanto ultrapassada (sinal dos tempos que o filme reconhece en passant, ao insinuar que o professor de italiano – ou melhor, a Itália – pode estar doente) aliada à “elegância” fluída e harmoniosa dos movimentos de câmera e à aparente esperteza metalingüística transformam a jornada do filme em um grande esforço de neutralização dessas diferenças, em nome da manutenção harmoniosa e apática do mesmo.

Aos poucos, aquela rede de tensões passa a abrir espaço para dramas individuais que, em verdade, não parecem deixar voz para os indivíduos. Tudo se resume a uma mesma máquina de moer vidas, representada na frieza dos vistos de permanência revogados e em nós burocráticos que anulam os sonhos de mudança, e sublinham o exílio com a dubiedade de sentir saudade de casa e, ao mesmo tempo, ter certeza de que voltar para lá seria a mais cruel das punições. Há, porém, alguma diferença entre o sistema de imigração que se coloca friamente alheio ao drama individual e o sistema de encenação que reduz o indivíduo a mera ilustração de uma questão? Em uma das sequências mais sintomáticas de My Class, depoimentos de lembranças sempre dolorosas de um passado sempre traumático são filmados e montados em um protocolo imutável, falados à câmera como se confessa um pecado a um padre. A sequência monta uma história após a outra, de modo a neutralizar qualquer perturbação individual na lógica organizada de um mesmo bloco (inevitável lembrar do brilhante “o povo vai falar!”, de Terra em Transe), adiando o contraplano fatal do professor que ouve e vê “todo aquele horror” do alto de um trono de impotência, com a distância acentuada por um traveling para trás.

Encenar é reafirmar, é trazer uma idéia à vida. Em uma entrevista a Conan O’Brian, o comediante Louis CK fala de seu incômodo diante de uma cena de A Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg, em que uma linda garotinha loira grita “goodbye jews!” com refinado tom de crueldade, enquanto um trem lotado de prisioneiros judeus ruma a um campo de concentração. O perverso, dizia Louis, é que, nos arquivos de alguma produtora norte-americana, existe certamente uma fita de vídeo com um teste de elenco em que 50 garotinhas se dedicam a cumprir, com extremo profissionalismo, aquele gesto absurdo, devolvendo-o ao mundo, fazendo-o existir novamente, atualizando-o com a convicção da ficção sem arestas. Essa mesma lógica assombra toda a projeção de My Class e fica consideravelmente mais nefasta quanto mais o dispositivo de feitura do filme é sublinhado.

De assistentes de direção que ensinam um jovem egípcio a como melhor prender o cinto ao redor do pescoço na encenação (não mostrada a não ser como preparação) de um suicídio na cadeia, à repetição da abordagem policial que transforma os estrangeiros em peões inevitáveis em uma linha de montagem, o filme é todo pontuado por “revelações dos bastidores” de seu jogo de encenação (incluindo segundos takes de uma cena, com diferentes intenções dramáticas) que situam o posicionamento moral no campo transparente do cinismo. Sob a aparente crise de consciência do velho império, o cinismo se confirma nesta crença de que não há mais nada a ser escondido, nem mesmo a encenação calculada para perpetuar a mesma estética (polítical, social, artística) que sustenta a desigualdade e a concentração de poder. Ao estabelecer um paralelo entre a autoridade colonial do primeiro mundo sobre o terceiro (ou da primeira Europa sobre a segunda Europa, para reafirmar a correção de rumos proposta por Antonio Candido em seu Formação da Literatura Brasileira) com a do diretor sobre seu elenco e seu drama, Daniele Ganglianone encontra, na metalinguagem, a ferramenta ideal para, de uma só vez, deslegitimar o drama do outro (expondo-o como encenação) e reafirmar seu próprio drama de culpa impotente (e que se quer inocente) do diretor às voltas com um elenco incontrolável e com um mundo que ele insiste fingir não compreender.

Dos tapinhas que o filme dá em suas próprias costas, congratulando-se por sua nobreza, surge uma das cenas mais desconcertantes do cinema recente: olhando para a câmera, o professor tece uma espantosa analogia entre um cachorro vira-latas que quer entrar em um prédio que não permite animais e os imigrantes que não têm permissão para continuar em seu país de exílio. Mais espantoso que a primariedade da analogia, só a absoluta transparência do discurso. My Class é uma jornada ao inferno que não só se disfarça de justiça social, mas que acredita no próprio disfarce quando dá de frente com um espelho.

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