Mr. Turner, de Mike Leigh (Reino Unido/França/Alemanha, 2014)

maio 18, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

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O crepúsculo e o sfumato
por Pablo Gonçalo

Há, entre o cinema e a pintura, muitas relações e diálogos possíveis, não apenas por ambas serem artes visuais ou por acontecerem nas telas, mas porque interagem com tradições similares, próximas e, se quisermos, contínuas. Godard, por exemplo, chamava os irmãos Lumière de os últimos impressionistas e via, nessa passagem do pincel à câmera, uma vontade partilhada de aceleração dos traços, das pinceladas e dos movimentos dentro da imagem, dentro do quadro e entre os planos. O último, o temporão de um período artístico, se pensarmos com esse ancião da Nouvelle Vague, antecipa o devir do seu ofício e da sua linguagem.

Mr. Turner, de Mike Leigh, não chega, felizmente, a ser uma biografia de J.M.W. Turner, mas um retrato íntimo e visual do derradeiro pintor clássico que pisou em terras britânicas. Filma-se, no Turner de Leigh, o ocaso de uma forma de pintar. Observativa, discreta, a câmera do diretor acompanha, aproxima-se e distancia-se do seu personagem como se fosse um álibi de uma história sem crimes; com movimentos sutis, quer menos contar o relato e o arco dramático de uma vida do que compartilhar com o espectador as sensações visuais, físicas, sensoriais e locais que rodearam não os quadros, mas o espaço entre o mundo, o quadro e o corpo – um espaço onde o sensível aflora. Sutilmente, Mr. Turner transforma-se num filme extremamente físico e sua matéria-prima chama-se luz. Se deus é o sol, como Turner balbucia antes de morrer – enunciando uma frase mais física que transcendente, Mike Liegh preocupou-se menos em traçar um retrato divino do seu personagem; optou, assim, por iluminá-lo, trazê-lo à luz, por alguns instantes, durante um filme.

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Como na pintura de Turner, narra-se descrevendo e captando a trajetória luminar que forma a imagem; é ela o caminho, o percurso físico que conduz a história. Filho de um barbeiro, Turner é um sujeito de origem simples, com hábitos vulgares, se contrastado com os nobres que frequentam seu atelier e que compram a sua obra. Seu sucesso ocorreu por dentro da academia e dos salões de arte, por meio da sua técnica e da sua inspiração artística, e acabou destoando totalmente dos traços detalhistas e minuciosos de John Constable, com quem ele competia frente a frente, quadro a quadro. No entanto o estilo de Constable é apreciado pela corte enquanto os reis e os príncipes da coroa britânica desprezavam, à época, as pinceladas imprecisas de Turner.

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O olhar de Mike Leigh capta delicadezas emocionais que reverberam em Turner. Embora famoso, o pintor inglês opta por um resguardo, uma discreta reclusão. Na sua vida íntima, passa a morar em outra casa, esconde seu verdadeiro nome e seu ofício. Nesse mote, o cerne da história concentra-se no encontro com Hannah Danby (Dorothy Atkinson), no norte da Inglaterra. Turner já é um senhor de meia idade quando encontra essa senhora viúva, de quem aluga um quarto de frente para o mar (ponto de vista primoroso das suas famosas paisagens marítimas). Por ali, naquele local do olhar, vai pouco a pouco ficando, quedando naquele lugar. Mais do que um amor romântico, há nesse gesto uma vontade de permanência e um anseio de companhia cotidiana, uma intimidade de pequenos instantes, que destoa do teatro da corte e da nobreza, com os quais Turner, por conta do seu ofício, também convivia.

Como o movimento do sol durante um longo dia de verão, Mr. Turner descreve o entardecer da vida do pintor. Das viagens pelas paisagens européias, do sucesso e do reconhecimento – como se o filme começasse no auge da sua carreira – passa-se para um lento entardecer e chega-se ao crepúsculo dos seus últimos dias. É justamente esse movimento de dissolução que a requintada fotografia do filme atualiza. Paralelamente, Mike Leigh registra passagens tecnológicas. Há, de início, uma empolgação pelos mares, pelos barcos sofisticados que a Inglaterra produzia. Na sequência histórica, surge a locomotiva, cujo movimento da fumaça espalhando-se pelos ares fascina as retinas de Turner. Essa fumaça acaba influenciando a estética do pintor, e o seus últimos quadros, não por acaso, expressam momentos de dissolução da luz, os quais Leigh traduz para os instantes de desmembramento físico – visual e corporal – da vida de Turner e de todas as pessoas que estão ao seu redor. Por último, chega a fotografia, a principal novidade técnica da época, e Turner percebe, ali, o ocaso da sua arte. De forma desconfiada e curiosa, ele posa para uma fotografia e chama Hannah, agora sua companheira, para o acompanhar. Consciente de que a câmera é mais apta para fixar e eternizar, ele percebe que o seu ofício declinará. A fotografia representaria, para o Turner do século XIX, tanto o fim da pintura como a melhor mídia para que se sobrevivesse ao tempo. Como sujeito, ele fenece. Como pintor, ele declina. Posto o sol, posta a câmera escura, resta a fumaça do quadro a soprar sua tinta, sua cores, seus instantes, até o último instante. Mesmo encarando essa morte, o quarto negro dessa câmera fechada, Turner continua a pintar, insistentemente, com o furor insano que caracteriza os melhores artistas.

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