Mountains May Depart (Shan he gu ren), de Jia Zhang-ke (China/França/Japão)

janeiro 25, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

* Cobertura do 53o New York Film Festival

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Power to the people
por Fabio Andrade

Mountains May Depart começa com uma sequência imediatamente memorável de Zhao Tao, atriz-ícone de Jia Zhang-ke, no centro de um tableu, puxando a coreografia de um grupo que dança ao som de “Go West”, hit dos Pet Shop Boys lançado em 1993. O uso de música já é marca registrada no cinema de Jia Zhang-ke e os corpos eletrificados pelo ritmo incessante da sequência de abertura remontam mais especificamente ao final de seu belo documentário Memórias de Xangai (2010), aparentemente acomodando o espectador em território conhecido. Porém, a despeito das claras semelhanças, algumas diferenças entre as duas sequências apontam para direções que normalmente não são encontráveis nos filmes anteriores de Jia Zhang-ke.

A primeira diferença é bastante visível: enquanto I Wish I Knew terminava com uma única pessoa dançando entre tábuas e caminhões dentro de um armazém, chocando duas facetas diferentes da galopante modernidade chinesa, Mountains May Depart abre com mais de uma dúzia de atores em marcada coreografia. A outra diferença chega pela escuta: a canção, aqui, não está presente apenas para produzir a bruta intrusão de ritmos, texturas e timbres, mas pelo conteúdo lírico que ela empresta ao filme. “Together we will go away/ Together we will leave someday / (…) Together we will start life new / Together, this is what we’ll do / Go West, life is peaceful there / Go West, in the open air / Go West, where the skies are blue / Go West, this is what we’re gonna do”. Se I Wish I Knew desmaterializava todo um processo histórico nos ritmos concretos de um futuro ainda a ser desvendado, em Mountains May Depart ir para o Ocidente é estabelecido como o desejo seminal de toda uma geração. Partindo daí, somos deixados com uma inquieta pergunta: a qual preço? A partir daí, o filme se ocupará essencialmente de demonstrar sua resposta.

Seria exagero se ocupar tanto de dois aspectos de um prólogo também potente por diversos outros motivos, não fossem esses aspectos uma ilustração perfeita das ambições e dilemas de Mountains May Depart, que são também claros descolamentos, se não totalmente impensáveis (diz o profeta de fatos consumados), de seu trabalho anterior. Pelo menos desde sua obra-prima de 2000, Plataforma, Jia Zhang-ke vem redefinindo as possibilidades de um cinema político pela compreensão de que a simples exposição de personagens à passagem do tempo em um país em permanente transformação dispara toda sorte de conflitos políticos e sacrifícios pessoais. A rigorosa ambivalência de Plataforma em relação aos efeitos dessas mudanças se tornou mais rarefeita em seus filmes mais recentes, dando lugar a uma visão mais claramente crítica – e, considerando o que se vê em tela, não é difícil culpá-lo por isso ou acreditar que essa postura tenha sido danosa aos filmes. Ainda assim, a despeito desse apropriado pessimismo, em filmes tão distintos quanto O Mundo (2004), Em Busca da Vida (2006) ou Um Toque de Pecado (2010), Jia Zhang-ke inaugurou e explorou novas possibilidades da política no cinema ao capturar não mais que as vibrações da macropolítica nas paisagens e vidas dos personagens. Esta abordagem tornava desnecessária a construção de contradição por meio dos personagens, pois a estrutura sociopolítica do mundo onde vivem já é perversa o suficiente para descarrilar suas vidas. A China trazia a cena; Jia Zhang-ke simplesmente colocava os personagens em pontos estratégicos por um determinado período de tempo. A escolha ilustrada pelo número de dança que abre este seu filme mais recente vai contra os fundamentos dessa abordagem: ao passar do individual ao coletivo, do final aperto ao princípio predestinado, e da fisicalidade do som à natureza discursiva dos versos, Jia Zhang-ke adentra decididamente o terreno das alegorias políticas.

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O todo de Mountains May Depart só faz aprofundar essa impressão. O filme consiste de três histórias diferentes, muito como no anterior e ótimo Um Toque de Pecado, um slasher film originado da percepção de que somente as convenções do gênero poderiam retratar adequadamente o que acontecia na China no momento. Mas, diferente de Um Toque de Pecado, as histórias aqui não criam uma teia multifacetada e contraditório de relações, mas sim uma progressão linear, encenando as realidades conflitantes dos mesmos personagens em 1999, 2014 e 2025. O desejo migra decisivamente da observação para a historiografia, e a pedra fundamental da luta de classes é exposta em todo seu didatismo: a personagem de Zao Thao tem de escolher entre ter um relacionamento amoroso com um de seus dois amigos de infância, Liangzi (Dong Liang Jing) – um doce operário que luta contra as indignidades diárias de um ser explorado – ou Zhang (Jinsheng Zang) – que se tornou um capitalista milionário, dono de companhias de petróleo, aviões e uma constante impertinência. Muito como a China, no prólogo prolongado de 1999, sua personagem escolherá o capitalismo, e o segundo e terceiro episódios vão esclarecer tão escolha como um erro imperdoável.

A alegoria é claramente montada como conto admonitório, do destino dos personagens à mudança do aspect ratio (a primeira história é em 1:1.37; a segunda em 1:1.85 e a terceira em 1:2.35, mimetizando a aparente expansão do mundo dos personagens, em outra instância de didática representacional) e variedade organizada de instrumentos na banda sonora (as cordas que surgem em 2014 são substituídas por sintetizadores em 2025, por exemplo), mas nada disso parece ser suficiente. Mountains May Depart grifa abusivamente a transparência da artificialidade de seus procedimentos – após um divórcio fora de quadro, o filho de Zhao To (Dong Zijian) não só vai morar com o pai na Austrália, como chega até mesmo a mudar seu nome para Dollar – para estabelecer seus personagens como arquétipos. Mesmo dentro desse registro, é claro que não se tratam de pessoas comuns obrigadas a calçar os sapatos que lhe foram reservados; são, na verdade, classes sociais moldadas à semelhança da atitude de personagens arquetípicos – procedimento que cria uma perigosa, quiçá irresponsável, sensação de distância.

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É interessantes que palavras tão caras ao Cinema Novo quanto “alegoria” e “arquétipo” sejam sugeridas neste texto pelo filme, com conotação oposta. A diferença é que, para um cineasta como Glauber Rocha, arquétipos eram sempre um ponto de partida, nunca um destino, e a natureza alegórica na narrativa progredia constantemente em direção ao embaralhamento do sensível (“Até o sertão virar mar, e o mar virar sertão” é frase emblemática por bom motivo). Em Mountains May Depart estamos muito mais próximos do binarismo simplificador de um filme como Riocorrente, de Paulo Sacramento, onde os arquétipos servem como meras demonstrações de uma proposição que pode ser rapidamente compreendida – neste caso, logo na cena de abertura – e as suas diferentes ilustrações raramente oferecem oportunidade para derivar dessa função original.

Em esquema tão fechado, é natural que a estrutura possa revelar mais sobre o filme do que qualquer uma de suas partes, que raramente encontram folga para respirar como todo, e que o processo dialética seja retirado do mundo do filme e realocado na estrutura fílmica. Não deixa de ser irônico, porém, que Jia Zhang-ke, justo ele, não se atente que a estrutura fílmica pode ser tão perversa quanto qualquer outro sistema, e que tudo o que o filme faz com seus personagens não é em natureza muito diferente da mão pesada do capitalismo. Mesmo momentos que carregam contradição inerente – a bela apertura da segunda parte; a complementaridade entre dinamites e fogos de artifício; a bela cena final; o diálogo entre mãe e filho no segundo episódio, no qual Zhao Tall diz ter tomado o trem mais lento para poder ficar mais tempo ao seu lado – são solapados pela função que carregam em um filme já reificado, que funciona como uma máquina bem azeitada, mas há muito obsoleta. Para a maioria dos cineastas, um filme como Mountains May Depart chegaria como um triste acidente, soterrado pelo peso de uma estrutura excessivamente determinista. Para Jia Zhang-ke, um dos maiores cineastas em atividade, é difícil não perceber uma desconcertante confiança na clareza desse gesto, e percebê-lo como menos do que um monumental passo na direção errada.

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