Minha Mãe (Mia Madre), de Nanni Moretti (Itália/França/Alemanha, 2015)

setembro 1, 2016 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

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A primeira e a última vez
por Luiz Soares Júnior

“Eu proponho admitir como uma lei que os seres humanos são unidos unicamente entre eles por dilacerações ou feridas”.

Georges Bataille, A Experiência Interior

“Creio que as circunstâncias da vida, passageiras como são, nos instruem menos sobre verdades duradouras que sobre as ficções fundadas sobre estas verdades”.

Madame de Staël, Des circonstances actuelles qui peuvent terminer la Révolution et des principes qui doivent fonder la République en France

Quase no final de Mia Madre, em um destes campo e contracampos mágicos que integram à vida vivida a possível vida imaginada, a cineasta Margherita (Marguerita Buy) interroga sua mãe sobre o que está pensando, ao que a morta, voltando-se ligeiramente para raccordar com o presente expositivo da questão, responde: “Amanhã. Penso no amanhã”. As crônicas afetivas (mas também políticas, sociais; e quem disse que a crônica não é, como a épica, um gênero de vistas largas?) de Moretti interrogam-se precisamente sobre os processos e os papéis em questão, e portanto nada deve interessar ainda a uma morta senão o dia de amanhã, pois tudo (os mortos como os vivos, a veleidade imaginária como a ação: e Mia Madre registra não apenas os eventos que acompanham o desaparecimento da mãe de Margherita como também a impressão fantasmática destes na experiência interior da filha, sob a forma de vidências hipnagógicas ou sonhos) constitui-se em um continuum de presença, já que o que importa é o escrutínio continuado dos rastros deixados na vida dos outros, dos efeitos que sua passagem suscitou no Autrui, para falar como Lévinas (o Outro humano): love streams.

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Os corpos aqui não são, como no cinema de Pialat, containeres opacos de forças que um gesto brusco dissipa, mas processos afetivos que perduram para além da extinção da vida biológica; se temos a intercalação equívoca, presente tanto aqui quanto em O Quarto do Filho (2001), entre dimensões distintas mas conexas de ser – o sonho, o delírio, além do registro clínico e do “psicomelodrama” -, é porque os personagens “humanos demasiado humanos”não apenas são como existem, e esta condição compreende um horizonte diferencial de manifestações: tudo deve concorrer para radiografar o quid da personagem, seu status existencial. Para Moretti, nada deve ser apenas natural, mas afetivamente significativo – e isto sob vários pontos de vista, raccordando esferas a princípio irredutíveis, do ser social ao erótico, do possível ao atual; os papéis desempenhados pelos personagens em suas vidas e nas vidas em comum com os outros, os valores que presidem a estes papéis e os processos (aqui, como em O Quarto do Filho, o processo in extremis do luto) que lhes servem de horizonte ou ponto de fuga hermenêutico são os vetores através dos quais o cineasta compreende esta polivalente simbiose entre Homem e Mundo, Homem e Homem.

Valores, papéis, processos: Margherita precisa abandonar o casmurro papel da diretora tirânica de cinema – o filme começa “dentro de uma diegese” de filme, em um embate com a polícia: progressivamente, este confronto com o Outro será completamente interiorizado, e o décor transferido para a sala de estar da mulher, seu quarto, e finalmente mais para dentro e para trás: ela vai se mudar para a casa da mãe, e recomeçar a conjugar-se – e investir em funções e sistemas libidinais novos, tornar-se este Outro que os outros esperam de si. Mia Madre conta a história de seu aprendizado interior, desta passagem, a princípio árdua e vacilante, do lado de Fora para o de Dentro, mas que, à medida em que recua no tempo e no espaço da cave materna, proporciona a Marguerita o experimento de uma dolorosa ternura, acremente necessária, para mudar de pronome e de direção na vida: fragilizar-se é um tormento tantálico, mas sua recompensa acresce em resiliência e abertura existencial à renovada rama que cresce à sombra da ferida. Se Moretti não abdica dos mea culpa em pianinho (na confissão diante do ator americano, na hora da filmagem; no constrangimento dos olhares enviesados perante a mãe, pedido de perdão figurado no corpo sempre languidamente encarquilhado de Margherita Buy, incapaz de tocar Ada), também não nos poupa do stream of consciousness da protagonista, que aqui e ali re-apresenta a presença da mãe ao bel-gosto de suas possibilidades de contato, e no-la restitui como daimon, sombra afetuosa ou aparição de Emaús, ao final. Tanto os vetores emocionais de presença quanto os mais mediados são reivindicados aqui para tentar dar conta deste processo intensivamente infinito que se encarna no gesto finito do romanesco (e o grande cinema sempre pode ser entendido segundo os padrões romanescos da grande literatura, grande teatro e pintura: o lugar do encontro de uma absoluta separação), a saber: “de deixar aparecer uma nudez decididamente subtraída à fenomenalidade, enquanto correlação de uma ‘visada’ humana: menos um fenômeno que uma experiência, menos uma tomada de vista que uma sensação, um contato” (Jean-Luc-Nancy, prefácio às obras completas de Lévinas).

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É sob o impacto, diapasão e inflexão do processo de perda da mãe que Margherita pode ter a “experiência interior” de um definitivo encontro com aquela de quem sempre esteve distante, na medida em que uma vivência interior, anterior à fenomenalidade da circunstância causal, permite-nos enfim abordar a mãe possível, a mãe sonhada ou desejada, a mãe monstruosa kleiniana, a Mãe total, plena e indiferenciada da vigília documental e da penumbra analógica do sonho. Mia Madre solicita tanto nossa veemente emoção como nossa atenção observadora, porque o cinema, arte total do século XX, exige a manifestação do fenômeno e a sua descrição aprofundada, e em um mesmo movimento. Quando Pialat, em 1974, quis filmar a morte de sua mãe, foi com o fotógrafo Almendros no cemitério da cidadezinha onde estava enterrada para obter autorização da prefeitura e filmar o corpo em decomposição da mulher. Esta cena não está em nenhum plano de La Gueule Ouverte (1974), o filme acabado, embora seja o seu fora de campo fantasmático, o seu “buraco da fechadura” originário; mas o cinema de Moretti, embora descreva o mesmo processo de La Gueule Ouverte, não se contenta com o gênio autopsista de Pialat, e busca restaurar para o espectador a integridade de uma experiência total, na qual tanto o fenômeno (o novelesco emotivo, a “relação” propriamente dita entre os personagens) quanto a sua avaliação segundo um prisma descritivo se manifestem, impressionista e analiticamente. Como em O Quarto do Filho, o luto oferece aos personagens – o pai psicanalista lá, a filha cineasta aqui – a oportunidade de um contato pleno com o morto, talvez pela primeira vez, e é ao integrar ao patchwork do filme vozes e diegeses várias (o morto rememorado, imaginado) que esta restituição integral da presença pode vir a se dar. Se aqui os planos são mais longos e sinuosos e o filme se demora mais detidamente em percutir o intersticial espaço de jogo entre o Dentro e o Fora, o Mesmo como o Outro – sublinhe-se a nota patética, espécie de barômetro emocional que registra os picos como as vacilações da protagonista, introduzida pelas cenas do personagem de Turturro – , é porque, ao contrário de O Quarto do Filho, a morte ainda não se deu, e a intensidade do “plano sequência e locação” do cinema moderno deve ser mais premente, já que se trata de sismografar o processo, o sendo. Neste sentido, para ser inteiramente apreendido em seu diapasão elegíaco, o filme deve ser revisto “ a partir do fim”, e o tempo do filme precisa ser interrogado sob a égide messiânica da interpretação do tempo “que resta”, como Agamben leu as epístolas paulinas: se tudo solicita nossa atenção em Mia Madre, afetiva ou analítica, é porque o tempo do filme é uma preparação para a morte, e todo plano deve ser vislumbrado sob o sub species aeternitates deste plano sequência virtual que é a rigor todo filme (Pasolini), moldado e modulado pela morte, cuja figura manifesta no cinema é a montagem.

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Mas por que o luto – aqui como processo, em O Quarto do Filho como experiência acabada – é a experiência limiar (a experiência da experiência) que nos permite apreender a totalidade da vivência de um ente, e assim reconciliar e suturar aquilo que na vida permanece fragmentário, hesitante, informe? que aqui permite à filha reencontrar a mãe integralmente, não apenas no tête-à-tête da presença física, mas no sentido absoluto do ser presente, a que se anexam os modus do imaginado e do rememorado, da voz off e do duo (o irmão, a filha), da polifonia concertante (a família oficial, a família do filme a ser realizado) como do scherzo intempestivo (a chegada do ator americano)? todas as figuras, todos os diapasões, a experiência Uma e eterna… um insight de Heidegger em um parênteses decisivo de Ser e tempo nos permite apreender a maneira através da qual o déficit da vida talvez seja nossa única chance de aceder completamente à vida… o mestre de Freiburg nos adverte que a forma pela qual um objeto ou um corpo nos aparece finalmente como “dado”- como coisa, e esta condição não é, como na linguagem corrente, qualificação menor em filosofia; justamente o contrário: das ding – é quando ele sofre uma quebra, falência, uma perda de seu quid: é sobre o corpo doente que passamos a nos debruçar – sobre “o corpo” como corpo -, que nos encarniçamos em compreender sua essência, funções, para enfim restituí-lo ao que Heidegger chama de “circuito da pre-ocupação”: para curar (o corpo), consertar (o objeto), e assim arremessá-lo novamente para o contexto sem o qual nenhuma vida existe significativamente. Unicamente quando o corpo adoece e o objeto quebra é que os compreendemos “enquanto tais”, pois até então o corpo e o objeto eram meios para a realização de nossas faculdades e a consecução de nossos fins: o conhecimento começa no preciso limiar em que a vida, como a chama de uma vela sob o influxo das intempéries do ambiente, vacila e finalmente extingue-se. No intervalo entre este vacilo e esta extinção, entrincheira-se o conhecimento, místico como analítico; e não podemos ver que Mia Madre nos propõe justamente esta face de Janus do conhecimento do ser amado, intensivo como crítico, introspectivo como social, meu quanto nosso?

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Em O Quarto do Filho, era a reavaliação dos papéis – do pai, do psicanalista – que o filme suscitava; aqui, é a uma inquirição mais profundamente processual e sintética (ao mesmo tempo processual e sintética) que o cinema de Moretti conduz, pois podemos ter acesso tanto ao sorriso miraculoso da filha que, no último plano, reencontra na morte a mãe transfigurada, quanto ao passado da mãe, professora de latim, e facilmente imaginamos uma possível conciliação entre ambos os arquétipos – a Filha, a Mãe, o Dentro como Fora -, a ser experimentada (uma experiência, mas também um experimento) no imaginário do espectador, o verdadeiro leito de Procusto onde toda experiência, existencial como cinematográfica, começa e termina.

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