Mate-me Por Favor, de Anita Rocha da Silveira (Brasil, 2015)

outubro 7, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

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As arveres somos nozes
por Pedro Henrique Ferreira

Mate-me Por Favor não é um filme de gênero. Não é um thriller, pois o espectador não é em momento algum colocado numa situação de suspensão. Não há terror, já que o espectador não é aterrorizado por nenhum mal (nem explícito, nem implícito). O sangue jorrado na tela é figura de estilo, e não a marca de um horror repugnante. O mais próximo do horror que o filme chega são os stills das vítimas. Não é um filme teen, porque não há inclinação rapsódica alguma ao drama adolescente ou verdadeiro esforço de criação mais elaborada deste universo. Não é nada disso. Embora flerte suavemente com todos eles, jamais adere a nenhum. Essa indistinção de gêneros não é em princípio um problema, principalmente em um filme no qual aparentemente o estilo e a criação de um certo clima são mais importantes do que a adesão a uma cartilha. O problema é este próprio movimento de indistinção, que atinge o longa-metragem de estreia de Anita também em muitos outros graus.

Não é exatamente que o filme se perca “em seu exibicionismo formal”, como escreveu o crítico Rodrigo Fonseca, por conta da “ausência de um projeto estético capaz de nortear sua investigação”. Por um lado, o maneirismo excessivo já criou na história do cinema obras ímpares. O exercício do estilo pelo estilo pode ser algo cinematograficamente vigoroso, e não necessariamente algo criticável. Por outro lado, o projeto estético de Anita é esclarecido: adere a uma cartilha típica de muitos filmes contemporâneos que circulam em festival e deste universo retira boa parte de suas escolhas formais, da radicalização dos focos ao excesso de slow motions, tableaux fixos e de tempo dilatado, ruídos sonoros elevados e trilha ambiente etérea. O problema é o que está por trás deste exibicionismo formal, que é antes uma questão de concepção.

O tema do universo adolescente da Barra da Tijuca é retratado, porém não plenamente discutido. A todo momento, Mate-me Por Favor se esquiva de debater de uma maneira mais sofisticada todas as questões morais implícitas na narrativa, reduzindo a trama a uma ambientação para o exercício plástico, por outro lado, nesta redução, ficando em cima do muro quanto aos dilemas essenciais ali representados. Os adolescentes portam uma violência e pulsão de morte e, apesar de presentificar esta pulsão com algum vigor na tela, o filme é incapaz de avaliar o que exatamente ela significa e quais as suas consequências. Tampouco demonstra a sua origem. Brevemente, aponta de maneira vaga e sem comprometimento (e ainda equivocada) a ausência dos pais, que simplesmente não aparecem no filme, como fator significativo para o comportamento daquele conjunto de jovens. Da mesma forma, a trama policial não ganha centralidade e não conduz nada muito bem a lugar nenhum. Ela não existe senão como um fantasma assombrando o ambiente, justificando os muitos planos de obras, os travellings acompanhando a protagonista pelas ruas vazias do bairro e alguns outros malabarismos formais que se encerram em si mesmos. Não passa de brincadeira, como bem denota a cena absolutamente redundante em que os jovens brincam de detetive. Existem danças de passinho, funks antigos e missas evangélicas, mas nada que amarre ou justifique realmente a necessidade de suas existências. Esvaziado de um conceito mais significativo, o que resta é a forma. Exercitá-la. E a forma sem conceito é necessariamente artificialidade. Por uma via distinta e menos bem articulada, o longa-metragem esboça uma máxima semelhante à de Boi Neon, seu compatriota na Mostra Horizonte do Festival de Veneza: a arte é adereço, é pintura de cores.

A imagem final de Mate-me Por Favor é de uma importância ímpar, possivelmente por ser o sintoma de tudo isso que estou falando. Quase como zumbis, diversos “assassinos” levantam dos matos de um terreno baldio e, após terem expurgado suas pulsões, voltam à vida cotidiana pela manhã. O assassino não tem rosto. Ele é um: João (Bernardo Marinho). Ele é dois: João e Bia (Valentina Herszage). Ele é, enfim, todos os jovens. Em última instância, somos todos nós. Ninguém e todos nós. Em Pulse, Kiyoshi Kurosawa também falava de suicídios múltiplos, pulsões vagas que pertencem a todos, assassinos sem rosto… Mas estes temas ganhavam o caráter universal de uma radiografia social, um sentido crítico preciso, e não tão somente o arcabouço para se perseguir um conjunto de sensações formais. Os personagens de Pulse eram vistos com um olhar humano e complacente, não eram zumbis: assumiam posições morais e lutavam até as últimas consequências para não serem tragados pela tal corrente do mal. Embarcavam contra o fim do mundo ao invés de retornarem às suas vidas cotidianas. É justamente esta inviolabilidade moral que torna o mal aterrorizante. E tornava Pulse um filme de gênero.

A impressão que temos é que Mate-me Por Favor não leva tudo aquilo muito a sério, que não há a dimensão da importância de sua própria fala. Diante daquilo que não é muito importante, podemos nos omitir de uma posição. A morte não significa tanto. A morte não significava nada também no livro que talvez tenha dado origem ao título, o Mate-me Por favor de Larry McNeil e Gilliam McCain, que retrata a geração de 68 do punk nova-iorquino. Mas para aqueles punks, a pulsão de morte não era recalcada: existia porque havia um problema sistemático naquela cidade e naquele momento que os levavam a crer que já estavam a vivenciar o apocalipse. Era, à sua maneira, uma reação ética daquela geração. Talvez se o longa-metragem de estreia de Anita Silveira mergulhasse profundamente em seu tema e se aventurasse, ao invés de se limitar a criar climas e tentar nos deslumbrar com recursos estéticos que se encerram em si mesmo, descobriria eventuais explicações dos comos e porquês deste sentimento estar presente em jovens da Barra da Tijuca no século XX. Seu principal problema é sequer chegar perto de fazê-lo. No fim das contas, o assassino múltiplo e sem nome não é muito diferente do “inimigo agora é outro”, quando, nos derradeiros instantes de Tropa de Elite 2, mostra-se uma imagem aérea de Brasília, a voz em off do capitão repetindo “o sistema é foda”. Em ambos os casos, filmes quase diametralmente opostos entre si, há um esforço em saltar do inimigo particular para um inimigo comum, genérico, sem rosto. O problema deixa de ser da ordem individual e se torna uma questão da engrenagem, uma engrenagem que não fica muito clara ou explicada – apenas apontada.

Não nos detemos somente nos problemas. Como já em seus curtas-metragens anteriores, a diretora demonstra um senso plástico aguçado e excelente capacidade de composição. Seu longa-metragem de estreia adiciona a este arsenal o talento de dirigir atores: o núcleo central composto pelas quatro meninas é realmente o que o filme tem de melhor. Mas isso tudo ainda não é o suficiente. É preciso saber o que dizer e como dizê-lo. A técnica não suprirá a tudo, o cinema pede mais. A tentativa de sintetizar algo que já vinha sendo trabalhado nos curtas-metragens parece mais um entrave do que um facilitador. Mas este ainda é seu primeiro longa. Esperemos (e torcemos) para que a continuidade seja um fator de elevação para a produção carioca.

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