Lukas o Estranho (Lukas Nino), de John Torres (Filipinas, 2013)

outubro 25, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

lukasoestranho

Cinema inocente
por Filipe Furtado

“Novo procedimento: um plano é plano.cada tomada é!fragmentos que se organizam e se baralham e se confundem verdades e mentiras a arte da falsificação a mentira artística e este conceito moderníssimo de arte como deformação: cinema inocente”.

Júlio Bressane

Lukas o Estranho é um filme infantil. Não numa perspectiva de gênero, mas de olhar. O filme busca mais do que simplesmente traçar uma descoberta e um processo de aprendizado, mas recuperar para o cinema um momento primeiro do olhar.  Não se trate de um elogio à ingenuidade – longe disso, na sua construção Lukas o Estranho não poderia ser mais sofisticado – mas de uma inocência da ordem da relação câmera e objeto. Para que Lukas, o personagem, faça o seu trajeto de aprendizado do mundo, é preciso primeiro que Lukas, o filme, chegue até este mundo com esta inocência inicial.  É um processo que traz à memória alguns filmes de Júlio Bressane, cineasta que em certa oportunidade até nomeou um média Cinema Inocente (1980), e que geralmente chega às coisas com a mesma facilidade e clareza com que John Torres aqui, a despeito de todo o discurso intelectual que por vezes envolve seus filmes.

Se a grande questão do bom cinema filipino é sempre a história e principalmente uma crise de representação da mesma que o cinema precisa interromper, nos filmes de John Torres esta história vai sempre se confundir com a memória pessoal, e este movimento de retomar a história ganha o status de uma reconstrução da experiência. Se nos seus primeiros filmes, Todo Todo Teros (2006) e Quando Eu Era uma Criança Lá Fora (2008), esta memória era da ordem pessoal, aqui trata-se de recriar toda uma experiência para o menino Lukas (interpretado por um sobrinho do diretor). Lukas, o Estranho se enuncia como uma espécie de carta cinematográfica para o menino Lukas. Ao espectador cabe o papel de observar este dialogo entre Torres e seu personagem, com seu filme pronto para dar corpo a esta memória em processo. Logo no começo do filme, ele já anuncia a Lukas “eu vou me tornar sua memória”, e toda a experiência posterior fará valer este aviso que é ao mesmo tempo duro e dotado do fascínio da descoberta, na medida justa de um processo de aprendizado.

O primeiro anunciado também avisa “você vai entender seu pai” e “você vai se apaixonar por ela” e Lukas, o Estranho se desenvolve justamente entre estas duas chaves. O filme abre com um trauma que não poderia estar mais próximo da fábula infantil: o pai de Lukas anuncia que é um tikbalang, figura do folclore filipino, espécie de homem cavalo. Se ele é filho de um homem cavalo, nada mais natural que se atormentar com a ideia de que se está também destinado a ser um. Lukas, o Estranho é muito hábil na forma como se aproxima do seu personagem principal e em como faz a passagem da crença na fábula para o deslocamento do seu personagem central. Lukas não é como os outros garotos, nós sabemos, justamente porque ele passa pela mesma puberdade de todos eles; mas, dentro da crença que move personagem e filme, é também porque está destinado a se tornar ele próprio tikbalang. Se a memória é um elemento central nos filmes de Torres, ela é sempre uma memória melancólica, assombrada… lembrar e viver uma memória nunca será fácil, porque retornar ao passado é sempre recuperar também um desajuste pessoal. Logo, nada é mais natural do que ele ter grande facilidade justamente em descrever este processo complicado que é crescer.

A outra ponta de Lukas, o Estranho é a chegada à vila de uma equipe de filmagem e com ela toda uma nova possibilidade de fascinação, com o aparato do cinema e com a figura da atriz cuja presença completa esta passagem do garoto. O cinema afinal permite a descoberta e ajuda a dar corpo a esta memória, a toda uma experiência histórica que, do contrário, terminaria apagada. Boa parte dos quatro longas de John Torres até aqui partem desta premissa, e Lukas, o Estranho a ilustra com uma clareza de proposito ímpar. Trata-se do primeiro filme de Torres rodado em película, no caso um 16mm que é essencial para os significados do filme, o que por si só, neste momento de desaparecimento do filme, é uma opção bastante política, com o próprio Lukas, o Estranho realizando, na textura da sua imagem, o resgate concreto que ele articula de outras formas ao longo da projeção.

É um resgate do filme que encontra seu complemento no resgate que Lukas, o Estranho faz da história do cinema filipino. O filme lança mão de imagens de um filme desconhecido de Ishmael Bernal, My Husband Your Lover (1974), que se desdobra como filme dentro do filme e lhe oferece personagens (a atriz) e um espaço para Lukas se perder. Não é uma escolha acidental, já que Bernal (mais conhecido no ocidente por City After Dark (1980) e Himala (1982))  é um destes cineastas mencionados, mas raramente vistos, com a história oficial do cinema contente com no máximo um cineasta filipino (seu conterrâneo Lino Brocka).

Mais do que a figura de Bernal, porém, é toda uma ideia de cinema filipino muito anterior a de nomes que hoje conseguem espaço no circuito de festivais, como Lav Diaz e Raya Martin, que Lukas, o Estranho retoma, o mesmo cinema filipino que representa a memória audiovisual da ditadura de Ferdinando Marcos que tanto assombra os seus exemplares contemporâneos.  Se cineastas como Torres partem com frequência da constatação de uma crise de representação na história filipina, Lukas, o Estranho parte justamente para encontrar os traços que resistem nesta representação, no processo de aprendizado do garoto Lukas. Em todo seu sentimento de descoberta, o filme encontra também todo um aprendizado pelo cinema e do cinema. O aprendizado final que o filme enuncia ao menino Lukas é o de reconhecer que ele tem uma história.

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