Laura, de Fellipe Barbosa (Brasil, 2011)

dezembro 4, 2013 em Cinema brasileiro, Do Arquivo, Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira

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* Originalmente publicado em Novembro de 2011.

Por perto
por Pedro Henrique Ferreira

É curiosa a extravagância com que Laura, uma imigrante argentino-brasileira que frequenta a alta sociedade nova iorquina, habita o mundo: nos remete a um glamour ao mesmo tempo em que nos remete a uma decadência, a uma vida de festas da mais fina elegância tanto quanto a quartos empilhados de sucatas, à plena integração de uma figura com o seu redor tanto quanto à sua imensa solidão. O que há de absolutamente excepcional no caráter de Laura é este jogo entre a imagem de si mesmo que ela arquiteta (a de uma espécie de diva), e a fragilidade que há nesta montagem – uma fragilidade a qual, politicamente, a mulher opta por esconder. É uma figura “às bordas da modernidade” (nas palavras de Fabio Andrade), justamente por ter plena consciência de sua representação, da performance que deve exercer, do que pôr à mostra, mas também do que ocultar, dos limites da privacidade que deve impor ao olhar do mundo para que esta imagem sagrada permaneça incólume.

Mas até deste esconderijo surgem fissuras, e é por elas que o documentarista Fellipe Barbosa opera nesta sua versão longa de Laura (o texto linkado acima analisava seu formato em média metragem). O diretor dá a volta, registra estas fissuras e tenta penetrá-las, expandir os buracos nos muros que Laura ergueu para desvendar o que ela esconde: os mistérios de sua condição econômica, o seu passado, sua relação com um ex-namorado, a prostituta brasileira que é sua vizinha – dentre muitas outras coisas que a personagem, esculpindo sua persona, teria posto às sombras. Num impulso laicizante, Fellipe Barbosa registra não tão somente a mitologia que ela constrói, mas também suas fraquezas e fragilidades, o que há de nobre, belo e sonhador na aspirante à elite de Nova Iorque, mas igualmente o que há de pérfido ou triste. Trata-se, portanto, de uma busca pela verdade plena de Laura, disposta a romper com sua privacidade e pô-la nua frente ao aparato.

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Mas trata-se também – é de se supor, e justamente nesta busca – de forçar esta persona a se submeter a certos parâmetros que o documentarista mesmo coloca – o que fica claro nos momentos que ele lhe faz pedidos que são desde inofensivos (por exemplo, aguardar a câmera para andar) até ultrajantes (no momento que Laura encontra as amigas na boate). Laura seria um mero documentário ingênuo e metalinguístico sobre um contraponto entre posturas e relações ambivalentes, não fosse a resistência em contrair-se que o documentarista encontra na figura extraordinária de Laura. Ao sentir-se invadida, perde a confiança no diretor – diz a ele, sem pudor, que ele acha que conhece quem é Laura, mas que, no fundo, não faz a menor idéia. Por fim, sente-se humilhada ao ponto de cortar relações e pôr água abaixo a própria existência do documentário.

Forçosamente, o diretor, que a esta altura já é parte integral do filme, passa por uma crise de consciência ao ver que não há como extrair de Laura algo que não aquela diva esplendorosa e anacrônica que ela insiste em representar sem, num viés contrário, admoestá-la com suas próprias expectativas. Não sabemos exatamente os motivos que a levam a assumir tal figura, ou mesmo se ela acredita profundamente nesta exuberância nostálgica. Mas ficam claros os limites de acesso a uma pessoa ou personalidade tão insistente em sua tesura, e que conhece já mais do que bem o que é atuar ou propagar uma imagem de si mesmo. Este arrazoamento contínuo entre as expectativas que o diretor tem para com ela e as idéias que ela tem de si mesma cria múltiplas camadas que se plurificam e nos afastam desta “Laura” original e incogniscível. Mas ainda que esta “Laura” seja esquecida e deixada para trás, mesmo este esquecimento ainda é importante, pois dá o tom de perda e tristeza, de desistência forçada/busca interrompida do documentarista, que é onde Laura encontra sua graça. A missão falida de desvendar Laura é tragicamente substituída por uma admiração ou por um encanto por ela, por uma vontade de ainda e sempre mantêr-se próximo. É talvez onde se encontra, de fato, a modernidade do documentário: não tão somente nestas múltiplas camadas, mas, principalmente, nesta crise de consciência. Na nostalgia de uma busca interrompida após ter ido tão longe e tão fundo, para agora só querer estar perto.

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