La Maison des Bois, de Maurice Pialat (França, 1971)

março 18, 2014 em Em Campo, Luiz Soares Júnior

O eterno retorno para casa
por Luiz Soares Júnior

“Trois beaux oiseaux du Paradis
Mon ami z-il est à la guerre
Trois beaux oiseaux du Paradis
Ont passé par ici”.

Trois beaux oiseau du paradis, Maurice Ravel

“E é por guardarem assim as horas do passado que os corpos humanos podem fazer tanto mal a quem os ama, por conservarem recordações, prazeres e desejos já para ele extintos, mas cruéis para quem contempla e prolonga na ordem do tempo a carne amada”.

O Tempo Redescoberto, Marcel Proust

A primeira seqüência de La Maison des Bois descreve um congraçamento: somos contemporâneos da Primeira Guerra Mundial, habitamos uma região campesina francesa, e um jovem soldado retorna do front para a sua cidade natal. A câmera acompanha, com paciente acuidade, a trajetória deste homem para o rincão que deixara para trás. Sua primeira “estação” é na escola da cidade, onde conversa com o professor (feito pelo próprio Pialat), brinca com as crianças mais novas, acende um cigarro; seus olhos piscam levemente, a luz meridional parece incomodá-lo (impressão minha, talvez). Tudo ali sugere o desenho a bico-de-pena de uma crônica amena, uma vida vagarosa mas de curso firme, a placidez e a probidade de um cotidiano percutido por gestos rituais de reconhecimento. Mas há um elemento alienígena naquele contexto hebdomadário – uma intrusão que desconcerta e desestabiliza a posição do espectador; que talvez o alerte. É a dislexia da câmera – este terceiro excluído que, no cinema de Pialat, desempenha geralmente o papel de um revelateur das forças e dos ímpetos que irisam uma presença; o elemento deflagrador daquilo que a leva a colidir com o outro e, neste movimento centrífugo em que a alteridade é a inspiração para o arremesso do aríete, acontecer: o ser aqui só se realiza plenamente como acontecimento, descarga pulsional da ação.

Mas o que se passa nesta primeira seqüência pertence ao domínio do infinitesimal, do casual e do infiltrado – efeito do fora de campo da Guerra à porta talvez… Trata-se do delineamento de um espaço singular, feito de reentrâncias: um traveling traseiro para apresentar as crianças ao visitante, um zoom (figura pouco freqüente em seu cinema, sobretudo quando não aliado ao plano seqüência com câmera na mão, como é o caso aqui) sobre o quadro negro; outro traveling, agora dianteiro, em direção ao professor; esta câmera que tateia, volteja, retrocede e precipita-se, experimenta oferecer-nos um espaço vacilante e coalescente, um espaço-container, plástico reservatório para os corpos que nele se agitam; onde a planura, a centralidade e a frontalidade do classicismo sofreram um considerável desgaste, mostrando aqui e ali as arestas da erosão do espaço pelo tempo. Desta seqüência em diante, o zoom será a figura retórica determinante deste mapeamento dos corpos e dos gestos que é o paradigma figurativo do filme. Correlata a esta espacialidade refratada pelo zoom, temos uma duração entrecortada de vinheta, que vai se manter ao longo da ação: pequenos, vários e idiossincráticos acontecimentos destilam sua aura de “Eis-me aqui” – e o filme é, todo, um mosaico de digressões: a tarde em que um menino aprisiona seu primeiro passarinho na gaiola; um marquês que compra ainda L’Action Française – embora confesse não mais se identificar com o “dernier cri” reacionário -; mesas familiares de domingo; uma missa de corpo presente; um rapaz esvaindo-se em sangue saído direto dos Desastres da Guerra de Goya; o plano médio e compungido de uma mãe e um filho que logo voltará para o Front, sentados na mesa de fundo de um bar.

O que este espaço instável, revolvido e tateado pela câmera nos revela é uma experiência inconstante, bruxuleante do ser; é a perspectiva destes seres em gestação que são as crianças que se encarna no sismógrafo da câmera, mas não apenas: as trajetórias destes desvalidos da História que, entre um bombardeio e outro, encontram na vida campesina a ilusória possibilidade de uma reconciliação com o mundo. A criança abandonada e as vítimas da guerra – o marginal da Natureza e o marginal da História – detêm em comum esta percepção radicalmente precária e acidentada, da qual o zoom vai constituir, à pedra de toque na topografia do espaço e a colagem de vinhetas, o corolário na gestão do tempo. A consequência deste partis pris? A ênfase metódica em tudo o que de mais precário, efêmero, inessencial (quintessencial) o cinema pode nos revelar; as vivências mais falíveis e comezinhas; os olhares trocados entre um cachorro e uma criança, entre uma criança e uma moribunda; os golpes que nos assestaram sem que ninguém visse; os golpes que assestamos aos menores do que nós – tudo aquilo que no catálogo moralista do honnête homme merece espezinho e infâmia. Mas também as indizíveis alegrias da maternidade postiça, os encontros sobre a relva entre os pares, as fugas precipitadas na noite de lua, as intrigas de domingo e as conciliações de segunda, os surrupios imprevistos de víveres e de beijos, a voz esganiçada do carteiro e a timidez casmurra de Hervé, o pão borrado de geléia e a aurora que insiste em permanecer incólume…

Pialat, armado com o olhar bedel, analítico do entomologista e a verve rapsódica do cronista, explora este veio secreto e transitivo do fenômeno, que um dia fez a fortuna das Correspondências de Baudelaire e das “intermitências do coração” de Proust. Um folhetim de proporções épicas (oito horas de duração, vasto fora de campo da Primeira Guerra, mira nos ritos e costumes de toda uma comunidade) aqui se apresenta sob a perspectiva microscópica de uma atenção – acrescida pela bonomia, entre generosa e caricata, que tanto nos lembra os portraits da burguesia da “França profunda” que Renoir nos deu em Um Dia no Campo (1936) e Toni (1935) – aos eventos e aos trejeitos singulares que povoam em filigrana nossa percepção. La Maison des Bois é menos um grande afresco histórico do que uma espécie de cine-reportagem, fenomenologicamente rica e variada, sobre as coxias – mas também os destroços e os estilhaços, as peripécias e os tráfegos, constantes e marginais, entre Paris e o campo, a escola e a casa do marquês – desta grande construção coral agonística que é a Europa do cataclisma de 14.

O que vale aqui não é exatamente o curso das ações e seus efeitos, o continuum dramático ou mesmo o fascínio do aparato lumièriano para a cristalização do imaginário fabular, mas a harmonia irradiada pela presença destas impressões, redispostas segundo outros continuums (pictóricos mais do que dramáticos), outras topografias atmosféricas (a transparência e a contingência diamantinas do relato novelesco, contrapostas à espessura reminiscente e associativa do romanesco). Numa fórmula clássica, René Girard nos descreve o romanesco como uma forma de representação advinda da/pela “morte do Desejo”. Só se narra e arremata aquilo que está morto, “acabado”: o que está acabado é o bem acabado. Narrar é para um Outro, aquele que fui; o Eu que conta não é o mesmo que vive. O filme de Pialat nos acalenta sob uma outra Sherazade, nos inicia em outros Matéria Memória (Bergson), outros percursos videntes: o que se apresenta aqui aparece como ainda sendo… daí a sensação de cine-reportagem. É mais novelesco – chão, passageiro, rarefeito, mas também fluido, cintilante, melódico – do que romanesco: o rastro de… Se, no início do filme, o importante para a comunidade é a celebração da missa de corpo presente da esposa do marquês, morta em um acidente de carruagem, para Pialat serão estes longos e saborosos minutos dedicados à degustação, sorrateira e picaresca, do vinho da missa pelo sacristão e seus dois auxiliares infantis.

Ou este ouvido distendido junto ao casal constituído pela mãe e pelo suposto filho mais velho, este ouvido que se aguça para melhor auscultar o lamento da mãe – esta câmera que, casual mas frontalmente, se aproxima, pé ante pé -, quiçá para adivinhar as recriminações secretas que endereça ao filho, que logo morrerá… O ponto de vista adotado é sempre enviesado, canhestro, fora de eixo e de linha: se os convidados de um verdadeiro “déjeneur sur la table” (café da manhã sobre a mesa) burguês nos são mostrados basicamente de costas para a câmera, é porque o menino marginalizado do grupo, Hervé, o único a quem a mãe não viera apanhar, se posta desafiadoramente na contramão do contracampo que lhe poderia oferecer a adjunção ao festivo gregarismo; como o silencioso Michel de Infância Nua (1968), ele prefere entrincheirar-se com o cachorro num campo monologal, eivado de um glorioso ressentimento, e extrair daí a sua força; ele sabe que crescer é um opróbrio, que nenhum conto de fadas se forja sem a têmpera robusta que as crianças devem aprender a opor às seduções aterradoras do Mal, da Morte, do incesto.

Falei acima do espaço, mas é necessário dar a necessária ênfase à temporalidade, não apenas aqui como em toda a obra de Pialat – cinema geralmente colocado sob o signo da intempérie e do choque. Se o filme nos apresenta o tempo como este mosaico de descontinuidades “eventuais”, porções de tempo cristalizadas em irrupções de gestos (e “irrupção” é uma expressão que me parece adequada para descrever estes filmes que valorizam o contracampo como deflagrador ou “atualizador” violento das tensões acumuladas no campo), é porque para a experiência paradigmática da infância aqui o presente constitui uma intensidade absoluta, irredutível a qualquer outro ponto demarcável no espaço-tempo, a qualquer outro presente: um istmo pulsante descartado da linha do tempo – esta linha que assinala o Infinito como horizonte de toda temporalidade e que só existe para a visão sincrônica e cronológica dos adultos (e sua implicação laboral, utilitarista).

Quando brinca, uma criança existe absolutamente para aquele presente, em fusão; apenas ele é, com exclusão de tudo o mais. Uma criança não conhece o filho por-vir e o filho por rememorar, na foto escondida na gaveta. Uma criança não vivencia a temporalidade como seqüência, mas como epifania de um dom divino, no qual tudo o que é se realiza, hic et nunc; inclusive estados ou entes intermediários, oníricos ou imaginários: amigos invisíveis, duendes, mortos, etc. A criança preside a uma operação de fatura poética (leia-se aqui: ontológica e hermenêutica), só que agora em proporções lilliputianas – ela converte a reta extensiva do tempo diário dos adultos em um círculo amical (que pode incluir a seu bel-prazer também a crueldade, igualmente inocente), onde os jogos, os animais e os outros meninos vêm se aconchegar; o seu tempo é o Kairós da Revelação do brinquedo (do brinquedo como revelação do mundo, como o primeiro afã de poiésis), não o Cronos da contabilidade seqüencial. Se Pialat inscreve no espaço e no tempo de La Maison des Bois a descontinuidade e a efemeridade como normas, é porque ele, como grande materialista que é, sabe que é no manejo dos meios que o grande cinema se faz: como dizia Bazin (ou Mourlet?), cinema não se faz com boas, belas ou justas intenções; é a matéria – e aqui em particular, o escopo material transcendental: o espaço e o tempo – que deve ser encarregada de repercutir ou transmitir os devires de que são plenos os corpos, tornar visíveis as colisões e comunhões que os relacionam entre si e ao mundo.

Num texto que me é caro, Jean-André Fieschi encareceu o realismo do cinema de Luís Buñuel. Para ele, o dito “surrealismo” do mestre catalão deveria ser entendido literalmente como “super-realismo: “porque a Buñuel interessam não apenas a descrição naturalista de certas características humanas, mas igualmente os estados oníricos, alterados da consciência, assim como o relato das paixões, das impressões, etc. Todo o espectro da consciência humana, inclusive o inconsciente, deve ser apresentado. Neste sentido, ele é um super-realista”. Um insight análogo pode ser aplicado a La Maison des Bois: o décor, os figurinos, a ênfase no fugidio e no fragmentário podem superficialmente associar o filme a uma empresa impressionista. Mas Pialat é um diretor materialista, para quem o que conta é a inscrição deixada na tela pela trajetória do corpo e o ad libitum suscitado pela intensidade da força. Em La Maison des Bois, abundam não apenas estes lastros estilhaçados de duração e de gesto, mas planos fixos expositivos, modulados pelo zoom. A impressão é apenas um dos modos de apreensão realista do que é – a ser inventariado segundo o contexto, a importância do cenário e do corpo que o habita, etc. Que o ente privilegiado como paradigma seja aqui alguém para quem o mundo aparece através de frestas de afeto e emoção – de impressão – não equivale a dizer que a démarche é impressionista: a impressão se situa num corpus maior. Em Pialat, o detalhe clássico: o mundo sempre precede e ultrapassa o homem. Mas o homem existe, e não apenas a câmera está à sua altura; ela se esgueira, se furta a ele e se precipita, em combate. Porque o homem é grande (e pequeno), mas o mundo é vasto e  imemorial; o homem vive e morre, mas o mundo permanece e o contempla, como aqui, no plano final da carruagem seguindo para Paris, ao qual é impossível consignar um ponto de vista senão o sub species aeternitates da velhíssima Odisséia: ali a Ítaca amada e irrecuperável, aqui a infância visionária e a mãe moribunda, perdendo-se no limbo de uma Distância de que só o edênico Trois beaux oiseaux de paradis de Ravel pode sugerir a impossível evocação.

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