Killer Joe – Matador de Aluguel (Killer Joe), de William Friedkin (EUA, 2011)

abril 8, 2013 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

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A besta deve morrer!
por Luiz Soares Júnior

“Em uma fenomenologia essencialmente dinâmica, naturalmente já não nos cabe distinguir entre a garra, o aguilhão e a tenaz. Todos estes órgãos aparecem em uma unidade voluntária. Verdadeiramente, simbolizam a convergência de uma multiplicidade orgânica. A anarquia nas garras de uma pata é algo inconcebível (…) Assim, a soma de todos os movimentos da garra consistem (…), tomando o impulso de ataque em sua fisiologia elementar, na vontade de lacerar, desgarrar, esfolar, aferrar-se com dedos nervosos. Este é o princípio da crueldade juvenil. O punho crispado é a consciência elementar da vontade”.
Gaston Bachelard,  “Lautréaumont”.

“Man can stand everything, if it only lasts a second”
J. Cooper Powys, “Wolf solent”.

O cinema de William Friedkin sempre colocou-se sob o signo de um teatro da crueldade, entendido aqui segundo a concepção dialética exposta por Antonin Artaud: “O teatro da crueldade não é o símbolo de um vazio ausente, de uma terrível incapacidade de se realizar na sua vida de homem; é a afirmação de uma terrível, e aliás inelutável necessidade”. Necessidade deve ser entendida como o trabalho do Logos, como mediação; crueldade é consciência. O teatro da crueldade não consiste apenas na manifestação masoquista do corpo em suas potências intensivas, limítrofes; ou seja: absolutamente expostas – este corpo sem órgãos com que ironicamente Gilles Deleuze designa o corpo esquizofrênico. Este teatro implica e almeja a uma distância: a distância da palavra, a distância que consiste em percorrer um longo, doloroso caminho para se apossar da palavra, soprada embora – inspirada, mas nem sempre pelo divino.

Há uma ênfase fisiológica na acrobacia e na respiração que tem por fim tornar visível o trabalho descomunal que consiste em chegar à palavra – apesar da doença, apesar do corpo, apesar do Outro, este monstro. Falar é difícil e doloroso, falar fatiga e faz sofrer. E não é este, segundo métodos especificamente cinematográficos, o movimento da maior parte do cinema de Friedkin? Contra os corpos possuídos pela energia- ora do demoníaco do Id, ora das tensões e contrações da metrópole onívora, Friedkin sempre se empenhou em instalar um espaço vacante na arena dos corpos, em instilar uma Diferença que nos converta de objetos patológicos em sujeitos de inquirição: por exemplo, na lentidão estudada dos tempos que precedem o desencadear das forças – lembremo-nos de que, em O Exorcista (1973), os coups de théatre da possessão ocupam pouco mais que meia hora do filme, muito mais dedicado a sismografar, à la Hitchcock, os signos rememorativos e oníricos, ou seja: ausentes, índices de/da presença do Mal (os delírios em superexposição e aceleração da culpa do padre Carras em relação à mãe; os entr’actes na cama entre Reagan e a mãe, em que se insinua a relação incestuosa que será uma das frestas pelas quais o horror vai se imiscuir; a peregrinação do padre mais velho pelo deserto, lugar de Revelação). Se o Mal é um fantasma, a sua presença implica uma dialética com a Ausência; ela pertence à ordem do sussurro (os ruídos no sótão da mãe de Regan, os vagidos da menina possuída) e do suspense – todos estes tempos contraídos, estas pausas e suspensões que transformam o filme em um buraco negro…

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O Exorcista (1973), de William Friedkin

Vejamos Viver e Morrer em Los Angeles (1985). Aqui, o ritual de falsificar o dinheiro, mas sobretudo de sublimar a ação espúria numa liturgia de dispêndio gestual, numa parte maldita ritualizada que consume grandes momentos do filme; Friedkin é erroneamente (ou em parte erroneamente) identificado como um cineasta de ação – como um ginasta do cinema do corpo. Mas esta identificação parcial elide a igualmente fundamental instância de contemplação, ritualização, inervação e distensão aeróbicas de um cinema que vota ao Tempo (tempi) igual ou maior eminência que aos corpos que ele maneja – até porque, como discípulo secreto ma non troppo de De Toth e Hitchcock, Friedkin sempre soube que o espetáculo do corpo fulminante e devassado pela Força não é nada sem a têmpera, lenta e cadenciada, da demiurgia do Tempo. As perseguições, figurativa e ritmicamente  geniais de Operação França (1971) e Viver e Morrer em Los Angeles – em que Eisenstein é associado a Vertov, e assim dialetizado vetorialmente, transmudado num espécime pós-einsteineano, na qual a energeia é o verdadeiro núcleo do movimento, e não o átomo, a ação isolada ou encadeada em continuum crescendo – demonstram a necessidade estrutural de seu cinema em alternar Força e Significação, Distância e Presença em um único e outro movimento. Havia sempre ali este jogo catártico entre encenação e Força, entre pulsão e Logos, pois a catarse, desde os hexâmetros de Píndaro até o stacatto tribal de Sófocles, é uma tática dialética de intimidação e conhecimento do espectador (intimidação pelo conhecimento?). Neste entrechoque, ele aprende e é apreendido.

Friedkin dá uma nova e original inflexão ao construtivismo russo: ele proporciona ao movimento as propriedades aeróbicas e suspensivas do tempo; ele o torna gráfico, inscrevendo-o a bico-de-pena – retardos e acelerações, o suspense hitchcockiano elevado a uma categoria física mais sofisticada, pós-atomicista. Ele nunca foi apenas um cineasta do corpo, uma arena para bólibos em combustão e expansão, mas um artista que (na boa e perversa tradição clássica) alicerçava esta combustão numa primazia do cadre e da centralidade; numa distância espacial e de ponto de vista, da divagação e da digressão – os personagens psicopatas ou analistas, experimentalistas in vitro das situações in extremis representadas, personagens que diferiam a ação numa esfera de inquirição entomológica ou investigativa-inquisitorial: o padre Carras e o inspetor em O Exorcista, Eric Masters (Willem Defoe) em Los Angeles, o Capitão Eldeson feito por Sorvino em Parceiros da Noite (1980), o bon-vivant traficante de Operação França (Alain Charnier), o Coronel Hayes em Regras do Jogo (2000) – pontos de vista “separados” que são o equivalente do Logos impossível a que o esquizofrênico Artaud aspira. Em Los Angeles, os rituais do falsificador interpretado por Defoe estabelecem este paradigma: é um artíficie que elabora a alquimia, necessária a todo cineasta, de retirar da techné (matéria artesanal) uma poiésis (obra), de um Pathos, destilar um Logos  (e vice-versa, é bom também não esquecer).

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Viver e Morrer em Los Angeles (1985), de William Friedkin

Uma distância (agônica) e uma proximidade (vertiginosa) se conjugavam ali, aliando a “câmera à altura do homem” (da máquina homem, com suas combustões e ignições) aos gráficos construtivistas do estrategista militar. Nesta segregação diegética e formal, o cinema aparecia como um objeto privilegiado (O objeto), o único – não um horizonte narrativo ou fetichista que poderia ser emulado por quaisquer outros meios áudio-visuais, igualmente frutos de montagem (o rádio, a TV, a fotonovela), mas como o meio (de cultura, de Kultur) por excelência em que o áudio e o visual podiam ser confrontados, constrangidos, friccionados, tensionados e masturbados, e assim estabelecerem uma constelação crítica, onde se interpelam e atropelam. Friedkin, o dialeta travestido de boxeur; o Eisenstein do pobre.

E o que dizer dos exercícios, provas do corpo mas também do espírito, como bem nos ensinou o jesuíta Inácio de Loyola?  O Padre Carras, o falsificador de Los Angeles, o Popeye de Operação França estão sempre em movimento, mas é um movimento calculado, dirigido por fins, mediado por uma operação de transcendência: Defoe, no empenho litúrgico com que corta, recorta e finalmente converte papel jornal em papel moeda, depura e apura a aerodinâmica de seu corpo felino, de movimentos lapidares e fatais – como um samurai que, na lentidão e precisão dos gestos, sabe (ou sabe seu corpo, o vero samurai) que o gesto é não apenas um índice de destruição (uma arma), mas um meio de sublimação: sublimação da força animal, do demoníaco que nos habita. Para vencer o oponente, é antes de tudo necessário modular e mediar a Força interior, que também nos ameaça implodir.

Para atingir os fins a que nos propomos, é preciso treinar, e pela (na)  trajetória delineada pelo exercício, aprendermos a nos adaptar aos fins que devemos atingir, para finalmente vencê-los (e a nós); o Padre Carras treina, e é treinando (os planos que se alternam entre o boxe, as corridas e os rituais de exorcismo) que ele adquire o sangue frio e a têmpera estóica necessários a um confronto com o horror que carregamos em nós. É treinando que lhe vêm as iluminações que lhe permitirão descobrir, por exemplo, que a língua falada pelo demônio é um troppo ou um truque de cinema (inglês falado ao contrário), um clin d’oeil que nos alerta para o fora de campo da encenação. Se o policial Popeye descreve trajetórias alucinadas ao longo de todo Operação França, não é apenas sob o pretexto diegético de capturar uma equipe de traficantes, mas de transformar o truculento braço da Lei do início do filme num personagem frágil e complexo, com o qual podemos nos identificar: o Bildungsroman de um homem de meia-idade, alcoólatra e solitário. Os filmes de Friedkin nos mostravam não apenas os impulsivos périplos da Força ou os extravasamentos anatrópicos da Energia, mas trajetos de aprendizado, de conhecimento (de si e do mundo no qual almejamos almejar a fins).

E para melhor situar no filme em questão esta referência, vejamos o treinador samurai com que este Killer Joe, paródia da paródia, nos presenteia.  Qual o propósito destes tesos e embólicos movimentos que transformam um cavalo longilíneo num réptil mastodôntico? A que fins servem estes “exercícios espirituais”? Comer uma menina limítrofe e tatibitati, descarregar na bela cara do seu (futuro cunhado) uma centena de socos ingleses sem nada de ingleses, induzir a uma vagabunda ejaculada do Sexy and the City “versão barracão” a praticar-lhe fellatio com um naco de asa de frango… Para que tudo isto, e como? O movimento, alternante e sismográfico, entre sublimação e “Descarga” pulsional, entre aprendizado e Ethos, que caracteriza o cinema dialético de Friedkin, aqui se desgarra e se masturba em uma série de personagens e situações cartoonescas, cujo único propósito é emular os acessos esquizos de Jackson Pollock, ao escarrar e mijar sangue sobre a superfície do plano (ou seja: de nossa pupila)… A rigor, o que temos aqui é a intensificação (repito: paródica, grotesca) de uma tendência comum a um certo cinema contemporâneo do horror.

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Em Carpenter, em certos Friedkins mais possessos, Argento (com seus pontos de vista fantasmas, a câmera “possuída” pelo Id do trauma recalcado do assassino), Kyioshi Kurosawa (em chave minimalista e aura unheimlich), constatamos que o Mal se apresenta sob a forma de uma energia ou força, não de uma Figura – o Mal não é um ente, não existe; como dito acima, é um Fantasma. Sendo antes de tudo uma energia – e eis o lado pessimista desta tendência, geralmente com as implicações apocalípticas que este pessimismo logicamente deve conter, e que temos visto em tantos filmes recentes -, o Mal pode se encarnar em todo e qualquer ente, paisagem, habitar qualquer plano e assombrar todo contraplano. Ele “é o Ser”. Dimensão política desta “encarnação” em Carpenter: contaminação; dimensão existencial em Kurosawa: possessão.

É este caráter ubíquo e plástico do Mal – em Killer Joe, traduzido com a sanha histericamente demencial de alguém que não sabe direito como lidar com esta nova forma de representação, que não a domina: antes, é dominado por ela – que tem sido a tendência dominante dos filmes de horror contemporâneos. Poderia ensaiar uma genealogia aqui e remeter, com ar casual chic, esta “vague” a um certo filme fetiche meu, assombrado pelo invisível (do som, como bem analisa Michel Chion), o genial Testamento do Doutor Mabuse, de Fritz Lang. Mas deixemos “quieto”, ou para outra ocasião.

O que torna Killer Joe um fracasso completo é a ausência desta dialética que está no cerne do cinema de Friedkin. Ele é (ou é antes de tudo) um cineasta clássico – termo complexíssimo, com tantos “foras de campo” infiltrados nele, mas vamos lá: um cineasta do plano, do campo e do contracampo, dos jogos com o fora de campo (mesmo e sobretudo quando “elididos), da contemplação – sobretudo quando do horror e do caos. Da velocidade, também, desde que visualizada em todos os seus trânsitos e transes (aqui, façamos justiça ao gênio de Gerald Greenberg e de Scott Smith, montadores de Operação França e Viver e Morrer em Los Angeles… naquelas perseguições,  tudo se ressente e se vê, em um mesmo movimento)… porque classicismo quer dizer antes de tudo: uma arte do mostrar. Em Friedkin, sempre houve igualmente o fascínio pela “descarga” energética, pelo lado Negro da Força, seus arrojos e fluxos… mas figurados pelos (nos) personagens, estes continentes para conteúdos radioativos… arrojos e fluxos devidamente modulados – e pensemos este termo no sentido estritamente musical a que pertence, para saudarmos o ritmo magnífico de seus melhores filmes – pelo rigor e clareza da exposição, pelo alto-relevo do jogo entre primeiro e plano de fundo, pelo découpage regrado a metrônomo – sem este metrônomo aliás, sem esta taquigráfica clareza e exposição, teríamos apenas o que Killer Joe nos ejacula: o informe, o grotesco, o vomitório e a punheta de um adolescente fascinado com as novas potências, venais e suicidas, do digital em deflagrar Apocalipses, caseiros embora (ato segundo de um experimento laboratorial bem superior, o kammerspiel beira de estrada Bug).

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Aos que me redargüirem: mas é um filme experimental! Este é o primeiro de um novo Friedkin… re-re-redarguirei, com a  melhor das intenções e certo laivo de má-fé, que o anêmico elogio que posso dar a este “filme realizado por um imitador barato do autor de Viver e Morrer em Los Angeles e Cruising” é lembrar da definição clássica de François Truffaut, quando diante de Hitchcock qualificou Marnie de “filme doente”. E o que é um filme doente? Fica aqui o meu açúcar e meu afeto, depois de tantos e tão justos vitupérios, a possíveis indignados leitores: um filme doente é um filme por-vir. É um filme que, embora falho e roto por todos os campos e contracampos, contém (?) virtualmente idéias ou estratégias interessantes, que não foram devida ou idealmente desenvolvidas, que ficaram em germe (por questões de montagem, produção ou falta de colhão do autor)… A ressalva cruel mas necessária é que, se não houver filme futuro que atualize estas virtualidades, o filme doente (possível) morrerá de inanição, e o “crédito” que hoje lhe damos perderá todo sentido… Esperemos mais, William Friedkin.

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