Killer Joe – Matador de Aluguel (Killer Joe), de William Friedkin (EUA, 2011)

abril 8, 2013 em Em Cartaz, Juliano Gomes

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Sobre cobrir os espelhos
por Juliano Gomes

“Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo”.

Giorgio Agamben, “O que é o contemporâneo?”

William Friedkin é hoje um artista que parece estar numa posição ideal, como um atirador de elite discretamente instalado num teto de um prédio, apontando sua bala raivosa com calma para o alvo. Há um tom, um registro em seus filmes que não adere a forma pela qual o mundo capitalista e o cinema tendem a se pautar, por rótulos e filiações, modas, virtualidades de um jogo sempre pré-fabricado. Seu conservadorismo notório como figura pública de alguma maneira parece se nuançar à medida em que o senso comum se torna reacionário, sob a forma, por exemplo, de uma estética “light”, de uma idéia de Bem, de uma moral transcendente, no caso do entretenimento, que precisa proteger o espectador de um contato direto com a violência inerente do mundo. Não é que se queira estirpar toda representação do Mal, de maneira alguma. A grande audiência de cineastas como Michael Haneke, Lars Von Trier, e afins, comprova justamente o contrário. A abjeção dá ibope. Porém, a chave de Friedkin em relação a um material supostamente abjeto é justamente no sentido de conferir-lhe substância vital, de lhe extrair o veneno. Isto é: ao mesmo tempo mostrar a face oca das figuras (são tipos, máscaras, arquétipos), mas generalizar este oco como condição de enunciação: isto é uma representação, tudo aqui é outra coisa. É justamente esta outra o foco e a forma para onde o filme converge: quer-se construir meticulosamente (dando as pistas e os detalhes do trajeto) esta transformação em outro. Não há um Bem ao qual este cenário se oponha e, mais do que isso, não há nada escondido atrás de “boas aparências“. Detrás da máscara, há carne. Há caos, há substância pura de vida, disformidade.

O método de frontalidade e literalidade de intenções espanta pelo rigor em Killer Joe: uma tempestade forte abate a noite, raios, um gato preto cruza o caminho da câmera, um cão raivoso late com fúria. O tom já está dado: é noite de temporal, é o tempo das inversões, hora de se recolher, de ficar em casa, de se proteger e não se expor. E, principalmente, seguir uma expressiva crendice popular: tapar os espelhos. Nada aqui lembra a experiência cotidiana. O realismo documental toma aqui uma forma radicalmente oposta à sua forma contemporânea corrente. O trovão é a natureza um tom acima, é o cosmos com raiva, em seu momento de destruição, é uma ira. Desta forma parte o filme, do registro de um raio: violento, instantâneo e artificial. A energia que se busca é desse tipo: uma explosão. Essa descarga elétrica sempre procura o solo. Se, como em Possuídos (com o qual Killer Joe forma um belo díptico sobre a ideia de pathos), começamos no céu, é no chão, fincados a ele, que seguimos. Lama, sangue, pele e gordura são os condutores desta carga energética que Friedkin tenta dissipar em nós, espectadores. A dramaturgia vai se fundar justamente nisso: num processo de oscilações de energia visando atingir picos em alguns momentos específicos onde o drama requer então o envolvimento mais intenso do espectador. Aqui o que interessa são exatamente picos, o momento quando se perde a medida.

O terreno é demarcado rapidamente: uma família americana mora num  trailer e todos parecem não ter mais referência moral que ambicione uma manutenção deste próprio agrupamento. Estão o tempo todo gritando e querendo causar dano ao outro. Não há, aparentemente, o dado básico de o que é vivo: o senso de auto-preservação. Temos um ambiente de choque, onde tudo se bate. E onde uma espécie de vida primitiva, de fundo pré-civilizatório, precisa se manifestar. Na primeira sequência, Chris (Emile Hirsch) se depara, ao abrir da porta do trailer onde moram seu pai e irmã, com o púbis nu de sua madrasta, Sharla (Gina Gershon). A operação cênica estabelece um tom e anuncia o que há por vir: se trata de um dado de origem, de algo que vem de baixo, e de, principalmente, a operação de mostrar isso. É preciso dar forma, presença, a tudo o que importa. Daí o mecanismo da literalidade: o que é presente na narrativa, importa, e será reiterado pela presença. O que impede a redundância estéril é justamente a habilidade na condução, a economia da apresentação em favor dos tais picos de energia. A situação geral é dada de antemão: toda ação que quer tirar vantagem do outro vai incorrer em sacrifício de si mesmo, um princípio moral. Desde o primeiro gato preto, a tragédia está anunciada: haverá uma falha de caráter, o mal se instalará e só deixará o cenário uma vez completado seu trajeto. Está aí a forma do classicismo primário de Friedkin e do dramaturgo Tracey Letts, à maneira da tragédia grega.

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A aparência falsa do homens em cena contrasta com uma energia verdadeira que deles se extrai, especialmente nos momentos dos embates. É na cena, no momento da unidade temporal espacial, da progressão dramática, do aumento de tensão (elétrica) que o núcleo desse cinema se deixa ver. Isso causa uma impressão até de desinteresse de encenação em algumas cenas que precedem esses núcleos. Nem tempos mortos, digressões ou fora-de-campo: é preciso presença imediata, intensidade e movimento. A forma da tragédia é espiral, é como água entrando pelo ralo, é um espaço exíguo, o trailer (o palco), onde os fluidos vão correr até o momento onde só existam eles, onde o que é individual se dissolve. O mal atinge uma família, um grupo que se une pelo sangue.

O caminho que o documentarismo obsessivo que Killer Joe adota é o de observação participante deste desmembramento gradativo, que vai revelar afinal o triunfo de sua força de morte, de sua tendência à destruição primeira que é a força maior que rege toda vida, e contra a qual a tendência de auto-preservação (cuja maior metáfora é logos, os saberes, os escritos) se insurge. A escritura de Friedkin ressalta sempre um estranhamento, um certo efeito de feiúra, de inadequação, enfim, à imagem. Esta é sua estratégia política: construir um drama límpido em sua formulação, um rito de passagem, um conto moral, mas dar-lhe uma carne podre, uma matéria desmedida, uma decupagem muitas vezes desajustada ao quadro, nem áurea, nem desenquadrada, mas justa à desmedida que é matéria prima de Killer Joe, daí a superfície falsa, desajustada. A articulação controlada do descontrole absoluto é seu centro propulsor. Um trailer no Texas, um teatro das paixões.

Antropologicamente, um ritual de iniciação (cuja figura sacrificial é a filha Dottie) precisa marcar uma mudança de hábitos, um desprendimento. O agente dessa mudança é o personagem que dá título ao filme, vivido por Matthew McConaughey. O problema é que ele encarna um paradoxo: é ele que traz a virtude para família (ele é um policial) mas é também a Morte. A família Smith chamou a Morte  e a Ordem para jantar e ofereceu-lhes sua filha em troca de seus serviços. O anjo negro cujos olhos “machucam” (“your eyes hurt”, segundo Dottie) é a virtude e a perdição absoluta da comunidade. E ele estabelece regras, limites, e introduz uma moral e uma ideia de justiça no grupo. Só a Morte consegue reunir a família toda à mesa para uma reza. Quando Joe diz que, no primeiro encontro com Dottie (e primeira cena verdadeira do filme) que ela “devia ter um professor”, ele está ao mesmo tempo se oferecendo para tal, e para toda família. O assassino de aluguel é um professor de ética. E aí está instaurada a ação e o espaço dramático: a tentativa desta comunidade em estabelecer valores a partir da experiência de um novo elemento do grupo.

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Há uma fala num filme irmão de Killer Joe , Teorema de Pasolini, bastante representativa:  “não há nada mais infeccioso que o mal”. Na cena ápice do filme, a ira de Joe se dá justamente por uma situação de injustiça com o grupo. ”Isto não é justo“, diz, referindo-se à desonestidade de Sharla. E Joe introduz também um componente essencial dos rituais: a importância da encenação para gerar, afinal, energia de alteridade, de transformação. Não por acaso, as duas cenas principais do filme, ligam esta operação de fingimento ao sexo. Porém se as intenções e as estruturas são literais, esse desnudamento constante gera, a partir do brilhantemente polissêmico material de Tracey Letts, um princípio de fusão dos elementos. No primeiro jantar, ao colocar a comida na mesa, Dottie diz “eu sou virgem”. Ao mesmo tempo, antes deste encontro inaugural, a discussão se dá por conta de sua transformação, mudança de estado (“Let her change!” é o motivo da briga entre filho e pai). É preciso encenar, ritualizar as mudanças de estado. Joe introduz este dado na comunidade, o dado da representação – também enfatizado na cena do espancamento de Chris, e reduplicado pela banda sonora musical.

Os alvos da alegoria: a nação (bandeiras americanas) e o cinema (a representação-mór desta comunidade). Killer Joe é um peça de intervenção no novo falso moralismo americano, no qual o correto é a nova divindade. Para tornar o ambiente novamente saudável, a comunidade virtuosa, é preciso reinjetar-lhe veneno e doença, como uma vacina, para gerar reação, força de combate natural, e não passividade. É a velha forma aristotélica da catarse na tragédia que parece ter sido esquecida ou incompreendida, então é hora de voltar ao básico, parece dizer Friedkin. Esta sempre foi sua especialidade: fina arte bruta. Daí sua contemporaneidade, justamente por perceber a importância da escuridão. A luz que nosso olhar supõe que percebe nada mais é que uma composição de escuros. Killer Joe narra o trajeto do escurecimento dos rostos: via sangue, sujeira ou pancada. Acreditamos demais na identidade, agora é hora da ressaca, de fazer uma genealogia do caos, a partir do rosto, cavar o seu fundo, ver se estes tipos são ocos como parecem ser. É preciso verificar as superfícies, submetê-las ao contato e testar sua possibilidade de alteração e alteridade. A metamorfose do rosto de Sharla é a presentificação deste sacrifício no/do rosto, da máscara. E afinal, percebemos que sim, há vida dentro. E ela quer sair, precisa sair. É esta ambiguidade expressiva que toma forma plenamente em Killer Joe. É preciso verificar o interior das coisas. E se há uma insistência das cruzes cristãs, é no sentido de profaná-las, de afirmar a importância de uma comunidade (todos ali parecem querer pertencer, principalmente Joe) mas de afirmar uma moral específica e não transcendente. Uma ética, uma introdução do novo na comunidade. Uma mudança que passa pela experiência do descontrole, do desvio e da despersonalização, pela ritualização, e pela possibilidade da alteridade, enfim. Amém.

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