Jovens Infelizes ou um Homem que Grita Não é um Urso que Dança, de Thiago B. Mendonça, (Brasil, 2016)

fevereiro 9, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

* Cobertura da 19a Mostra de Tiradentes

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“A revolução tem de deixar de ser para existir” *

por Juliano Gomes

“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?
Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música, que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado, são a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem!
Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada!
Hoje não tem Fernando Pessoa!”

Caetano Veloso no III Festival da Canção (1967)

“A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo pornográfico que marca a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má política por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte popular. “

Glauber Rocha em A Estétyka da Fome

“Que importa quem fala, alguém diz, que importa quem fala”

Samuel Beckett em Esperando Godot

Jovens Infelizes narra o percurso, em ordem não cronológica, de um grupo de artistas em permanente inquietação em torno da questão da intervenção política. Por todo o filme, é sugerido um ambiente onde uma ação, uma posição ativa em relação a um meio, é necessária. Tal trupe atravessa espaços variados: teatro, igreja, manifestações, bares, calçadas, casas. Parece importante que se circule, que se dê uma ideia desse lugar pelo acúmulo dramatúrgico de espaços. Neste sentido, é possível notar um desejo de mapear, ou desenhar, um trajeto entre pessoas e lugares onde essa ação possa se construir, frente às suas resistências variadas. Nesta empreitada, não é difícil enxergar um desejo comum entre personagens e filme. Uma metanarrativa se estabelece: o que os personagens buscam não parece distante do que os filme deseja. O objeto dessa busca parece ser a realização de uma arte que se relacione de forma ativa perante um estado de coisas que prevalece catalisado por um estímulo geral à passividade. O coração da inquietação dos personagens parece ser a indagação das possibilidade de ruptura dessa passividade.

Constituída a relação de identificação entre personagens e filme, boa parte do que sai da boca dos atores soa como um grande compêndio de intenções. O “preâmbulo dos mortos”, que inicia o filme, já dá pistas de como seguir. Sob um palco, olhando para a lente da câmera, os atores cantam e recitam textos. Representar já se coloca aqui como questão. Jovens Infelizes precisa demolir de cara a quarta parede porque ele, o filme, precisa se dirigir mais diretamente a nós. Um tom de manifesto perpassa grande parte das cenas. De certa maneira, é um filme que passa a sensação de permanentemente desejar nos falar o que ele quer – diretamente. Umas das primeiras informações vem com a frase: “para recomeçar é preciso destruir”, e o filme opta por começar da morte, para seguir até o momento em que o grupo se constitui. De certa maneira, a estratégia caleidoscópica (não só o estilhaçamento dos episódios, mas a variedade de cores e tons) age como uma certa força de desintegração a uma suposta unidade anterior, como se o filme que vemos fosse um objeto linear que tivesse sido espatifado. Entretanto, é por um valor de unidade (ideológica e conceitual) que o filme clama todo o tempo.

O uso da fala parece oprimido por essa pressão retórica que precisa forçar a criação de um ethos plenamente identificável a um certo regime discursivo de esquerda “revolucionária” e “militante”. A persistente reiteração de palavras e signos de(ssa) ordem sugere uma vontade de pertencimento a um certo campo discursivo, que supera a função do “falar” em relação às partes, internamente. Para realizar tal objetivo, a camada que se atrofia é aquela não redutível a enunciados, a camada de experiência com os sentidos: em vez de uma redistribuição das possibilidades de falar e das hierarquias e posições de cada um no jogo da cena, o que vemos é uma insistência em um lugar de fala bastante determinado; o trabalho de alteração, o jogo das metamorfoses, da redistribuição dos lugares, fica em segundo plano. De certa maneira, o filme se insere numa “fábula clássica” da arte que deseja ser política: o grupo de artistas e ou “esclarecidos” que quer encontrar formas eficientes de intervenção no mundo lá fora, enquanto vivem seus desafios e dilemas internamente. De O Que é Isso, Companheiro? (1997) a Os Sonhadores (2003), de A Concepção (2005) a Os Residentes (2010), e de Amantes Constantes (2005) a A Chinesa (1967), a moldura permanece. Todos eles vão mostrar personagens se debatendo em torno da questão das possibilidades de ação política, enquanto o que os diferencia é o quanto os próprios filmes conseguem realizar essa tarefa eles próprios, como conflito na imagem e no som.

A insistência na predominância dos enunciados sobre os gestos e as ações resulta em um filme que grita, mas tal volume parece reafirmar um estado de coisas absolutamente uniforme em relação a quem é este grupo de personagens, o que eles querem e quais questões os interessam. A razoável unidade do trabalho do elenco parece não conseguir rasgar essa membrana declaratória. Todo um repertório é convocado com finalidade reiterativa: o teatro, o sexo grupal, a manifestação de rua, a discussão filosófica, o sequestro de um político, a vida familiar suprimida, todos resultam em um pertencimento reverente a uma reserva simbólica que sofre um comedido tensionamento interno. No seu desejo de falar por si, o filme parece gastar grande parte de sua energia em uma estratégia de adesão a este modo e a esta atitude “tradicionalmente” subversiva (como um cena de sexo grupal na igreja, com um grande crucifixo ao fundo). O pertencimento, irmão da propriedade, não por acaso é o oposto da política. A cada investimento no mesmo, no já conhecido, nos lugares pré-marcados de uma postura e repertório específicos, a possibilidade de alteração e redistribuição das partes arrefece.

É exemplar o momento onde os personagens entram em um velho cinema e lá assistem a trechos de Alma Corsária (1993), de Carlos Reichenbach. Atipicamente calados e imóveis, eles prestam reverência àquelas imagens. A cena parece ter um valor de uso de apontar uma filiação a esta entidade filme-personagem, assim como a um tom e a uma forma de espacializar identificada com o repertório dos realizadores originalmente vinculados ao cinema marginal dos anos 1970 – repertório este amplamente fetichizado no “cinema de festival” brasileiro há pelo menos quinze anos. O trabalho de Jovens Infelizes em construir esta extensa genealogia dificIlmente se desvencilha do name dropping; assim, o filme parece construir um espectador extremamente obediente a estes caracteres, dada a extensão de seu esforço. A demarcação de lugares pré-marcados pelo senso comum (pessoas vestidas de Ku Klux Klan numa avenida urbana; o linchamento de um homem algemado no poste por civis) é o oposto exato de qualquer possibilidade de política que busca o verdadeiro (que nasce do que se faz) em vez da Verdade (que emana no que se diz, pois ela preexiste.). A parábola “artistas versus sistema” esconde uma parte dos sem parte (que o filme sugere que existe – como por exemplo no diálogo com os travestis – mas não se interessa em trabalhar) que é justamente um topos menos pavimentado de uma investigação simbólica sobre as formas de engajamento.

Eventuais momentos de interesse em si, como a encenação da manutenção do refém no início do filme, são despotencializados por longas sequências que precisam salvaguardar essa velha cadeia de significados (“o samba”, “a revolução”, “a resistência”), ocupando os mesmos lugares de sempre. Qualquer vizinhança de um sentimento não indexado é rapidamente exterminada pela ratificação exacerbada do lugar de fala. E hoje, o sequestro do lugar de fala por um encarceramento identitário, a renovação do arcaico “você sabe com quem está falando?”, é uma das principais estratégias de silenciamento da diferença, na medida em que se funda em um direito inalienável, portanto “divino”. A variação que os personagens sofrem entre os números do filme parece encontrar limite nesse desenho que não se interessa de fato pelo fora, pela construção do que não é reflexão de si, numa espécie de permanente demonstração de savoir faire gauche.

Em um dos quadros, um personagem pixa num muro “está tudo uma merda”. O filme conta, não só nesta cena, que o mundo, este “tudo”, seja razoavelmente sentido de maneira uniforme entre nós. Embates com a alteridade, seja com a polícia, o gigolô, o jantar com a elite, nunca resultam numa alteração radical de nenhuma das partes. A frase na parede pressupõe que se sabe o que é esse “tudo” e que se concorde com a “merda”. E haver alguém que nos diga isso pressupõe uma estranha desigualdade: este alguém descobriu tal diagnóstico e vem nos avisar, a nós, ainda ignorantes deste fato, agora iluminados por este gesto expressivo… todo sábio parece precisar de um ignorante. A reiteração se torna o contrário da política, na medida em que resulta em um niilismo em relação ao campo de possibilidades, e a repetição das narrativas de topias do político só parece encurralar suas possibilidades de sua realização. É aos poderes opressivos que isso interessa (como, por exemplo, o intenso investimento na descrença da política representativa, face cotidiana do niilismo recente).

A arte não serve para nada. Servir talvez seja justamente seu oposto. Sua suposta servidão a um campo de enunciados que pré existem, ainda por cima, a um conjunto de signos que evocam a própria ideia de interseção estético-política, só resulta numa espécie de alisamento da zona de diferença, de conflito, portanto de luta. A câmera desordenada de um confronto numa manifestação se tornou também uma commodity, especialmente após 2013. A descoberta crucial de Maio de 1968, e também, não por acaso, do terrorismo, é a necessidade ética da autodestruição – o exato oposto à auto-conservação e ao auto-cultivo. A morte do grupo de personagens, ainda que encene uma destruição dentro do universo narrado, não parece suficiente como ação de desintegração na imagem, no campo dos signos. A dimensão utilitária dos signos e das sensações, à publicidade e ao fascismo interessa. O império do útil é a escravidão da experiência.

A tarefa urgente de invenção de novos corpos para figurar o político, criação de embates e de um fora de si que coloque a construção sob um risco real, parece um esforço menor perante a tarefa de construir esta estratégia de intervenção discursiva adotada pelo filme, em suas palavras e tom. A estrutura do burlesco e a desordem possível do teatro de revista não alimentam uma desordenamento decisivo no arranjo das partes do filme. Fetichizar a luta é exterminá-la por completo. Um conflito é a agência de, no mínimo, duas partes, duas forças. Não há conflito sem diferença: de potencial, de pressão, ou de o que for. O trajeto da consciência do futuro até o passado, adotado pelo filme (mesmo com o curto-circuito da foto dos guerrilheiros na parede – novamente evocando um símbolo pré-constituído) parece refletir esta postura que se sabe demasiadamente, a ponto de só se importar consigo mesma. Quando Zizek adverte ao movimento Occupy Wall Street que “não apaixonem-se por si mesmos (…) apaixonem-se pelo trabalho”, o que está em jogo é justamente a invenção desta parte que não está dada de antemão. Este é o trabalho da política, este é o trabalho da arte.

* frase recolhida nos muros de paris em Maio de 1968

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