Jovem e Bela (Jeune & Jolie), de François Ozon (França, 2013)

fevereiro 8, 2014 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

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Aquela que chega com a noite
por Luiz Soares Júnior

Je suis moi, j’entends, je sens et je vois
Je suis moi comme pour la première fois, je suis moi, je suis moi.”

Je suis moi, Michel Berger

Com as mulheres de outra ordem
Vós não deveis macular o corpo
Esperai; deixai pavão com macaco
Lá no lago reina a Wellede
Relembrando às moças um ensinamento morto
O segredo mais íntimo da mulher”

Stefan George, Stern des Bundes (Estrela da Liga)

A primeira imagem (plano?) de Jovem e Bela define todo um programa, um partis pris estilístico que estrutura o filme e sevicia ao espectador: a adolescente, de topless na praia, é recortada pela moldura de um binóculo, empunhado e punhetado pelo irmão mais novo. Esta operação de violação e reificação do corpo da mulher se desdobra em outras, mais ou menos paranóicas: ao transar pela primeira vez, aparece a Isabelle a figura de um duplo, que a julga detidamente; e a proliferação de superfícies espelhadas?, por onde a moça, agora prostituta de ocasião, se dispersa e desgarra, se refrata (o Duplo) e se reflete (o Narciso). Velhos mitos gregos trabalharam estes arquétipos do Mesmo e do Outro, acenaram-nos com o insight de que é no espelho da pupila alheia que verdadeira e finalmente nos perfazemos: eidos (figura, ser figurado) é este processo de cartografia do “si-mesmo” pelo esquadro do meu vizinho e algoz – mas também ele é por mim enquadrado, pesado e enfim exposto na vitrine: objetos e sujeitos recíprocos, escravos e senhores em posição reversiva e complementar.

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Na adolescência, temos as provas de fogo desta ubiqüidade constitutiva de toda consciência, desta arena agonística onde um confronto fenomenológico de olhares se segue a outro; entre a crispação mercurial do orgasmo e a ansiedade daninha do primeiro emprego, entre a Mãe por herdar e o Pai por esquecer: decifra-me ou devoro-te. No itinerário de Isabelle (Marine Vacth), acumulam-se os esbarrões iniciáticos, os cenários expiatórios, os deuses ex-machina desta demoníaca empreitada que consiste em cavar no Si-Mesmo a cratera deste Outro sem o auxílio e o opróbrio do qual jamais chegaremos lá (onde mesmo?): primeiros amantes, patrão amante, um clin d’oeil incestuoso, os indefectíveis espelhos… Quatro estações, todas as possíveis estações desta Gólgota do corpo monstruoso, de que a criança kleineana foi o primeiro esboço, o embrião – o corpo que aprendemos a compartilhar com tantos Outros, o corpo que aprendemos a mascarar de bibelô translúcido e teso. Polimorfa perversa, como em qualquer criança? Não. Apenas uma cobaia.

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François Ozon é um cineasta expert – um especialista no cultivo de uma concepção da imagem, de classe, de personagem e de mise en scène que em nada se alteraram ao longo dos anos – que permaneceram rigidamente fiéis a si mesmas, apesar e contra o fundo da diversidade de seus filmes em matéria do cânon “gênero”. Sabemos o que quer dizer este “excesso de fidelidade a si mesmo”, não? Este academicismo, orgulhoso de si, metódico, servido por um gênio timidamente insolente até as raias da obscenidade e os cimos (recalcados) da má-fé, é ilustrado à la letre em Jovem e Bela: os tantos monstros que o percurso iniciático de Isabelle poderiam engendrar, os mistérios a sopesar, os labirintos a trilhar são presentificados nos achados de uma mise en scène demasiado auto-complacente, irrisoriamente demonstrativa; é como se Ozon, ao mostrar-nos, com enfático enfado, as chaves do itinerário (os espelhos, as poses langorosas da garota sob a hipnose Bibliothèque rose existencialóide de Françoise Hardy, o confronto rival e “em atos” com outras figuras femininas, duplos contra as quais a personagem precisa se medir para, ao final dos embates, assumir-se como Mulher), apresentasse sobre a vitrine do filme as bugingangas-mediações indispensáveis ao metteur en scène para destilar a “receita” de seu metiê.

E é disto que se trata: os fantasmas de Isabelle não se encarnam (não se destinam) ao filme – muito menos a mim; e sim a serem ilustrações, precisa e demonstrativamente ordenadas, do espaço da camara oscura como um meio particularmente fecundo para a elaboração (e a palavra, de forma enervante, me sugere bastante do excesso de “concepção” do filme) de estudos – no caso, psicossomáticos, mas também de caráter (evitamos sugerir implicações freud-marxistas mais amplas, ao relacionar o narcisismo da personagem e o da época em que vivemos, ou pensamos viver). O academicismo do filme de Ozon se deixa flagrar nesta evidente vontade de domínio, nesta auto-complacência para com os significantes que indicam ou sugerem as transformações pela qual passa Isabelle – mas que a rigor não nascem nem deságuam nela. Assistam ainda uma vez à tantalizante seqüência em que a moça, figurada por uma série de poses à la Vogue, passa de cliente a cliente, simulando na carne o circuito de troca do capital – um meio de troca, jamais um sujeito de uso: Ozon não poderia ser mais redundante e ilustrativo, mais Ozon.

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Jovem e Bela é inorgânico, tentacular, neutro e blasé – nele, nada aspira à carne ou consuma no Nada, nada vive nem morre. Vejamos um filme como Aos Nossos Amores (1983), de Pialat, com o qual podemos a princípio estabelecer paralelos – Aos Nossos Amores, aliás, de que Ozon rouba com a desfaçatez característica um contracampo “sobre o ombro” de Isabelle/Suzanne sendo fodida pela primeira vez, na praia. No filme de Pialat, Suzanne (Sandrine Bonnaire), à semelhança de Isabelle, é provavelmente escolhida como o objeto central de um experimento in vitro – a casa laboratório! – que analisa os devires, os litígios, os processos na vida de uma família. Se Suzanne a princípio é o centro, então a geometria de Pialat não tem nada de euclidiana, pois este é um centro excentrado, indefinidamente recuado e precipitado – ou antes: ricocheteado – na inexata e implicada medida da economia, entre histérica e ressentida, que mobiliza os membros da família num processo entrópico de destruição (provável reflexo embrionário, no domínio da célula mater, do que espera por Suzanne lá fora?). Em Pialat, o estudo de caso não é jamais uma conclusão, e sim um princípio; é de onde se parte. O círculo nunca se fecha, os abalos (sísmicos, ou meteorológicos, na metáfora precisa de Serge Daney) são tudo o que conta – a Diferença é a baliza do ser, pois estamos num mundo regido por uma concepção energética, e não substancial. Aliás, daí a razão talvez de se escolher um personagem “em gestação” (uma adolescente) para se aferir, como em um sismógrafo, os turbilhões impressos pelo ser no espectro da Identidade (não só individual, mas de classe, institucional, etc). Para colocarmos em termos esquemáticos a Oposição que nos interessa, aos clássicos interessavam a Forma e a Substância; já o cinema contemporâneo é esta experiência avassaladora da Força e da Temporalidade; Empédocles e Platão contra Heráclito e Demócrito.

A razão de uma impossível comparação com Pialat está em que Ozon desconhece totalmente o uso revolucionário – tão caro ao cinema moderno – da elipse e do tempo, e se apega à superfluida superfície de uma narrativa causalmente convencional, pontuada aqui e ali por fetiches metafóricos (os “baratos” da personagem) que em nada deixam a dever, em matéria de ancien regime, às hoje insuportáveis figuras retóricas “poéticas” de uma certa vanguarda francesa dos anos 1920: natimorto. O efeito é pontual, perverso: castrar o imaginário do espectador e a experiência possível de Isabelle – em suma: seqüestrar-nos o direito a um exercício pleno do fora de campo; Claire Denis, Straub, Chantal Akerman, Breillat, James Benning, Kyioshi Kurosawa, Cassavetes, Brisseau, Goldman, Duras são alguns antídotos.

Aproximemos, a título de um experimento “masoquista”, Ozon com uma cineasta como Claire Denis, que em vários de seus filmes se serve de experiências limítrofes dos personagens com propósitos críticos – como mediações “encarnadas” cujo fito é a revelação de nichos secretos, recalcados, part maudites de uma classe ou civilização (o seu último Bastardos; Minha Terra África), destilar a verdade de uma pulsão (Trouble Every Day), desvelar as potências de um corpo na plenitude da Hybris ou da exaustão (Beau Travail, O Intruso). Qual o instrumento privilegiado de que Denis se serve para cristalizar, no interstício que jaz entre um gesto e um olhar, uma Diferença irredutível, que não apareça necessariamente num corpo ou outro, que soerga e volteje o seu intensivo punctum por sobre a sequência – e no entanto permaneça presente, radicalizando o cinema contemporâneo como este espaço de relações (Godard, Badiou) onde o que conta é o processo, a trajetória entre, o meio de, aquilo que deixa a fresta entreaberta, o fora de campo não-suturado, uma indefinida espreita, um veneno que paira e que jamais chegamos a identificar com um objeto (a não ser o objeto a), que contamina o filme inteiro com seu fantasma e seu stimmung? A elipse – elipse que Ozon não faz idéia de como se servir, pois só consegue manusear este privilegiado tool como meio de amarrar ou precipitar a narrativa. Na utilização da elipse, o manejo desta arte de modulações e de transições, de correspondências e inferências que possibilitaram ao cinema moderno ultrapassar as limitações clássicas – manifestação de uma presença presente, no espaço-tempo do plano – e atingir (inervar, exumar) as virtualidades do imaginário e a heurística da reflexão.

Jovem e Bela é um filme plano, indiferenciado, sem relevos nem contrafortes – um filme que não sabe o que fazer com a elipse, que corta em demasia e sempre aquém do que se deve, que não tem infra-estrutura (de supra, então, nem ouso falar) para utilizar os meios simples mas radicais de que o grande cinema se serviu para presentificar fantasmas. Mais um espécime destes exercícios televisuais academicistas, laboriosos e auto-complacentes, de que um decadente cinema francês contemporâneo nos tem servido o pasto insípido.

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