Ida, de Pawel Pawlikowski (Polônia/Dinamarca/França/Reino Unido, 2013)

março 1, 2015 em Em Cartaz, Fábio Andrade

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O que existe, aparece
por Fábio Andrade

A esta altura, Ida, de Pawel Pawlikowski, ganha sobrevida em cinemas pelo mundo, após levar o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira. Surpreender-se com a escolha faria do surpreendido preconceituoso tão vil (ou mais) quanto a (já suficientemente preconceituosa) Academia: por trás da aparente reverência em preto e branco do leste europeu, dos quadros estáticos e da dureza do tema, Ida é um coming-of-age clássico e em certa medida previsível, capaz de entregar todo os elementos que o espectador tradicional espera (protagonista e antagonista bem definidos; disparador da trama logo nos primeiros minutos de filme; jornada de amadurecimento cristalina) no tempo justo ao déficit de atenção do espectador contemporâneo (82 minutos), e que, de quebra, ainda traz a mais-valia histórica do drama judaico. Em uma relação transparente de consumo, Ida tem o valor do produto que cumpre à risca as expectativas do consumidor que busca, no filme, não só uma história que satisfaça, mas também certo desejo de bom acabamento (vale lembrar que, apesar de polonês por nascimento, Pawel Pawlikowski é cineasta de formação inglesa, com passagem pela televisão), conseguindo ainda reatar pontas distantes e mal resolvidas no drama imaginário do “bom intelectual” contemporâneo: a saudade de um Deus bem morto, o desejo de rebeldia da juventude e a boa consciência humanística de esquerda (os Dardenne que o digam).

Toda essa narrativa é suficiente para quem se satisfaz com uma história bem contada, mas Ida, como cinema, é um tanto mais complicado do que isso. Diante de trama tão mínima e, em alguma medida, descartável, a atenção permanece no que o filme tem de mais imponente: a composição visual. Mais interessante do que se ater às justas glórias ao trabalho de fotografia de Ryszard Lencewski e Lukasz Zal (a multiplicidade de tons de cinza a perder de vista por vezes faz esquecer que se trata de um filme em vídeo) e se concentrar na superficialidade (apropriada, neste caso, mas apenas como decorrência de uma tentativa de análise mais aprofundada) das estratégias de composição é perceber o quanto o filme parece conter uma espécie de para-narrativa imagética que, em diversos momentos, contradiz – ou ao menos obscurece – o que o texto tão abertamente diz que estamos vendo.

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Pois Ida é composto de uma série de motifs visuais que guardam sentidos muito marcados, mas que Pawlikowski primeiramente adota como convenção para, no decorrer do filme, reconfigurar, mudar (ou mesmo inverter) o sentido. Se a janela 1.37:1, por exemplo, veicula o desejo narrativo de se conectar ao cinema da época da própria narração (além de, nos últimos anos, ter se tornado atalho para o reconhecimento de certa “seriedade” no circuito de arte), o uso aqui não é nem estritamente como tableu – a composição frontal, retomando o sentido da moldura do quadro como espécie de proscênio –, nem responde à primazia do centro do quadro do cinema clássico, presente em cineastas tão distintos quanto John Ford, Dziga Vertov, Carl Dreyer, Ingmar Bergman (mesmo o de Persona) e Robert Bresson. Ao contrário, as composições aqui primam por um permanente desequilíbrio interno, como se ao quadro sempre sobrasse ou faltasse espaço. A primeira escolha plástica de Ida, portanto, é de se constranger a um formato que violente o campo visual, em vez de se adequar a ele.

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A sobra e a falta, embora aparentemente antagônicas, guardam sentidos semelhantes aqui. A começar pela sobra, marcada no filme pela onipresença de headroom – o espaço deixado acima da cabeça dos personagens enquadrados, que na linguagem técnica brasileira responde à paradoxal corruptela de “teto”- na grande maioria dos planos do filme, mesmo que para isso seja necessário obstruir e constranger o que de fato “ocupa espaço”. O espaço “vazio” acima dos personagens é mais importante do que os personagens em si, em uma constante reafirmação visual da consciência de Deus – e uma das primeiras pistas dessa para-narrativa do filme está justamente na ironia de a presença de Deus ser representada por um espaço vazio que não amplia nem constrange, mas necessariamente desestabiliza o equilíbrio do quadro.

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O segundo motif plástico diz respeito à falta: ao deslocar o foco visual do centro do quadro, Pawel Pawlikowski cria uma padronagem de mutilações, usando a moldura como centro focal. As personagens – humanas ou não – de Ida são frequentemente distribuídas nas margens do quadro, perdendo pedaços do rosto e do corpo em um deliberado acidente de composição. A estratégia, a princípio, parece responder a um paradigma do cinema moderno que afirma que, usando o cânone baziniano, a moldura do quadro é centrípeta, enquanto a tela do cinema é centrífuga. Mas se tal cânone reafirma o cinema moderno justamente como o reconhecimento do espaço fora de quadro (cinema moderno que nasce em Lumière), em Ida tanto o trabalho visual quanto o sonoro apontam para uma total ausência do fora de quadro, a começar pela materialização de Deus como headroom. A moldura, em vez de recortar, restringe, aprisiona. Tudo que existe, aparece: se uma personagem olha para a cidade pela janela, é preciso que a vista imprima como reflexo, no vidro. A única coisa relegada ao extracampo é a morte.

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Uma sequência chama atenção pela clareza programática dessa articulação. Quando Anna/Ida (Agata Trzebuchowska –performance tão celebrada pela absoluta ausência de performance, que novamente remete a um momento do cinema em que bastava um rosto – e, em Ida, de fato basta) parte em viagem com a tia Wanda (Agata Kulesza) para encontrar as peças que faltam ao seu passado (e não é estranho que, para um filme de investigação, as peças em Ida sejam tão facilmente encontradas? E, simultânea à estranheza, não seria essa facilidade uma pista de que, como em um drama clássico, o que o herói busca não é necessariamente o que ele precisa encontrar?), há uma montagem paralela entre a festa que acontece no restaurante do hotel e Anna/Ida sentada na cama, com o véu que lhe protege/esconde os cabelos, negando o impulso de descer e se juntar aos outros. A uma montagem econômica, bastaria ter um plano de Anna/Ida na cama, com o som da festa ao fundo; diferente, Pawlikowski dedica toda uma sequência de montagem à festa, novamente negando a presença do fora de quadro ao fazê-lo dentro: tudo que existe, aparece.

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E o que seria ausência de extracampo senão a inexistência de Deus e também do mundo material, essa entidade que, de tão concreta, leva personagens do filme a matar (a si mesmas, inclusive)? É eloquente que a primeiríssima imagem de Ida seja a imagem de uma imagem: Ida/Anna restaura um santo, frente a frente, olhos nos olhos, cabeça com cabeça. É um plano de brutal imanência, assim como estabelece o plano de construção imagética como única possibilidade de transcendência do filme. Não à toa, o quadro, em Ida, não permite fora, mas permite diversas camadas de dentro – janelas, ações em profundidade, reflexos, etc. Ainda assim, Deus é mais do que um espaço vazio: é algo que se carrega embaixo do braço, como um saxofone ou uma garrafa.

Em toda a exuberante plasticidade de Ida, persiste o niilismo político e religioso que encontra no hedonismo (do rosto, mais que do corpo; e, principalmente, um hedonismo da imagem; do próprio pincel) sua única válvula de escape. Sintomaticamente, uma das grandes desarmonias do filme está justamente no tempo da montagem que, sem qualquer pulsação, não permite esboço de imersão, saltando de quadro a quadro para montar uma espécie de iconografia esvaziada de religião, uma Paixão sem Cristo. É como se, diluindo A Paixão de Joana D’Arc (1928) em um profundo ateísmo, Pawel Pawlikowski assumisse procedimentos bazinianos para, no fim das contas, chegar a um Eisenstein sem montagem. Termina fazendo um filme de subtexto tão profundamente ateu e apo(ca)lí(p)tico que a clareza didática de seu texto só faz deixá-lo mais desconcertante. Essa dupla-identidade se coloca no parênteses da protagonista, que ainda assim estampa o título do filme, embora a personagem que o carrega nunca se identifique com ele a ponto de abandonar seu nome “falso”, o nome não-original. Luc Moullet dizia que certos cineastas são contrabandistas. “Contrabando é fingir que cocaína é açúcar”. Ida não tem clareza suficiente para ir tão longe, mas, em tempos de cinismo, o rebuscamento de sua perplexidade não deixa de ser fascinante.

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