Homem Irracional (Irrational Man), de Woody Allen (EUA, 2015)

setembro 18, 2015 em Em Cartaz, Paulo Santos Lima

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Sem razão… e de cócoras
por Paulo Santos Lima

Quando Woody Allen fez seu primeiro trabalho genial, Annie Hall (1977), Kazan e Sirk já haviam falado sobre as inevitáveis feridas abertas que as relações humanas deixam a granel. Fritz Lang já havia também falado sobre o mal da alma humana, numa natureza quase primitiva. Posto isso para retificar que Woody Allen jamais primou pelo pioneirismo ou vanguardismo, e sua força sempre esteve ligada a uma certa expertise autoral, uma visão de mundo muito afinada com o que existe de mais banal, contingente, mas também a ponta de uma indagação fundamental do homem moderno (do século XX): a relutante certeza sobre a razão e a cultura serem incapazes de nos levar à transcendência. A arte, talvez, e isso está belamente grafado em Hannah e Suas Irmãs (1986), obra-prima de um certo Woody Allen que paira lá atrás, entre um e outro trabalhos geniais entre outros meramente iluminados… ou inteligentes. Inteligência não como uma luz suprema, de gênio ou Deus, mas do factível, de um esforço intelectual para se fazer escolhas, observar e refletir melhor sobre um assunto. Woody Allen nunca foi um deus da mise en scène e nem um homem acima do seu tempo. Acima de média, sim, e por isso não é demais pedir um filme com o mínimo de cuidado intelectual. A história do cinema é feita, sobretudo, de obras comprometidas com impeditivos de serem uma opera soprema. E ainda bem.

Homem Irracional, contudo, está mais para uma piada, mais outro desses filmes que sugerem um Woody Allen oco, mera etiqueta duma certa autoria que só interessa a mercado e cinéfilos – e nada ao cinema. A desgraça de Woody Allen nessa produtividade insana é fato e útil para se pensar justamente nas condições materiais de realização demandadas pelo cinema, ainda mais com um diretor que encontrou uma razão (bem irônico usar essa palavra aqui) em continuar cineasta na atenção a certas marcas superficiais de uma certa autoralidade. Seja no trabalho com artistas “da hora”, rodar em países “de grife”, fazer um estudo sociológico da alta classe em viés crítico e de dentro, seja em repetir um certo “Woody Allen que todos amam”, o que importa é que Homem Irracional não precisa de Woody Allen, pois não é questão de ser melhor ou pior, mas de ser ruim. É uma perspectiva cinematográfica, a ver com o momento e não com o particular.

O tal “homem irracional” é Abe Lucas (Joaquin Phoenix), um deprimido e desiludido professor de filosofia que vai lecionar numa pequena cidade do interior norte-americano. Jill (Emma Stone), uma jovem aluna, interessa-se pelo mestre e o tira da deprê, mas Abe só encontra o tal sentido da vida quando decide matar um juiz corrupto, o que seria um ato de total liberdade, um atentado contra o estado de direito, mas afinado a uma ideia de justiça. Abe não sente culpa, e será Jill a lhe julgar sobre a responsabilidade moral de sua ação. Abre-se, ao professor, o dilema entre responder ou legitimar seus atos, levando à frente um projeto de sair ileso e fugir do país. Cinema da fala, mais do que da imagem, Homem Irracional se apoiará em referências a Dostoievski e uma exposição que, por fim, revela uma intenção de ser um ensaio sobre a natureza humana, quando, se muito, é mais um longa refém de um dispositivo estrutural que gera surpresa e certa catarse. É a tônica de vários filmes recentes de Woody Allen, mas também de outros tantos do tal cinema “indie” que trazem o inesperado e aberrante dos humanos.

Inusitado. Impossível não voltar ao próprio Allen para falar deste Homem Irracional. O perturbado mas doce personagem de Abe decide, então, dar cabo de Jill caso ela lhe force a confessar o crime e ir pro xilindró. Um inusitado que é, além de muleta, uma inflexão de humor sutil mas desesperado, gritando pela surpresa. É essa transcendência (é isso que, afinal, Abe quer, mas o filme o coloca como uma besta-fera) que Mickey, o neurótico personagem que o próprio Allen faz em Hannah e Suas Irmãs, encontra através de um inusitado que não parece, de jeito algum, programado ou funcional. Angustiado com a vida, como Abe, Mickey encontra um sentido na vida ao assistir a uma comédia dos Irmãos Marx. A situação surge do nada, na tela, não comprometida e justificada por uma exposição prévia, “teórica”, como filme-laboratório, mas como um desses acasos que geram o que há de mais artístico no mundo. Porque a fala é mais uma camada, ora confirmando, ora desorientando as certezas, e no (bom) cinema de Allen é um dado estético que é quase uma música, uma trilha extra a seguir, e não uma afirmação de patente.

O irracional, em Homem Irracional, é tentar ser razoável demais, seguir à pauta uma demanda confortável, a de fazer algo conforme as condições físicas e espirituais do criador ou as expectativas daquela ponta no fim do horizonte chamado espectador. O sublime do irracional, de fato, é fazer isso que se chama de cinema, sempre gerador de angústias e dores. Não é questão de se repetir ou de estar bem longe do front vanguardista, mas de não se agachar de cócoras ao conforto.

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