Hacker (Blackhat), de Michael Mann (EUA, 2015)

agosto 12, 2015 em Em Cartaz, Paulo Santos Lima

Blackhat (2014), Michael Mann

Blackhat (2015), Michael Mann

De Fogo Contra Fogo a Blackhat: O que terá acontecido a Michael Mann?
por Paulo Santos Lima

Fogo contra Fogo (1995) é o melhor filme de Michael Mann. Miami Vice (2006), a obra-prima de Michael Mann. O primeiro abarca todo o drama humano em sua dimensão homérica, partindo dos elementos do cinema de gênero (policial) para uma gama dramática que atinge profundezas de punho existencial, engendrando tanto uma inefabilidade material (contingências do mundo mesmo, como morte, cotidiano, trabalho, projetos) como uma inefabilidade moral bem típica desse cinema policial. Já Miami Vice é uma depuração do que está (magnificamente) em Fogo contra Fogo – que, por sua vez, é a primazia num percurso filmográfico sugerido em Thief (1981), estabelecido no conceito do seriado Miami Vice (1984-1990) e, mais literalmente, em Manhunter (1986). Michael Mann e seu cinema são a relação entre 1995 e 2006, entre Fogo contra Fogo e Miami Vice, entre o instante supremo e sua sublimação, entre a realização e sua eternização.

Fogo Contra Fogo, Michael Mann

Fogo Contra Fogo (1995), Michael Mann

Eternizar, imortalizar, preservar, capturar, inscrever, salvar… seria essa a razão do gesto artístico? O do cineasta, parece certo que é a busca da imagem. Ou melhor, do instante. Em itálico, porque instante seria uma instância portadora de todo um jogo de forças, seja o da realização cinematográfica, seja o que está finalmente na tela. É o momento que condensa todo um empreendimento em realizar o “milagre” da reprodutibilidade cinematográfica. Essa é a busca eterna de todos os cineastas. Michael Mann é grande réalisateur desse instante. Um deles está, por exemplo, em Miami Vice, a série, quando a narrativa abria um flanco para nos oferecer uma contemplação estética, em extáticos planos de carros flutuando pelos veios asfálticos da Miami “colorizada” de Mann, arquitetura e atmosfera em pano de fundo, ao som de alguma canção pop chique 80’s. Não é o espetáculo, mas o espetacular, e servindo como carga dramática sobre os personagens, os policiais Sonny Crockett e Ricardo Tubbs, que sempre estavam no fio da navalha. Em Fogo contra Fogo, não só concebido, mas dirigido por Mann, há a consumação desse instante. Momento crucial entre o assaltante Neil McCauley e o policial Vincent Hanna (também entre Robert De Niro e Al Pacino), a imagem acima traz todo um cosmos capturado: num mundo em pleno movimento, dois homens num aperto de mão que revela amor, respeito, uma partilha sobre o medo, a tristeza e o vazio diante dessa inefabilidade da vida que nos coloca numa contagem regressiva inescapável. Os arbustos, as luzes da pista do aeroporto, um céu reproduzido quimicamente na tela, o som dos aviões compartilhado com a trilha incidental dramática.

E um detalhe: Hanna, que está de pé, olha para o horizonte, como McCauley fizera antes. McCauley e quase todos os personagens dos filmes de  Mann. A situação do personagem no mundo, condição síntese da narrativa clássica, desde Homero, é, no cinema, o indivíduo em relação a uma paisagem, ou plano de fundo. O que Michael Mann faz, também, é depurar e levar à frente uma experiência suprema do drama clássico, algo que sobretudo os westerns realizaram mais sintomaticamente. Nessa relação entre homem e mundo (que é de espaço-tempo, da ação, do movimento e deslocamento), é o tempo quem desenha o drama. Os homens de Mann olham para o mundo, esse lugar onde a matéria e o tempo são implacáveis, desejando uma transcendência, um paraíso, um vislumbre. Os homens de Mann também correm contra o tempo. Mais ainda, os homens de Mann sonham; sonham sem jamais sair do chão: há o trabalho, o esforço, a aplicação, as contingências físicas, o dinheiro, a família, os amores, lealdade e traição. O drama dos homens de Mann é cinematográfico, pois tentam encontrar um sentido além na imagem, tentam mudar a causa-efeito da vida, reformar o tempo e o espaço.

O cinema de Mann é sobre o trabalho, o cotidiano, isso que há sempre de comum mesmo nas situações mais extraordinárias (e cinematográficas). Mann vai à tradição espetacular do cinema para reencontrar a essência de seu primeiro instante: uma relação mais franca entre a câmera e o que ela coleta do mundo. Isso está no seu processo criativo: a busca por locações com potencial dramático, longas pesquisas sobre o assunto e sobre a história dos personagens, intensos processos de preparação de elenco (Colin Farrell passou sete dias aprendendo a pilotar uma Ferrari para aparecer nela por não mais de 1 minuto em Miami Vice), a dedicada seleção do elenco, a aplicação em novas tecnologias de captação e pós-produção etc. Enfim, Mann é, também, um homem que faz seu trabalho, ou seja, dirige filmes, e sem a pose de auteur, e sim de um operário, mais para um Raoul Walsh.

Miami Vice (2006), Michael Mann

Miami Vice (2006), Michael Mann

Miami Vice, o longa-metragem, é resultado desse esmero. Mann consegue o impossível: filtrar e levar à tela o essencial, ou seja, o instante por excelência. O ritmo da trama, que parece mais acelerada, é também mais musical, coincidindo com a pulsação dos corpos (o tira Sonny Crockett e a namorada do narcotraficante estão apaixonados), com a correria insana pela sobrevivência, pela taquicardia da rotina maldita de policiais que se infiltram em gangues. Mann consegue o sumo: cada plano cumpre a funcionalidade de um cinema mais narrativo e também de uma tradição de arte moderna, pois quase abstrata, ou próxima do impressionismo pictórico. A imagem acima confirma que cada elemento, cor, volume e porosidade em cena convida a uma sensação, a um estado de percepção. Atores e espaços, ou personagens e mundo diegético são coisa única, numa integração molecular. Não são poucos os cineastas que passam um filme, ou até uma filmografia, buscando sem sucesso esse instante, que é a imagem, o enquadramento, o que está em jogo em cena, o som e a duração do plano que consigam firmar algum sentido mais exato às ambições espirituais do artista ou artesão. Michael Mann encontra a graça divina aqui.

Thor, o impossível

Mas, assim como Alexandre o Grande e a seleção brasileira da Copa de 1982, Mann é um desses colossos que também podem dar um tropeção feio. Blackhat, lançado no Brasil como Hacker, é um thriller de ação sobre a empreitada de autoridades chinesas e norte-americanas para encontrar um hacker do mal que invade sistemas para cometer atentados com o fino propósito de enriquecer. O filme acompanha a investigação com atenção a um policial chinês e um hacker que, preso por cometer invasões indevidas, é chamado para ajudar a polícia e, quiçá, reconquistar sua liberdade. Ambos, o chinês e o americano, são amigos de faculdade. À parte as escolhas de gente com forte substância expressiva, como Pacino, De Niro e Diane Venora, Mann às vezes arriscou nos convites mas sempre acertou na direção e extraiu maravilhas de canastrões como Colin Farrell e Russell Crowe.

Em Blackhat, contudo, é Chris Hemsworth, mais conhecido por estrelar Thor,  quem faz o hacker do bem, o grande “herói” da história. Michael Mann conseguiu, com os nomes citados acima e mais de dezena de outros, encontrar nos rostos em cena toda uma expressão mostrada, trazendo o grande drama da existência, esse que acompanha todos os seres da Terra. O rosto no cinema de Mann é idem ao de Carl Th. Dreyer, que se fixa obstinadamente à superfície e consegue capturar algo que habita as profundezas dos seres, que a câmera, por incidência, consegue extraordinariamente capturar. Os olhos, sobretudo, mas também os lábios e os crânios ganham uma potência que é mais comum e possível na expressão pictórica. Chamemos Chris Hemsworth de Thor, pois é o mais adequado nome para esse rapaz ter na história do cinema. Um zero absoluto, um brucutu com olhos vazios, feições adequadas a figuração em planos mais abertos, cabelos louros à tinta e luzes, é um buraco negro que esvazia qualquer possibilidade num filme que sugere a tal busca pelo instante, mas se confirma como um filme de ação cuja espetacularização acontece como uma bexiga à meia enchida.

Blackhat (2014), Michael Mann

Blackhat (2015), Michael Mann

É Thor, também, quem sedimenta um aparente “descompromisso” de Mann em extrair algo especial, particular e emblemático do “prosaico reconhecível” (a vida comum). Melhor ator de todos os tempos, De Niro em Fogo contra Fogo é um ótimo exemplo, quando seu rosto de “homem comum” alcança uma densidade a qual nenhum outro ser do planeta Terra se aproximaria. Porque, além do elenco, os personagens de Mann são aquilo que fazem (e sabem fazer), são frutos de suas próprias histórias de vida. Pois, a horas tantas, do nada, o hacker do bem, até então um CDF intelectualmente arguto e de rebeldia convicta em peitar as grandes empresas, mostra-se destro no uso de arma de fogo e na tal vingança solitária. A inverossimilhança raramente é um problema dramático, mas pode ser um problema cinematográfico quando todo o processo criativo de um cineasta está assentado em certezas materiais, de grandeza física mesmo, mecânica, de ação e reação. Michael Mann é um desses cineastas.

Há também a primeira sequência, em CGI, algo também aberrante no cinema de Mann, que evidencia um “outro Michael Mann”. Sem dúvida uma das melhores utilizações da tecnologia no cinema de ação dos últimos 20 anos, o CGI aqui reproduz o caminho entre o computador do hacker e o sistema de arrefecimento de uma usina nuclear da China, pois a intenção do hacker é explodir seu reator. A mise en scène da passagem do fluxo eletrônico pelas placas é a dos filmes de heróis de quadrinhos, coisa de sci-fi ou geek. Mann sempre respeita a superficialidade da natureza apreensível, típica do cinema, e trabalha nessa superfície possível, táctil, a da vida. Nessa sequência, seu cinema mostraria apenas os seres implicados nos fatos, o que está latente, e não o que ocorre fora do escopo do drama humano.

Blackhat perde seu prumo num vôo sem norte, sem chão (a superfície, mais uma vez), numa empreitada que sugere um Michael Mann procurando o instante, ora encontrando (a subjetiva da policial Viola Davis ferida a bala, tombada ao chão), mais quase sempre perdendo-o entre os dedos. Porque o instante é possível, sempre, num determinado momento, que escapa fácil. E a trama de Blackhat ocorre completamente desregrada, sem causa e efeito, sem as tais forças do mundo que determinam o drama dos personagens do cinema de Michael Mann. Quando ocorre o acasalamento estético, por exemplo nas duas sequências geniais de tiroteio, Blackhat borrifa uma sofisticação que, mesmo ótima, ironicamente torna o filme ainda mais retalhado, como um Frankenstein.

A contrapartida não existe para o hacker feito por Thor, que tudo pode, que muda de ofício entre a análise de sistemas e a justiçagem do cinema policial vagabundo. É terrível, mas a beleza do mundo está no limite que ele nos impõe, inclusive à natureza. A aventura e o sonho estão em tentar tornar possível o impossível. Os homens de Mann não são deuses, e por isso olham para o horizonte pensando num lugar melhor, num paraíso possível. Era assim que McCauley, em Fogo contra Fogo,  pensava em sua varanda, olhando a paisagem (que Mann propositalmente deixa latente ser um Chroma-key, como se fosse uma recriação ideal do próprio personagem) planejando sair do mundo do crime para uma vida comum, feliz, bem longe daquela Los Angeles.

O grande protagonista de Blackhat nada teme, e por isso nada tem, num filme que também está perdido, como se seu autor estivesse procurando a si próprio. Quando, na verdade, é Michael Mann quem deve procurar pelo seu filme. A obra-prima inscrita na história do homem, Miami Vice, ou o melhor feito do cineasta Michael Mann, Fogo contra Fogo, não garantem suas repetições. Tão somente, é só Michael Mann quem é capaz de, em filmes ora menores ora melhores, manter sua perenidade como realizador. Não é um problema de garrancho, pois as rebarbas fazem parte da vida, como comprovam obras que jamais perderam o interesse nos altos e baixos, de Francis Ford Coppola a William Friedkin. No mais, Mann não é narciso. E por isso permanece o enigma: o que terá acontecido a Michael Mann em Blackhat?

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