Gérard Blain, o proscrito

fevereiro 11, 2014 em Em Vista, Luiz Soares Júnior

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Jusq’au bout de la Nuit (1995), Gérard Blain

por Luiz Soares Júnior

Os personagens trágicos devem ser contemplados com um outro olhar, distinto daquele que lançamos de forma ordinária àqueles que estão perto de nós”.

Racine, Prefácio a Bajazet

Uma obra na primeira pessoa é sempre o retrato de uma voz”.

Marguerite Yourcenar, Aléxis ou o Tratado do inútil combate

Em Jusq’au bout de la Nuit (1995), há um plano que me obseda e constrange – o plano quase obsceno, em sua materialidade de “Aqui jaz”, de um corpo estendido sobre a maca de um necrotério: é a mãe do personagem principal, homem alquebrado cuja face estampa a cicatriz de uma vida que não foi. Como o Cristo de Mantegna, este corpo nos é restituído sob o ponto de vista de alguém que vela ao pé do morto. Mas, ao contrário do Cristo de Mantegna, em que o trabalho da perspectiva permite-nos implicar a imanência da observação experimental na transcendência da devotio mística – o Cristo autopsiado pelo olhar analítico e adorado em seu status de ex-voto sagrado -, há aqui uma distância irrecuperável, uma irrealizável conciliação: entre o personagem que vela e o que jaz, intercalam-se a impassibilidade da luz mortiça do necrotério, o choque metálico do contracampo acerbo, a neutralidade do décor. Entre um campo que expõe e um contracampo que sutura, o décalage vertiginoso entre minha consciência e o mundo, onde ela sofre um processo irreversível de alienação/objetificação. O cinema de Gérard Blain conta a história desse indecoroso litígio.

O campo e o contracampo em choque frontal, o hieratismo desenraizado dos “modelos” (enfatizado por um ligeiro faux-raccord de olhar), a decupagem incisiva e elíptica – na qual o que é determinante, segundo a lição bressoniana, é a cadeia de efeitos ou a seqüência de gestos em que eles se cristalizam -, são figuras estruturantes do cinema de Blain, e designam a cesura de uma dupla alienação, existencial e afetiva: figuras deficitárias da cisão irremediável (entre mim e o Outro, entre nós e o mundo), da deriva, do combate perdido de antemão. A retórica da incomunicabilidade dos cinemas novos aqui encontra uma carne para habitar, um diapasão para respirar: nenhum de seus personagens parece ter um lugar no mundo e no Outro, e o contracampo, ao invés de recolher ou prolongar o vibrato do que se manifesta no campo, intercepta-o, bloqueia, liquida.

Os Amigos (1971), Gérard Blain

Os Amigos (1971), Gérard Blain

Herdamos da lição clássica a idéia de que a paliçada do campo e do contracampo era o interstício estratégico onde se entrincheiravam a interpelação e o diálogo, a escuta e o acolhimento – onde, enfim, o Outro se dava a ver e me intimava a corresponder à sua inquirição: litígio da palavra e do olhar, destinados a se condensar num gesto ético de reconhecimento e de asilo. “O que diz o rosto quando eu o abordo? Este rosto exposto a meu olhar é desarmado. Sob a compostura em que se mantém, trespassa a fragilidade e surge a mortalidade. E isto a um tal ponto que se quisesse eu poderia destruí-lo – por que não? E no entanto, é aí que reside toda a ambigüidade do rosto e da relação ao Outro. Este rosto do Outro, sem recursos, sem segurança, exposto a meu olhar em sua fragilidade e mortalidade, é também aquele que me ordena: ‘Não matarás’.(…) O rosto consiste nesta possibilidade do crime, nesta impotência em cometê-lo e nesta autoridade que me comanda: ‘Não matarás’ ” (Lévinas). Mas, no cinema de Blain, o campo e o contracampo são estes contrafortes rochosos, impenetráveis, em que o olhar de quem se entrega e o gesto que se desarma jamais chegarão a se encontrar: aqui, o corte disjunta e segrega.

Os amantes de classes sociais distintas em Os Amigos (1971), o pai e o filho perdido e recuperado à distância de um panóptico improvisado em O Pelicano (1974), Gérard e seu irmão morto em Jusqu’au bout de la Nuit, a criança solitária e a mãe em Um Garoto na Multidão (1976), o empresário homossexual e o ragazzo di vita em O Rebelde (1980): todos habitam mundos e línguas incompossíveis, destinados a uma radical alteridade, segregados pelo limiar estabelecido pelo contracampo: Nec plus ultra! Se a cadeia de planos um dia foi a instância porosa de comunicação e trânsito de signos, aqui ela se encontra paralisada por uma ênfase paranóica na frontalidade – aquilo que no modelo clássico (segundo o paradigma de dom do ícone medieval) constituía a moeda de troca da circulação simbólica conduz os filmes de Blain, por seu metódico uso, a uma espécie de embolia: à entropia existencial dos personagens sem “situação” no universo burguês corresponde uma hemiplegia retórica, uma insistência e resistência do campo em adquirir relevo, autonomia, gravidade. O mundo não se deixa abordar ou interagir comigo; ele simplesmente é aí – inerte e pesarosa massa de entes em sua imanência escandalosa, ao alcance do olho mas inabordável pela mão. À janela baziniana, lugar de transparência e acessibilidade numinosas, substitui-se um impenetrável muro: aquele que os aríetes impotentes podem no máximo canhestramente escalar, jamais transpor ou romper (o pai apreendendo, na insuperável distância de um binóculo, o modus vivendi do filho perdido no parque de diversões reificado de uma villa suíça, em O Pelicano).

A frontalidade em seu cinema consiste na exposição programática desta maciça e opaca retração do mundo ao marginal – as coisas se manifestam aí, os seres nos aparecem, mas em uma dimensão chapada (uso da focal curta); rasa, plana, impossível de ultrapassar (a aprofundar em mim), infensa à transformação da ação humana; um determinismo trágico, um Fatum soturno espreita sob a transparência e o aerodinamismo da decupagem à americana de seu cinema. “(…) pois a frontalidade (…) exclui absolutamente toda a profundidade, ou dizendo de outra maneira, a possibilidade de penetrar e de se fundir no mundo. Nenhuma profundidade de campo (e, consequentemente, nenhum traveling que venha a cruzar e explorar esta profundidade), nenhuma profundidade dos seres no cinema de Blain” (Burdeau). O mundo como aquilo que ontológica e ônticamente (social, econômica, politicamente) se opõe e impõe a mim, contra o qual sou obrigado a exercer a espreita acuada da contemplação, na foto – reportagem frontal – espreita esta que, nos últimos filmes (O Rebelde, Jusq’au bout), num in extremis desesperado, acaba por armar-se com os petardos terroristas da Reação.

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Um Garoto na Multidão (1976), Gérard Blain

O Pelicano (fotos) talvez seja o filme em que se encena de forma mais característica esta impossibilidade trágica na qual se encontram os personagens de Blain de, em um mesmo movimento, contemplarem o mundo e habitá-lo. Um pai, preso durante muitos anos, sai da cadeia e perde os direitos de guarda sobre o filho, que agora é custodiado por um milionário suíço, com quem a mãe se casou. Ele se condena a observar, armado de um binóculo, o cotidiano “Montagem de atrações” de uma mansão suíça, onde seu filho agora vive. Em planos seqüência e gerais, observamos o pai observar o processo de domesticação da criança, como se fizéssemos uma visita guiada a uma linha de montagem taylorista da subjetividade. Um ritornello cruel – refrão incansavelmente repetido da “Jolie vie, Jolie” – encadeia as fases desta demoníaca operação de alienação do ego; é uma linha de montagem behavorista, mas também um espetáculo sinistro, sobretudo pelo seu ar casual, cândido em aparência. E se nos recordarmos das partidas de tênis e das corridas de cavalos dos burgueses em Os Amigos, dos huis clos cerimoniosos regados a uísque e xadrez em O Rebelde ou Jusqu’au bout, vamos encontrar na obra de Blain um comentário preciso sobre esta necessidade essencial do capitalismo em dar-se em espetáculo – em magnificar, por intercessão do valor de exposição, a manipulação em série suscitada pelo valor de troca.

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Do outro lado da vida e da tela, restam estes “heróis” impotentes, equilibrando-se no fio do sursis, aliciados e espoliados pelo olhar, prisioneiros do que vêem (e não lhes retorna o olhar). Mas a besta morde, quando acuada: no tiro fatal no capitalista em O Rebelde, no seqüestro de Jusqu’au bout de la Nuit, a violência é a meio ativo de uma pobre, sáfara forma de resistência: “Vocês sempre ganharão, mas eu ganhei um pouco também”. O assassinato de Maria e de Gérard no final de Jusq’au bout de la Nuit é filmado como se testemunhássemos uma ação guerrilheira: cercado por bombas de gás lacrimogênio e por uma miríade de detonações em off, o personagem atira lancinante, delirantemente pela janela contra a polícia. Uma parte maldita do gesto trágico e uma impossível afirmação se manifestam aqui – nestes impropérios roucamente lançados por Gérard contra o fora de quadro (“Assassins!! Assassins!”), no corpo de Maria em posição lateral ao fundo do quadro, no contracampo que recolhe a ambos estendidos sobre o chão… O desesperançado niilismo destas ações extremadas acaba por adquirir, pela forma afiada e vibrante com que Blain sabe encarnar as paixões tristes, uma sombria aura de grandeza – desta grandeza raciniana que sabe imprimir aos eventos mais irrisoriamente melodramáticos um pathos litúrgico de Eterno.

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Jusq’au bout de la Nuit (1995), Gérard Blain

A salvação talvez exista, mas não para nós” (Kafka). A reconciliação talvez exista em seu cinema, mas no espectral domínio da Memória no fora de campo, inacessível Éden aos mortais presentes: os flashbacks da infância do menino em O Pelicano, a fotografia do filho morto em Jusq’au bout de la Nuit, a recitação de um trecho de Racine emoldurando a foto do amigo desaparecido em Os Amigos: a felicidade e a doçura do viver são para um Outro, e este desapareceu, tragado pelas vicissitudes da duração. Estes filmes austeros constituem a Memorabilia de um luto irredimível, sua cicatriz.

Uma das idiossincrasias mais pungentes do cinema deste discípulo crepuscular de Bresson consiste no fato de que uma retórica quase foto- jornalística de revelação do presente – planos frontais e centrais, virulência do contracampo como colisão frontal – sirva de invólucro ao fantasma: tudo o que realmente importa e significa está ausente, irremediavelmente distante, pretérito imperfeito preservado na manhã da primeira infância ou destinado ao crepúsculo iminente. O cache da tela enfim vence sua vocação de janela. Se Blain registra e ratifica com rigor documental o que nos aparece, é para glosar com amarga ironia o dístico imemorial de Rimbaud em Uma Temporada no Inferno: “La vrai vie est ailleurs”. E nós com ela.

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