Garota Exemplar (Gone Girl), de David Fincher (EUA, 2014)

agosto 12, 2015 em Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira

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Imagens prontas, verdades perdidas
por Pedro Henrique Ferreira

Existem muitas implicações no simples ato de se filmar um rosto que um diretor não pode ignorar impunemente. O dramatismo griffithiano. A máscara bressoniana. A sublimação sternberguiana. A psicologia bergmaniana. A verdade balazsiana. Por causa da história destas imagens, um rosto em tela dificilmente não implica ou não traz secretamente imbuído nele a definição de um regime de representação – isto é, a relação entre um corpo ou uma imagem e seu conteúdo, seu significado. Um rosto é um rosto mas, historicamente, é também o que está ou não está por trás dele. É a eterna questão entre a imagem e a verdade, a dramaturgia do olhar e o que este limite está definindo a cada instante que um rosto aparece na tela. Garota Exemplar começa e termina com a imagem de um rosto. É uma mulher loira sendo acariciada pela mão do narrador. Em princípio, não vemos sua expressão, mas logo ela se volta para a tela, e não temos certeza se ela olha para o dono da mão ou para nós. Uma voz over evidencia a questão: “Quando penso em minha esposa, sempre penso em sua cabeça. Imagino rachar o seu amável crânio. Desenrolar seu cérebro, tentando encontrar respostas. A questão primordial de qualquer casamento: ‘no que você está pensando?’, ‘o que está sentindo?’, ‘o que fizemos um ao outro?’”.

Este rosto e estas indagações que figuram na primeira e na última imagem criam o arco que emoldura o mais recente longa-metragem de David Fincher. Garota Exemplar é uma continuação das reflexões iniciadas em seus dois longas-metragens anteriores, Rede Social e Millenium: o Homem que Não Amava as Mulheres. Esta não-trilogia que estabelece as diretrizes ontológicas do universo do diretor se configura também como uma curiosa reflexão sobre o estatuto da imagem nos EUA do século XXI. Entre si, traçam uma continuidade ou resposta àquilo que ficou por aberto nos outros dois filmes. Por exemplo, o Zuckerberg de Rede Social era um gênio porque percebia uma demanda e a respondia imediatamente, mas era alheio às amarras jurídicas (nas quais a linha narrativa se inspira) de seu gesto. A Lisbeth de Millenium, seu protótipo mais acabado, desvendava a verdade de um crime associando fotografias do passado, mas era também incapaz de comprovar sua descoberta. Então, a heroína dá um passo adiante e decide forjar um outro crime diferente para colocar o criminoso na cadeia. A Amy Dunne (Rosamund Pike) de Garota Exemplar nasce deste paradoxo aberto no final de Millenium: a verdade não importa tanto. Ela se tornou acessório diante da capacidade de persuadir, seduzir e inventar provas.

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O dilema é a relação possível entre a imagem e o conhecimento, sintetizado no rosto indagativo no princípio e no final do filme. Este mesmo tema já surgira nas sequências em que Lisbeth associava as fotografias no arquivo da empresa de Millenium, embora de forma mais discursiva do que orgânica, e nos remete a como esta mesma relação estivera em pauta na leitura que o Blow Out (1981) de Brian de Palma fizera do Blow Up (1966) de Michelangelo Antonioni.

A fotografia revelada e ampliada pelo Thomas (David Hemmings) de Blow Up colocava uma pista, “a pista de um crime”, como era a perna na pintura abstrata de seu amigo. Mas Thomas não perseguia a pista. Por um lado, porque fazia parte de uma geração que preferia divertir-se com signos mutáveis (o braço de guitarra, que é logo abandonado após o show quando perde o sentido) e que não discernia entre o palpável e o impalpável (o jogo de tênis sem bola). Por outro, porque uma busca como esta seria solitária. O protagonista não encontra pontos de apoio nos que estão a seu redor, evidente na imagem final: um plano geral onde o rapaz está sozinho em um enorme campo verde. Falta-lhe vontade, mas falta-lhe também o estímulo.

O Jack (John Travolta) de Blow Out persegue quase solitariamente a verdade do som que captou. Ao contrário do seu antecessor italiano, assume a tarefa de enfrentar um mundo que, por motivos políticos, o tempo todo lhe desencoraja. A questão já não é se há pistas na imagem ou a motivação do sujeito. É se a realidade apreendida pela arte tem utilidade. O artista chega a ela postumamente, quando já não pode transformá-la. Sua angústia não é a incapacidade de desvendá-la, mas de modificá-la. Jack chega ao grito, mas já é “tarde demais” (expressão importante para a geração de De Palma) para salvar quem grita. O grito gravado não redime a realidade. Torna-se um utensílio para um novo filme ruim. Diante da constatação de Antonioni (a verdade não é perseguida) e de De Palma (a verdade já não tem utilidade), a Lisbeth de Fincher dava um passo em outra direção. Associando as fotografias de arquivo, decifrava um crime. Mas era incapaz de prová-lo. Para condenar o culpado e fazer justiça, inventava um crime diferente. Lisbeth descobre que, não obstante morada da verdade, a imagem só tem utilidade prática como sublimação. A tal garota ao qual o título de Garota Exemplar faz menção, a Amy, é uma extensão da Lisbeth de Millenium. Desde cedo soube que a função da arte é sublimar: seus pais escreviam livros infantis inspirados em sua vida, tornando em sucesso tudo que na realidade eram falhas e defeitos.

A trama histriônica inicialmente segue o diário de Amy, encontrado pela polícia após o seu desaparecimento. O diário retoma o passado da protagonista, seu casamento com Nick (Ben Affleck), o desenvolvimento deste relacionamento em paralelo às investigações do sumiço dela. As palavras do diário e as provas encontradas apontam o marido, dono da voz inicial que teria deixado de amar a esposa, como principal suspeito. Temos então a primeira virada: Amy está viva e planejou meticulosamente a própria morte para incriminar o marido infiel. A virada produz um nó dos estereótipos pelos quais o filme opera. A garota exemplar se mostra como a vilã diabólica, do mesmo modo como a punk anarquista eventualmente se mostrava como a grande heroína de Millenium. O marido violento se revela apenas um bobão inocente.

Amy esconde a verdade e utiliza-se de um repertório de signos tradicionais da cultura norte-americana que concretizam o que é o bem e o que é o mal, incriminando seu marido e produzindo as imagens pelas quais a sociedade e a mídia o enxergarão, o julgarão e o condenarão, independentemente da realidade dos fatos. Enquanto a primeira parte da trama nos mostra a invenção de Amy, a segunda parte dedica-se ao processo desta invenção e à luta de forças que a promovem. Nick contrata o advogado Tanner Bolt (Tyler Perry) para defende-lo e aprende que contar a verdade não irá salvá-lo. É vital convencer os jornalistas, os apresentadores de talk-shows, a população local e a polícia que ele é um homem do bem. Ou seja, deve tornar-se, como diz o jargão, o “garoto exemplar”. Caso o contrário, será condenado à pena de morte.

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Repetindo o diapasão dos recentes longas-metragens de Fincher, a imagem se torna ferramenta de persuasão, sublimação, construção de mitos. Só ela dita o rumo dos acontecimentos e só ela enfim pode transformar esta realidade da qual ela se encontra completamente apartada. Um regime está em pauta. Fincher faz deste seu caminho de representação, em um repertório que já há muito vem se tornando uma espécie de metodologia. Há novamente a obsessão por catalogar os objetos, descrever personagens com agilidade, decorrentes de uma pouca ou quase nenhuma preocupação em problematizar o sentido deles. Uma pedra é uma pedra. Uma loira é uma loira. A imagem é o que uma cultura faz ela ser, e não o real que existe por trás dela.

Tudo na imagem está pré-definido pelos sentidos que a história da arte (e do cinema) lhe emprestaram. Se o artista chegou tarde demais e os significados das imagens já estão todos dados, não basta distorcê-los, exacerbá-los ou reinventá-los. É preciso antes destruí-los. O que resta ao artista é a capacidade associativa, o gênio hoggarthiano de conectar o que está pronto e criar uma entropia com os seus sentidos mais evidentes. O ritmo dos planos e da narrativa torna-se acelerado, antidramático, mecânico ao ponto do academicismo. O que se vê é mera informação. Evidentemente, o trabalho de mise en scène de Fincher se torna (cada vez mais) o mais plano e unidimensional possível, o que naturalmente irrita os guardiões do bastião da encenação. No entanto, acusá-lo de sociologismo ou academicismo é ignorar totalmente o quão irônico é o seu trabalho com os estereótipos. É ignorar o grande pulo do gato de Garota Exemplar, que é o movimento imposto pela terceira parte do longa-metragem.

Após reconfigurar sua aparência, Amy foge pelos EUA e recorre a um antigo namorado, Desi Collings (Neil Patrick Harris), que a acolhe em sua mansão. O personagem é um milionário de gosto artístico refinado que faz paralelo aos estupradores de Millenium, tanto o “preceptor” de Lisbeth quanto o vilão maior da trama (o capitalismo e a alta cultura são cúmplices), porém mais brando. Nick não convence o mundo de sua inocência, mas convence Amy em um pronunciamento em TV pública. Ela esfaqueia o milionário e retorna à seu antigo mundo, forjando uma nova fábula e obrigando Nick a viver como o garoto exemplar que ele mesmo forjou.

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Assim, Garota Exemplar também se torna aquilo que os dois longas-metragens anteriores prometiam, mas não chegavam a concretizar: um filme de amor. A sarcástica virada final cria também um tom sombrio. No mundo de Fincher, só existem manipuladores, estupradores e imbecis – é preciso escolher ser um dos três, e ser um imbecil é provavelmente o caminho mais digno. O amor existiu em um passado longínquo, mas tornou-se frio e calculado. As imagens possíveis neste mundo estão todas prontas. Vence sempre quem melhor sabe forjá-las. “Como vamos viver assim, mentindo uns aos outros o tempo todo?”, pergunta Nick, e a resposta de Amy é imediata, “casamento é isso”. O retorno ao rosto final coloca um novo ponto de interrogação: “O que fizemos uns aos outros?”. Ou seja, como permitimos que a representação chegasse a este ponto? A crise existencial do amor como dúvida da representação, vista e revista em tantos clássicos hollywoodianos dos anos 1950, é reposta, indicando um problema que ainda não foi resolvido. Mas agora, trata-se de ver e pensar no que se criou depois: algo lúgubre, desumano e estereotipado, refletido nas escolhas estéticas do diretor e tensionado pela forma como desmonta-os a cada curvatura da narrativa.

No entanto, o final ainda nos deixa uma fagulha em aberto: Nick voltará a amar Amy? Não é uma luz no fim do túnel, mas a reafirmação de que certas coisas subsistem mesmo nos momentos mais tétricos vividos pela civilização. Certas coisas são eternas e existem de formas diferentes. O amor, a humanidade, a inteligência, a moral e a arte são algumas delas. Frequentemente acusado de radiógrafo, pretenso sociólogo ou mero academicista, basta um pouco mais de atenção para perceber que Fincher se revela um diretor muito mais essencialista. Mesmo que o amor final consumado seja justamente aquele amor perdido pela heroína nos instantes finais de Millenium: o amor entre um imbecil e uma manipuladora.

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