Gallagher, o que se passa com o tenente-coronel Owen Thursday de Fort Apache?

março 1, 2015 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Paulo Santos Lima

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Sangue de Heróis (1948), John Ford

por Paulo Santos Lima

Altivo e inflexível, o tenente-coronel da cavalaria dos Estados Unidos Owen Thursday tomba. Alvejado por tiro apache, numa batalha que ele próprio motivou por arrogância, estupidez e falta de lida com os índios injustiçados, Thursday, contudo, renasce. Atordoado, ferido, sujo de terra e à procura do sabre de comando perdido naquela queda do cavalo ao chão, o Thursday que tenta se aprumar para prosseguir em combate não é mais a instituição militar a serviço da política de Washington, mas um homem lidando com seu equívoco, implicado na história em tempo real, largando o protocolo para se defrontar com a matéria letal dos acontecimentos. Importante citar que é Henry Fonda quem interpreta Thursday e, distinto da fusão que houve como o jovem Abraham Lincoln, agora há uma forte distinção entre ator e personagem: Fonda parece vestir uma pesada armadura chamada Owen Thursday para, finalmente, nos instantes finais, se libertar dela e nos devolver a imagem de integridade e humanidade que ninguém melhor que ele, Henry Fonda, timbrou no cinema, com seus 1,87 m de altura, olhos azuis e rosto quadrado. Tudo muda aqui, nesta que é das mais fortes viradas da história do cinema, e que não fica apenas nessa tão sutil quanto gritante troca de imagens de um mesmo ator, de um mesmo personagem, de um mesmo homem. Thursday, que trabalha na égide de uma tradição que faz dele um soldadinho de chumbo, agora comprometido com seus feitos desairosos, terá de ganhar um espírito, tornar-se (a imagem de) um homem comum, com sangue correndo nas veias e pele devassável por balas e espadas, sujar-se também com a matéria do mundo, para, finalmente, renascer (redimido e purificado) como mito sadio e necessário para a construção de um país e de sua história. Porque a história oficial, a dos livros e quadros, precisa sempre da história real e vivida – e o mito só é possível através desse processo entre matéria e ideia. E Thursday precisa de Henry Fonda para se salvar de seu equívoco como espírito humano. E ele terá de tomar contato com o tema, fazer e estar na história: é quando, retomando forças, com a Colt em punho, ele cair de vez, sob o ataque apache que é mais uma varredura derradeira que aniquila os brancos mas também os entrosa ao meio, como matéria presente no seio da terra que eles mesmo roubavam, numa poeira que engolfa tenente-coronel, seus soldados, índios, a terra, os colares indígenas, cantis, sabres, coldres, a parca vegetação desértica, os cavalos.

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É Fort Apache, ou, título brasileiro, Sangue de Herói, obra-prima sobre o fato e lenda de uma das aventuras humanas na Terra, mais especificamente a violenta instalação anglo-saxã no território indígena da hoje intitulada América do Norte, numa espécie de invasão e roubo justificados pelo que é o mais legítimo esforço humano, o da sobrevivência.  Um filme lindo. Um filme escolhido por Tag Gallagher para, na 8a Mostra CineBH, apresentar suas análises sobre John Ford. Fort Apache, de fato, condensa algumas das forças do cinema de Ford: do mito da história dos EUA entre os séculos 18 e 19 à energia motriz do Western através do percurso de personagens na mais emblemática geografia da história do cinema, a do oeste americano, entre caubóis, xerifes, prostitutas, fazendeiros, damas, índios, mexicanos e aventureiros em geral.

O trabalho crítico de Gallagher parece coincidir com o despertar de Owen Thursday, que precisa tocar na essência daquilo que mirava de longe, do gabinete, para sacar a realidade e sua natureza intrínseca. Ir à gama mineral da terra disputada para enfim se relacionar com a verdade daquela empreitada em território apache. É o que Gallagher sempre fez ao jamais optar pela cadeira, pelo renome, pela patente. Não só, em Belo Horizonte, sair em incursões solitárias pelas ruas é reconhecer o lugar e talvez saber um pouco melhor onde ele estaria ali (como Rossellini nas locações dos longas neorrealistas e nas pesquisas para suas brilhantes biografias para TV, como Ford nos arredores do Monument Valley ou vaqueiros em caminhos ásperos).

Viagem a Itália (1953), Roberto Rossellini

Viagem à Itália (1953), Roberto Rossellini

Na tradição dos estudos sobre cinema feitos por anglo-saxões, mais “empírica”, Gallagher é dos principais. É uma tradição que vai ao objeto partindo desse objeto, ou seja, num efeito bumerangue que coleta evidências intrínsecas ao filme (a imagem em si, a encenação, os objetos de cena, o tempo, o tom, a dramaturgia, a presença dum ator em cena) para relacioná-lo a outros campos (história, música, pintura, literatura, contexto cinematográfico no qual o filme foi realizado) e, assim, trazer algo revelador e fundamental sobre o filme e, quiçá, o diretor, sua obra e o cinema. É um processo que tem parentesco no jornalismo, na prospecção de informações, mas que muitas vezes resulta em abordagens mais superficiais sobre os objetos e relações não mais que interessantes e menos importantes sobre os filmes, e bem mais para apaziguar um tanto a necessidade de “dar conta” dele. Sobre Tag Gallagher, um título de livro como The Adventures of Roberto Rossellini: His Life and Films diz tudo. Da coleta de dados, o crítico produz uma emulsão que situa o trabalho de Rossellini . Ratificando aqui: trabalho, e não filme ou obra – pois há uma diferença fundamental que só os críticos que possuem senso histórico privilegiam, que é todo um processo por trás duma obra (obra, e nem importa se ela é “de arte”), no melhor viés do marxismo histórico, de uma história material, a ver com os meios de produção (pois produção, em Hollywood, confunde-se com realização).

É um trabalho braçal, de imersão, como um pedreiro ou minerador, e que por vezes se faz de laboro de artesão. E, também, de exumação. Porque um dos traços distintivos da fortuna crítica de Tag Gallagher está em encontrar algo oculto mas evidente, ou seja, um detalhe, uma luz sobre um “enigma oculto”. É algo que um estudioso de grande valor, o também norte-americano David Bordwell, faz com esmero, ao estudar a estrutura do plano numa precisão digna de uma inteligência maquinal e binária. Mas Bordwell não pretende um salto ao abismo infinito das digressões transcendentais de Gallagher. É nos vídeo-ensaios que Gallagher leva à frente sua relação intelectual com os filmes, que traz emoção, sugere poesia e o típico acento dos grandes narradores orais, mas nunca abandona a razão e o comprometimento com os fatos (num filme, fato é tudo que que está na tela, nada além). Interessante perceber que, entre a abordagem do seu brilhante livro John Ford: The Man and His Films, toda a visão soberbamente escrita sobre o cinema de Ford ganha uma dimensão absoluta, transcendental (novamente este termo que me dou a liberdade de usar), que gera uma relação idem à de estarmos vendo um No Tempo das Diligências (1939) ou Fort Apache. Do primeiro, Gallagher faz justiça ao que de fato estava em jogo entre os personagens no almoço, quando a prostituta é segregada. Gallagher disseca a mise en scène, mas não apenas sentindo-a para aí tecer uma grande viagem “a partir”, mas sim detendo-se a ela antes de colocá-la em pensamento, pois ele parte dela, reflete para revelá-la a nós. Em Fort Apache, a descrição que Gallagher faz dos personagens, dos rituais da cavalaria, das vestimentas, dos sutis gestos entre mãe e filho, oficial e soldado, namorados etc., é um detalhe tão “óbvio” quanto revelador sobre a obra de Ford. Num dos ensaios, inclusive, Tag Gallagher comenta sobre um outro filme no qual um personagem negro age com altivez; uma altivez sutil mas real, e que ilumina como certos filmes conseguiam transgredir a torpe representação do negro que em geral se colocava no cinema norte-americano dos anos 1930, mesmo naqueles casos em que o personagem cumpria certo estereótipo.

O que Tag faz nos vídeo-ensaios não é “apenas” encontrar essas verdades, encontrar algo mais íntimo sobre um filme, seu cineasta, o mundo, o instante e as condições nas quais foi realizado. É também um trabalho de reiteração, de evidenciação e informação sobre fatos. Mas Tag também constrói um filme, cria uma oralidade num determinado tom celestial (a voz de Gallagher é de uma suavidade emocionante) e uma montagem dialoga com o objeto comentado, mas sempre recorrendo a slow motions, imagens fixas, repetições de mesmo plano, silêncios, áudio original dos filmes em alternância à sua voz aveludada. A exposição mantém sua integridade didática (de dados), mas a forma atinge paradas mais profundas, inspiram a sair dos filmes de Ford, Rossellini, Ophuls, sem jamais abandoná-los. Além das evidências imagéticas, só a montagem e o estilo para permitirem a Gallagher encontrar razão para a Lisa, a personagem de Joan Fontaine em Carta de Uma Desconhecida (1948), de Max Ophuls, não ser uma vítima, mas alguém que por opção escolheu aquele destino desairoso – e com isso Gallagher contempla a verdade da personagem e de escolhas de Ophuls para sedimentar o drama dessa personagem e também de uma tradição dramática. É só como Tag Gallagher que Tag Gallagher pode refletir sobre a relação entre desejo e medo impressa em Mogambo (1953), evidenciada através de imagens não só de Mogambo, mas também dum Kuleshov de 1918. É uma dissecação, mas que desmembra algo vivo (um filme) para encontrar sua integridade. Nesses ensaios em vídeo, a mágica aparece, pois vemos trechos, pedaços, planos dispostos num mesmo plano como numa mesa, mas o filme permanece íntegro e preservado. Os vídeos de Gallagher e os de Scorsese possuem coincidências, mas Tag realmente faz um filme para falar sobre o cinema, um filme que desnuda o filme-objeto justamente para mantê-lo intacto e honrado.

A entrevista que o estudioso concedeu a Fabian Cantieri, para esta Revista Cinética, em Belo Horizonte, evidencia uma relação concreta e direta com o cinema. Bem americano, as entrevistas e pesquisas sempre estiveram na pauta de seu trabalho de crítico, nos anos 1970, ou seja, não bastaria falar sobre Viagem à Itália senão conhecendo melhor a matéria viva que gerou a obra-prima de Rossellini. Mas notável é sua motivação em ir contra o senso comum, do que é dito, manjado e convencionado. Não por rebeldia, mas porque é a missão dum estudioso de cinema, essa de perceber o que está num filme, o que ele esconde ao revelar. Tag Gallagher não esmiuçou essa passagem, e por isso a pergunta permanece como mistério eterno: o que, de fato, passou por Owen Thursday quando ele se decidiu pelo ato final da batalha, entregando-se à morte pelo arrastão apache?

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