Filha de Ninguém (Nugu-ui ttal-do anin Haewon), de Hong Sang-soo (Coréia do Sul, 2013)

dezembro 22, 2013 em Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira

haewon3

Esta filha tem pai!
por Pedro Henrique Ferreira

Durante os passeios em algo turísticos que a mãe realiza com a filha no princípio de A Filha de Ninguém, ela eventualmente comenta sobre a beleza de um rapaz que está fumando um cigarro em um estacionamento. A câmera se desloca até ele para enquadrá-lo na medida em que elas vão embora. Ele larga o cigarro e segue atrás delas. Um zoom reenquadra o cigarro rolando no chão, enfatizando o objeto largado. Na cena seguinte, as duas mulheres folheiam livros velhos à venda em uma cesta nas ruas. O mesmo homem da cena anterior sai para fumar e puxa assunto com elas. Acende um cigarro e pede desculpas por estar fumando. A mais velha pergunta se ele gosta de cigarros, e ele responde que se trata de um vício.

Associações internas no interior da trama estão presentes em grande quantidade e se transformaram em uma das marcas de estilo do “universo” de Hong Sang-soo, a pedra angular da maioria de suas obras – o que um personagem diz aqui acontecerá acolá, as características da relação de um casal fazem contiguidade com outra e exibem entre si suas pequenas diferenças e variações. Tudo, de algum modo, se espelha. Mas estas associações/gatilhos não nascem de um estudo de hábitos, não fomentam um olhar sobre o mundo tanto quanto, na verdade, servem à encenação de uma visão de mundo que antecede qualquer atitude realista do cineasta em relação à realidade. Um gesto habitual, cotidiano e humano como fumar um cigarro se torna tanto uma evidência social de época, quanto um gatilho para um discussão filosófica mais ampla. Nada é casual. Tudo é fruto de um desígnio demiúrgico maior. A carroça está na frente dos cavalos, seja porque as relações mitológicas passadas se repetem no presente, seja porque a história de uma civilização encontra ecos nas pequenas vidas cotidianas de seu povo, ou porque um comportamento social se reproduz detalhadamente no microcosmos de uma menina.

haewon6

Em A Filha de Ninguém, o paroxismo maior disto é possivelmente o momento em que a protagonista conhece um homem que a convida para tomar um café e a pede em casamento. Sem graça, ela questiona que ele mal a conhece. A resposta dele é significativa: não preciso te conhecer, já sei quem você é. E então, passa a descrevê-la como se fosse um tipo comum. Mesmo aquilo que os personagens têm de mais único, mais singular, não os permite ser mais ou diferente de uma peça em um tabuleiro de xadrez. É um cinema de operações matemáticas, mais de mapeamento do que de deslumbre, mais de ilustração do que de descoberta, no qual a própria ideia de cotidiano, com tudo que ela normalmente carrega de despropositado, se torna um eco longínquo de uma relação essencial, uma fórmula, uma tendência modernista que o aproxima, por exemplo, da literatura de um Yasunari Kawabata.

Com uma enorme precisão formal, Hong Sang-soo articula as premissas em formas estéticas. Assim, elimina o fora de campo, que só surge quando, logo em seguida, é exibido pela varredura de uma panorâmica. Os personagens caminham pelos cenários e os comentam, em um esforço enorme de clareza, de visibilidade. Também a decupagem opera por relações de contiguidade e diferença, repetindo os mesmos enquadramentos ipsis literis. Quase não há figurantes, e quando estes são postos em cena, são evocados ao primeiro plano, ainda que seu lugar na trama seja realmente passageiro (o rapaz que fuma, citado acima, pode ser considerado um figurante). Os planos-conjuntos, filmados à distância com lentes longas, estratégia que Bordwell insiste ter sido o grande “achado” de Hou Hsiao-hsien em seus primeiros filmes, aqui não criam a sensação de que o mundo extrapola o plano, mas justamente a de que a câmera tem uma função ilustrativa, de encontrar sentidos prontos, cristalizados, em um painel bem delimitado.

haewon5

Naturalmente, o resultado de tal paroxismo só poderia ser a tragédia. Não se trata de uma tragédia grega, oriunda da queda do herói diante do destino, que gera a catarse como forma de purificação. A Filha de Ninguém não tem heróis, mas só pessoas comuns. É uma tragédia esperada, desenhada pela inevitabilidade dos tipos sociais, do lugar que cada uma das peças de xadrez ocupa no tabuleiro. O exercício poético é extrair força desta “tragédia prevista”: o choro no final do filme, de um relacionamento que, já era de se esperar, não pode (novamente) dar certo senão em sonhos. E mais: a tragédia de Haewon (Jeong Eun-Chae) tem algum grau de aproximação com a morte (ou a morte em vida, pois ninguém realmente morre no longa-metragem) na medida em que todos os seus gestos repetitivos parecem resultado de uma experiência primeva de abandono – o eterno abandono é justamente o desdobramento trágico destas peças que entram em choque. A menção ao livro The Loneliness of Dying, de Norbert Elias, é significativa: o filme tem o mesmo ímpeto do sociólogo alemão de investigar como a dinâmica das relações pessoais erigem o tecido social como um todo.

Em primeira vista, um pouco diferente dos demais filmes de Hong Sang-soo (normalmente mais sarcásticos do que deprimidos, ainda que a balança dele tenha justamente estes dois pólos), A Filha de Ninguém termina seguindo as mesmas prescrições formais e o mesmo ímpeto de fazer do cinema uma máquina de desenhar tipos em uma narrativa circular que desdobra o confronto entre os indivíduos e, através deste desdobramento, lança luz sobre algumas das patologias do mundo atual. Seu maior mérito, e aquele que, generalizando, parece a mim ainda ser o maior mérito do cineasta, é sua capacidade de pôr em cena magistralmente o constrangimento que certos acordos tácitos entre as pessoas criam, como no longo plano-sequência estático no jantar do professor com seus alunos: nós sabemos o quanto Haewon não quer esconder seu relacionamento com o professor; sabemos que ele quer escondê-lo a todo custo – desta soma contrastante, surge um constrangimento, um problema, e ao fim, uma tragédia que novamente gera o abandono e a solidão.

haewon7

A capacidade do diretor de orquestrar situações como estas não é pouco para um realizador. Ao mesmo tempo, não é muito. O suficiente, mas não o bastante, se bastante, hoje em dia já é demais. E talvez nem deveria sê-lo, para um cineasta anacrônico, um dos poucos nomes que insistiu em levar adiante experiências formais modernistas no trabalho do plano e decupagem, rejuvenescendo-a com temas contemporâneos, mas sem passar pelo filtro da realidade que figuras como Kiarostami ou Hou colocaram como prova. A Filha de Ninguém é o paradoxo da abstração, tão mais paradoxal quão mais próxima esta abstração está de nós.

Share Button