Entrevista com Miguel Gomes

janeiro 25, 2016 em Em Campo, Entrevistas, Fabian Cantieri, Juliano Gomes, Pedro Henrique Ferreira

miguelgomes

A ouvir os pássaros
por Fabian Cantieri, Juliano Gomes e Pedro Henrique Ferreira

Foi em 2008 que Aquele Querido Mês de Agosto, estreado na Quinzena dos Realizadores de Cannes, foi exibido nos festivais brasileiros e que o diretor português Miguel Gomes passou a ser reconhecido em terras tupiniquins como uma figura a ser observada. Desde então, seus filmes renderam muitos comentários por aqui. Este seu segundo longa-metragem (o primeiro, A Cara que Mereces, passou anos depois, em uma mostra que passou por Rio e São Paulo, dedicada ao novo cinema português) obteve repercussão crítica positiva no Rio de Janeiro e em São Paulo e foi lançado comercialmente no ano seguinte. Fenômeno parecido se repetiu em 2012 com seu terceiro longa-metragem, Tabu, filme austero premiado pela crítica em Berlim que fugia ao tom cômico predominante do anterior. No ano passado, estreou em Cannes sob muitos burburinhos o ambicioso As 1001 Noites, adaptação da compilação de contos populares árabes, em duração total de mais de seis horas divididas em três volumes: O Inquieto; O Desolado e O Encantado.

O diretor esteve no Brasil no final do ano passado por ocasião do lançamento dos três episódios, e a Revista Cinética teve a oportunidade de entrevistá-lo. A revista já havia publicado uma entrevista no formato de seis perguntas respondidas por carta à época de Aquele Querido Mês de Agosto, mas desta vez pudemos ter uma conversa mais direta e nos aprofundar um pouco mais em nossas próprias perguntas. O assunto foi principalmente As 1001 Noites, mas a conversa terminava resvalando sempre em questões maiores sobre a sua prática artística que, a despeito das impressões que o projeto ambicioso pudesse suscitar, Miguel Gomes respondeu sempre com a simplicidade e humildade de um artista investigando caminhos possíveis, matas densas a serem descortinadas.

Ao final da conversa, uma das coisas que mais nos chamava a atenção era a lucidez que tinha em relação a seus métodos e escolhas, embora o diretor assuma que muitas vezes estes foram mais erráticos do que ordenados. Este último trabalho de Miguel Gomes – entre seus filmes, talvez o mais difícil para o espectador – se coloca até certo ponto como um desafio ou uma charada. Neste novo filme, há um retorno a indagações primordiais da narrativa e estruturas formais, da prática artística e sua validade, amarras que a maioria dos artistas podem facilmente ultrapassar, tomando-as como ponto pacífico, e seguir adiante rumo a outras coisas. Diferente, Miguel Gomes tem a necessidade de se debruçar sobre elas, colocá-las em xeque, mesmo que sem a necessidade de respondê-las peremptoriamente. As 1001 Noites é em muitos sentido um magnus opus da própria dúvida de o que ele deve e pode ser. E, ao leitor, que esta entrevista possa, senão exatamente esclarecer, ao menos revelar um pouco mais do terreno arenoso por onde o cinema de Miguel Gomes transita. (Pedro Henrique Ferreira)

Juliano: O filme foi lançado comercialmente em Portugal?

Miguel Gomes: Acabaram de sair das salas esta semana. Foram expulsos. Houveram três semanas de intervalo entre o lançamento do primeiro e do segundo, e quatro entre o segundo e o terceiro. Na França, houveram cinco. Na Alemanha, vão lançá-los em uma única sessão. Cada país faz a sua estreia à sua maneira, de acordo com o próprio público, mercado, etc…

Você pensou nele como um filme só?

Não. Se tivesse, o teria montado de outro jeito. As histórias provavelmente teriam sido mais concentradas. Foi durante a montagem que pensei que deveria dividi-lo em três volumes, e que cada volume teria a sua identidade. No meu escritório, tinha uma edição do Mil e uma Noites também dividida em três partes. Tirei uma foto dela e mandei para o produtor e disse ‘acho que serão três filmes’.

Pedro: Você falou em identidade dessas partes…

Sim. No caso da edição que eu tinha do livro, ele era dividido em três partes só porque era muito grande. Com o filme, pensamos que o espectador deveria passar como que por três níveis diferentes de um jogo. Em um jogo, você passa de fase, né? Então pensamos em uma passagem de um nível para o próximo. Elevar-se de nível. Para mim, o filme todo é um percurso por estes três níveis. É por isto que chamamos a cada volume não apenas pelo número, mas também pelo título. O inquieto, o desolado e o encantado. O personagem principal do filme não é uma pessoa, mas uma comunidade. São os portugueses, que vão surgindo de maneiras diferentes em cada um destes filmes.

Juliano: Os outros filmes teus são divididos em partes. Mas acho que há uma diferença entre um mesmo filme com várias partes e filmes separados que são níveis de uma mesma coisa.

Nos casos de A Cara que Mereces e Tabu, as partes estavam planejadas desde o início. No caso de Aquele Querido Mês de Agosto, foi durante a realização que percebemos que era o melhor a fazer. Aqui, a divisão aconteceu na montagem. Existe uma divisão, mas acho que existem relações entre as partes. Cada parte está também a falar com a outra.

A Cara que Mereces (2004)

A Cara que Mereces (2004)

Sempre pensei em fazer filmes assim porque acredito que a segunda parte é transformada pela memória da primeira. O espectador, lembrando da primeira e assistindo à segunda, cria uma terceira coisa como resultado. E esta terceira coisa é diferente de acordo com o espectador. Ou ele liga mais as coisas, ou as liga menos, faz certas regressões e não faz outras, etc… Acho isto interessante, porque obriga o espectador à atividade. Um dos problemas do cinema de hoje em dia é que o lugar reservado ao espectador é muito passivo. Não precisamos de um cinema tão muscular e autoritário que diz exatamente ao espectador o que ele tem de pensar e sentir. Existem filmes hoje em dia que são muito cruéis, que chocam ou mostram coisas muito fortes, e o espectador não tem outra possibilidade de entendimento.

Trabalhar em partes tem esta intenção. Aceitar que o espectador possa assistir as partes isoladamente é certamente uma liberdade extra, que pode também ser perigosa. Ou que as veja fora de ordem. Desenhei o filme para ser três partes, para que houvesse memória de uma parte quando se está a ver a outra. Por exemplo, uma história de pessoas que não ouvem um galo na primeira parte remeter a uma história sobre homens que escutam pássaros na última.

E onde nós ouvimos pouco os homens.

Exato. Porque eles estão a ouvir os pássaros.

Sobre este mecanismo de uma memória da parte anterior, sinto que aqui no As 1001 Noites ele funciona diferente do que no Tabu, por exemplo, onde este espelhamento é mais evidente. Ontem, estava assistindo ao terceiro e me peguei tendo a expectativa que houvesse eventualmente uma retomada.

As Mil e Uma Noites é um livro de contos autônomos. Mas eles vão fazendo variações quase sem querer, sem que elas sejam muito trabalhadas. Elas vão existindo porque todas fazem parte de uma mesma cultura. Então há temas semelhantes. Personagens semelhantes. No fundo, aquilo é uma compilação. Essa força do fragmento e da autonomia de uma história ou de um conto, realmente não existia tanto nos meus filmes anteriores como existe aqui.

Fabian: No começo do primeiro filme, você afirma que juntar dois filmes em um só – o político e a fábula – era um empreitada fadada a falhar desde o começo. Não sei se acredito que você realmente acha isto, mas tenho a impressão que a estrutura inteira do filme está ali.

A ideia era deixar claro logo no começo que o filme não ia ter um registro único. Que poderia passar por registros muito diferentes. Naquela cidade Viana do Castelo, no Norte de Portugal, há três vozes. Um coro de vozes dos trabalhadores, construtores de barco, que vão perder o emprego. Um realizador farsante que está em crise, que pode trabalhar, mas não quer ou não consegue. E o Terminator de vespas, quase um Schwazenegger, que luta contra uma praga bíblica. São três registros para mim muito diferentes. Neste prólogo, as vozes se bagunçam. E desta bagunça que se faz o filme. O Tabu, por exemplo, é um filme muito mais elegante. Este é um filme que explode. Por isto que quando eu estive em Cannes, anunciei o filme dizendo ‘ok, bem vindos, e agora vamos ver um bocado de rock and roll’. Este lado mais selvagem do rock and roll. Assim como o livro, que é escatológico, violento, erótico. Se espalha para todos os lados. Eu queria ter isto neste filme.

Com a fuga do realizador, me pareceu importante dar um manual de instruções delimitando os dois pólos do filme: o real, ou seja, fazer um filme sobre o que é viver em Portugal hoje em dia; e, ao mesmo tempo, ter esta outra ambição que é uma coisa que tem a ver com o mundo das fábulas, como disseste, como diz o diretor covarde, bundão, que foge no filme. E eu queria partilhar isto com o espectador porque eu acho que há uma espécie de negociação entre o real, entre o fato que é olhar hoje para as coisas e ter os elementos do mundo material, na realidade – as pessoas, as histórias que de fato se passaram naquele momento -, e o outro lado, o lado da fantasia. E essa negociação vai sendo feita em cada momento do filme de formas diferentes. E então, eu queria dar este manual de instruções para o espectador para ele também ser ativo nesta viagem. Queria inserir os dados da equação logo no princípio e eu acho que o filme só pode ter sucesso se o espectador tiver vontade para isso. Ou seja, se tiver um papel ativo também, articular as coisas, já que eu não faço um esforço muito grande para que elas sejam verossímeis, para que elas estejam claras. Tem que ser o espectador a articular as coisas. Ele pode crer, ou pode não crer. E ele tem o direito a não crer. Para mim, era importante explicitar isto no início.

E o que você entende por cinema político?

Todos os filmes são políticos. Alguns não têm consciência disso, mas são todos, no sentido de que os filmes propõem, todos à sua maneira, de forma mais ou menos pobre, uma forma de como as pessoas organizam a relação que elas têm umas com as outras. Neste caso, tendo como personagem principal os portugueses, eu acho que cada segmento do filme tem um olhar sobre como é que é possível – mesmo que ele vá surgindo de formas muito diferentes – como é possível as pessoas viverem com as outras em comunidade.

Nesse sentido, o projeto político de seu filme me parece claro: o que sobra? Sobram as estórias. Tem um momento, no terceiro volume, que você fala ‘as estórias são o que ligam o mundo dos mortos com o dos porvir’. E isso parece um pouco da solução que você propõe – o ato de narrar está ali o tempo todo aparecendo junto às estórias. Você, contando sobre esta comunidade e esta comunidade deixando as suas estórias.

Eu acho que tem de haver espaço num filme para histórias que eu, as pessoas da equipe, os roteiristas, possam inventar. Mas também para as coisas que acontecem, e que eu apenas pego, como se fosse um passarinheiro também… eu pego e coloco lá no filme. Os desempregados, os magníficos… são de fato desempregados e estão a contar da sua experiência de estar desempregado naquele momento. Mas eu acho que tem de haver lugar, como por exemplo nesta última estória do banho dos magníficos, para personagens que eu acho que não são muito realistas, como aquele sindicalista que é um pouco maluco… O projeto político dele é jogar as pessoas todas no mar no primeiro dia de Janeiro, que é um projeto político um bocado insensato. Para mim faz sentido porque eu acho que o mundo precisa de um pouco de insensatez. Porque toda sensatez está dando nesta coisa onde estamos. 

Pedro: Já acho que é um ato político muito forte você trabalhar em cima da atividade do espectador. A impressão que tenho é que aqui você não faz muito esforço para juntar as histórias. Você coloca o espectador diante deste gesto inaugural do narrar, força-o a ter de lidar com isto. É em si um gesto político. O que queria saber é como achar a medida certa desta retração do realizador em favor da interpretação do espectador.

Não se acha a medida. Vai se achando. Em cada momento, ela é diferente. Tem de haver algo como uma elasticidade do espectador. Comparado aos outros filmes, não se trata do espectador ser mais ou menos participativo. É uma elasticidade diferente. Fala-se muito, por exemplo, da velocidade dos filmes. E geralmente, a velocidade é medida na duração do plano. Um plano devagar, de maior duração, ou outro mais rápido, de menor. Eu acho que isto é um erro. A velocidade nos filmes não é a duração do plano. É a distância que é percorrida entre um ponto A e um ponto B. Se a distância for muito grande, e num corte apenas se passa de um a outro, isso é velocidade. É assim que nós viajamos. Viajamos muito rápido se o ponto A e o ponto B estiverem longe. Portanto, passando da tragédia para a comédia, e desta para um registro mais direto, e deste para algo muito artificial e imaginário… Para mim isto é a velocidade no cinema. É percorrer grandes distâncias rapidamente.

As 1001 Noites (2015)

As 1001 Noites (2015)

Juliano: A terceira parte coloca o espectador num lugar mais contemplativo que as outras, no sentido de que a primeira e a segunda buscam acontecimentos. A fuga que vai acontecer, a juíza que vai chorar, e por aí vai. A terceira prescinde desse tipo de expectativa ou crise.

É um filme mais pacificado, não é? É a sensação que tenho. O primeiro é o mais veloz. Ele muda mais vezes o narrador. É a montanha russa no filme. O segundo é mais como uma linha horizontal, onde a relação entre o imaginário e o real está mais coada. O espectador tem de fazer menos esforço para calcular estas coisas. O terceiro é diferente mesmo. Acho que é o que gosto mais. Ele é mais binário. Existem dois momentos muito marcados. O primeiro com uma comunidade que nunca existiu, e o outro com uma comunidade que existe, mas que faz uma coisa tão surreal quanto a que não existe. É tão surreal quanto o paddleman, o Elvis, o bailarino, o ladrão. O terceiro filme começa com o mito literário da Sherazade, fazendo coisas muito terrenas, depois passa para uma história real, elevando-a quase ao nível do mítico. Aquela comunidade de homens que ouvem pássaros me recordava contos do Borges. Um mundo secreto, cheio de códigos, com uma ciência obscura que só eles dominavam. Era como que um mundo paralelo. E a mim este mundo paralelo fascina. Ele é uma contraposição à sociedade dominante. É contraditório: politicamente, não são muito ativos dentro do sistema que existe, não vão votar e não fazem grandes esforços para mudar suas condições de vida; mas organizam-se numa comunidade que desafia em muitos as aspectos a sociedade dominante. Tudo que é paralelo a um sistema dominante tem um lado subversivo, mesmo que o que façam seja organizar cantos de pássaros, e que isto não pareça politicamente tão útil assim. Esta contradição me fascina.

Pedro: Voltando um pouco ao livro, como foi lidar com ele? Acho que muitos cineastas que fossem filmar o Mil e uma Noites sentiriam o peso que esse livro carrega. O peso de uma obra literária canônica. Não me parece ser o caso do seu filme. Ele lida com isto com muita leveza, quase com irresponsabilidade. Queria que você comentasse um pouco isso.

Esse livro tem um peso como patrimônio literário. E isso não me impressiona muito. Porque as coisas boas são para usar. Para desfrutar. Não para rezar. E por outro lado, já é um livro que tem muitos contos leves. É um livro muito divertido. Procurei principalmente o espírito dele. Além do personagem da Sherazade, não há grande coisa que retirei de lá. Para falar a verdade, nem cheguei a lê-lo até o fim. Não cheguei nem à metade. O que é bom nas Mil e Uma Noites é que se trata de um livro tão grande que pego ele todos os anos e leio um conto qualquer aleatório. Cada parte existe por si só. Poucas pessoas o devem ter lido de cabo a rabo. O Borges o fez, em várias versões. Mas o Borges era um bocado obsessivo. Eu não.

Juliano: Ainda sobre a terceira parte, há um momento em que a Sherazade decide se calar. E depois, volta a falar. Fico a me perguntar o que significa narrar? Um retrato de uma pessoa, ou simplesmente uma pessoa caminhando já é um conto? Este simples mostrar é contar alguma coisa?

A história com a Sherazade foi filmada para ser a última. Na montagem que nós sentimos que ela devia ter uma crise, como o diretor do filme no princípio. Mas que ela sairia desta crise encontrando pessoas de uma comunidade que normalmente ela não via, porque estava fechada num palácio. A partir daí que contar uma história poderia passar a ser simplesmente fazer um retrato de coisas menos romanescas, mais banais e comuns. Cada pessoa e comunidade traz consigo suas próprias histórias. Este contraponto era algo que eu já perseguia no Tabu, com a história de duas vizinhas em um prédio e depois aquela parte africana. Pensei que a Sherazade, ao vivenciar a crise, ficar bêbada, fazer corrida de tartarugas, ter sexo com o paddleman, cheirar a flor dos mil odores e ver que não é nada demais, conhecer o Elvis, etc… Que ela poderia contar histórias a partir desta unidade menor, o indivíduo. Cada indivíduo, cada bairro, cada pássaro traz consigo histórias. Às vezes basta procurá-las.

Fabian: De novo, não seria essa a ideia política maior do filme? Que todo indivíduo tem estórias a contar, alguns porventura virarão mito histórico, e outros não? Me parece uma resposta ao letreiro inicial, onde você diz que o país está em crise e todo mundo empobreceu.

Desde que exista memória, sobramos todos nós. Essa memória para mim passa a filmar de forma mais direta as pessoas, como os passarinheiros, ou construindo outras coisas muito artificiais – nós queríamos que o processo das lágrimas da juíza fosse muito artificial e que o filme tivesse elasticidade de ter registros tão diferentes, e que, portanto, houvesse uma transmissão… que é uma das grandes questões do filme: como é que se transmite. Como é que transmitem aos pássaros o canto que eles querem? Como é que se transmite histórias, como é que se conta ao rei, como é que se transmite uma memória de um tempo para quem faz cinema, continuando a poder – sem perder a capacidade de fabulação – ter elementos artificiais, elementos que vêm da narrativa e que podem ter de fato gênios, mas têm de ser coisas que falem também da nossa vida. Uma coisa que eu não gosto hoje no cinema é essa coisa do esforço que os filmes fazem que tudo seja muito verossímil, quase essa sensação de que estamos assistindo à vida. O cinema não é a vida. Não é. O cinema fala sobre a vida, mas não é a vida, e nem tem de parecer ser. Fazer um grande esforço para dizer que aquilo é a vida parece um esforço mal utilizado. Temos de nos esforçar para outra coisa. Para falar sobre a nossa vida, porque um cinema também que está fechado em si próprio e seus artifícios, que não tem relação nenhuma com o mundo, também me parece pobre. Mas um cinema também que prescinde dos artifícios e da beleza dos artifícios para falar da vida, mas que existe também para sua própria beleza, pelo fato de existir um processo com três luares, uma juíza num anfiteatro… Parece que vai dizer coisas sobre a sociedade portuguesa, apesar de ser uma coisa completamente anti-naturalista.

Acho este “dizer” bem direto.

Não é direto no sentido de que aquelas pessoas não são atores, existe uma vaca de cartão, um gênio mascarado, mas de fato, tem uma relação direta com o momento, o meu olhar sobre o que se passava em Portugal. Cada um daqueles crimes tem uma base real. Todos eles, não fomos nós que inventamos. Existiram durante o ano que filmamos o filme e todos aconteceram em Portugal. Mesmo os crimes mais estúpidos e surrealistas, todos eles aconteceram.

As 1001 Noites (2015)

As 1001 Noites (2015)

A cena inteira do tribunal é pra mim o espelho mais cristalino de uma comunidade, de Portugal. 

Foi também a última cena que filmamos em Portugal. Última e penúltima. Foram doze meses de histórias filmadas em Portugal, não filmando sempre. Durante este período, tivemos umas catorze semanas diretas de rodagem, a partir daquilo que havia acontecido naquele período. E, nos últimos meses, filmamos a Juíza e o Simão sem tripas. Havia já uma consciência de quais seriam estas outras histórias, que no princípio não tínhamos. No princípio era tudo uma folha em branco. Não havia nada. Era o vazio. Íamos filmando sem ter nenhum contraponto. Não havia nenhum outro material filmado. Tudo estava em aberto. E esse lado em aberto era muito excitante. Dava para acontecer tudo. E as vezes dava angústia também, porque era demasiado tempo no escuro. Eu estou habituado a isso, mas não a esta escala. Muitas vezes nos perguntávamos: o que é que nós temos? Que merda que estamos aqui fazendo? Porque não sabemos. Não sabemos o que estamos fazendo. Às vezes sentia-me como o Ed Wood, assim, improvisando… Filmava um galo… Depois um Papillon, e depois… dizíamos o que é que há aqui? Há um chinês… e ele tem uma loja, é o único chinês daqui, então é o que vale..

Pedro: É muito curioso que você estava diante do Mil e uma Noites, um dos livros com mais histórias e tramas já escrito, e a sua percepção inicial é a de que estava diante de uma página em branco.

Por isso que disse que nunca li o livro todo. Então isso era normal. (Risos). Mas você tem razão. É quase um absurdo um livro deste me parecer uma página em branco. Mas é que o que eu retiro do livro é uma promessa infinita de possibilidades de história. Percebemos que tudo pode acontecer. Abrimos um livro enorme e percebemos que tudo pode acontecer. Uma história pode bifurcar e de repente surgir outro narrador. Neste sentido, tinha a impressão que esta coisa imensa era uma página em branco. Tudo podia ser escrito ali.

Juliano: Me interessa saber um pouco mais do método de trabalho de vocês. O que te levava de uma página em branco a alguma coisa?

Nunca foi um método único. Tínhamos encontros semanais do chamado “comitê central”. Trabalhávamos juntos todos os dias, mas um dia semanalmente nos encontrávamos mais formalmente. Jornalistas contratados nos passavam uma lista de matérias que estavam investigando. Inventei este “comitê central” no Tabu para compensar, digamos, de uma forma marxista, o lado colonial do filme. E também servia para colocar medo nos produtores. Eles levavam a sério. Quando fomos a Marseille, os produtores franceses andavam com um walkie talkie dizendo coisas do tipo ‘o comitê central chegou no aeroporto, estamos indo para casa’. Foi quando percebi que funcionava. Eles levavam a sério. O comitê central era um grupo que inventava a estrutura do filme na medida em que íamos filmando. Como não tínhamos um roteiro inicial, tinha de ser assim, às vezes escrevendo cenas, às vezes só listando sequências possíveis, e passando isto tudo para a equipe. Era tudo uma bagunça.

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As 1001 Noites (2015)

Fabian: Mas este comitê central era composto só por roteiristas?

Não. Tinha quatro elementos: além de mim, o assistente de realização, que era o pior trabalho da equipe porque tinha que organizar as coisas no meio daquela bagunça; uma roteirista, que era a Mariana Ricardo, que trabalha comigo há muito tempo; e o montador, que também fez continuidade durante a filmagem. Os jornalistas chegavam com as matérias que tínhamos para investigar, e com esta lista em mãos, íamos de norte a sul conversar com as pessoas que viveram aquelas histórias, geralmente acompanhados de um coordenador de pesquisa. Criamos toda uma fábrica muito complicada, com regras próprias que, no fim das contas, acabávamos não seguindo. É difícil descrever muito. Era tudo muito improvisado, quase delirante, porque, no meio disto tudo, já estávamos montando as primeiras versões das histórias.

Trabalhei com dois montadores. Um fazia parte do comitê central e não tinha tempo para montar nada durante as filmagens. Então havia um segundo que só ficava na sala de montagem trabalhando nos primeiros cortes dos segmentos. De manhã, assistíamos aos cortes. À tarde, almoçávamos com os jornalistas contratados para discutir o resultado de uma investigação. E depois ensaiávamos com os atores ou filmávamos uma cena. Eram mil coisas por dia, às vezes um bocado disfuncional. A primeira versão do filme tinha nove horas. Foi então que resolvemos fazer três volumes e remontamos tudo.

Pedro: Qual foi a primeira coisa que decidiu filmar?

A primeira história foi a do galo e a do incêndio. Os jornalistas disseram que havia um galo que estava sendo posto em tribunal porque acordava a vizinha durante a noite. E eu disse, ‘ok, isso é bom’, tem um lado de um processo medieval. Já não existem processos contra animais em tribunal. Inicialmente, não levamos muito a sério, mas no dia seguinte ela disse que havia um homem que enlouqueceu e que, por ciúme de uma namorada que o trocou por um bombeiro, começou a botar fogo na floresta toda. E era na mesma cidadezinha. Uma cidade pequena com 2 mil pessoas que na mesma semana tem um galo indo para o tribunal e alguém que por ciúmes começa a pôr quilômetros e quilômetros da floresta a arder… Parecia-nos um trabalho para a Sherazade. Então partimos para lá. E a questão inicial era como ligar estas duas histórias. Foi também quando decidimos que teríamos dois registros muito diferentes. Optamos por trabalhar com crianças, para sentir que já estávamos afastados na representação da realidade do que a vida, né? Desde o começo, resolvemos esticar o filme neste sentido, e inaugurar também uma estrutura que existe no Mil e Uma Noites, que é a história dentro da história.

Juliano: A gente está falando muito dos animais, e uma coisa que aparece são animais que cantam. Então, penso em duas coisas. Primeiramente, a presença da música popular. Em segundo lugar, em um possível paralelo entre cantar e contar, porque vejo que a música é um elemento narrativo muito importante no filme.

Obviamente, aprendemos com o filme musical norte-americano que a canção tem o poder de narrar muita coisa em três minutos. Ela faz um resumo da situação que está sendo vivida pelas personagens. E o espectador aceita isso, mesmo sendo da intervenção mais artificial possível. Poderíamos invocar o Sr. Freud e gastar vinte páginas de um roteiro, mostrando todas as cambiantes psicológicas. Mas com uma canção, o espectador aceita e diz a si mesmo: ‘este gosta desta e está triste porque este gosta desta que gosta daquele’. E pronto. Três minutos e está tudo resumido.

Fabian: Mas você acha este processo igual? Pra mim, tem alguma coisa de deslocado na inserção das músicas ali e, nisso, uma baita diferença dos filmes clássicos narrativos americanos.

É claro que é diferente. Nós não temos que fingir que estamos em Hollywood. Eu sou português. Faço filmes contemporâneos. A letra de uma canção pode nos dizer coisas sobre o que se passa naquele momento, como acontecia no Aquele Querido Mês de Agosto, aquelas letras, apesar de virem da música brega popular, contavam qualquer coisa sobre o que se passava narrativamente com os personagens. Mas ao mesmo tempo, tinha uma autonomia, porque eram espetáculos, eram shows, então havia, sei lá, de aquilo servir aos personagens e ao mesmo tempo serem independentes. E aqui também existe este gosto que tenho pelo choque entre coisas diferentes, entre matérias diferentes. Então às vezes para que colocar uma canção dramática em um momento dramático? Não me interessa.

Aquele Querido Mês de Agosto (2008)

Aquele Querido Mês de Agosto (2008)

A que ecoa comigo o tempo todo é a do Secos e Molhados, a que remete ao próprio dispositivo de narrar: “Fala”.

Exatamente. Nós pensamos nisso. “Fala”, porque ela está num momento depois de ter falado muito, quando ela vai escutar mais. E é possivelmente por isto que aparece aquela comunidade toda e é menos um filme sobre a Sherazade, e mais sobre quem ela encontra primeiro em Bagdá, e depois nos bairros dos passarinheiros em Lisboa. E são eles que vão trazer as histórias consigo. Então o “Fala” também foi importante por causa da letra. Mas também há uma coisa que é mais musical. Se uma música está bem, não sei, é uma coisa que não consigo explicar. Tem de se ver e ouvir. A questão do reaparecimento da “Perfídia”, sempre com novas versões, para mim também era importante porque era como um elemento que nós íamos reencontrar, um elemento comum, mas que ia surgindo transformado, sempre com uma versão diferente. Então reencontrar o mesmo elemento e vê-lo transformado, vê-lo igual e diferente, era bom para o filme. 

Pedro: Achei interessante você mencionar esta capacidade de a música resumir, e o seu poder de aceitação rápida. Porque muitas vezes, tenho a impressão de que você faz isto narrativamente no filme também. Você apresenta os personagens e seus dramas rapidamente. Isto acontece em todas as histórias. É tudo muito direto. É como se pedisse ao espectador que aceitasse aquilo de cara.

Sim, acho que tem a ver com a relação que procuro estabelecer com o espectador. É preciso que desde o começo exista este pacto. Um pacto de crença. O espectador tem que dizer a si mesmo: ‘eu vou acreditar nisto’. Senão, gastamos muito tempo e esforço para tornar a história crível. Os personagens no cinema não têm de ser críveis como são na vida. O John Wayne não é crível na vida real. Mas é crível no cinema. Foi deste cinema que aprendi a gostar. Um cinema cheio de artifícios. E onde as pessoas não se comportam como na vida real. E no entanto, são filmes que nos dizem tanto sobre a vida real. Sendo cinema. Sem tentar fingir que o cinema é a vida.

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