Entrevista com Melissa Dullius e Gustavo Jahn

março 1, 2015 em Cinema brasileiro, Colaborações especiais, Em Campo, Entrevistas, Pablo Gonçalo

No Coração do Viajante

In the Traveler’s Heart (2013)

A aura e o olho da película
por Pablo Gonçalo e Adriana Vignoli (colaboração especial e fotos)

26 de janeiro de 2014. Em Berlim, dezessete graus negativos. Cobertos de neve, os paralelepípedos da Lychener Straße, em Prenzlauer Berg, estavam escorregadios, perigosos como uma pista de gelo. Silêncio interrompido apenas pelos pios dos corvos. No frio, caminha-se mais rápido, e foi nessa pressa, de encontro e de fuga do inverno, que alcanço Ausland, cujo nome reluz num néon vermelho. Ali dentro, no seio dessa franja da música alternativa berlinense, estavam programadas as premières de Filme de Pedra (2012) e In the Traveler’s Heart (2013), do casal Gustavo Jahn e Melissa Dullius, da Distruktur, vindos de Florianópolis (ele) e Porto Alegre (ela) e há mais de sete anos radicados na capital da Alemanha. Curiosamente, o frio é um cenário constante nesses e nos seus demais filmes e foi nesse primeiro contato que surgiu a vontade de conhecer melhor a obra do casal. Da sessão, percebi temas candentes que pediam uma conversa mais calma e detalhada.

Na entrada, uma porta bem pesada, e pede-se pelos ingressos. Secamente, o vendedor responde: ‘Ausverkauft’ – todos os tíquetes já vendidos, casa cheia. Insiste-se e, com certo jeitinho, de forma inesperada, consegue-se entrar. Corta-se para dentro de uma sala um tanto escura: um projetor de 16mm numa mesa, um bar que vende cerveja e outros drinks, poltronas enfileiradas, cadeiras relativamente improvisadas e algumas pessoas já sentadas no chão. Uma pick-up e uma mesa de som, de onde os diretores e artistas organizam as sessões e performances que logo logo começariam. Há bastante fumaça, pois fuma-se neste ambiente apertado e aconchegante, e esses tragos guiam à aura de outro tempo. Na trilha, a música brasileira e as letras em português geram um contraponto com as tantas línguas que rodeiam as conversas. A atmosfera tem um quê de cabaré das artes – clima de uma contemplação distraída tipicamente berlinense, mas que também remete ao ar das salas de cinema mais antigas, em outro contexto espaço-temporal, por estar anos-luz das tantas alertas vigilantes, marcas e patrocínios que hoje poluem o ambiente dos multiplex.

Som de película – e não há nada igual à melodia maquínica de um projetor de 16mm – luz na tela, o filme começa. Ou melhor, roda, acontece, interage. Embora sejam fortes em si mesmos, Filme de Pedra e In the Traveler’s Heart ganham uma dimensão única dentro desse ambiente, já que o “ar do lugar acaba por moldar os filmes e as formas”, como comentou Gustavo em nossa conversa. Em Filme de Pedra, a ausência de som na película suscitou uma interação com um som ao vivo, composto por Gustavo e Melissa, que estavam atrás da platéia e, assim, o que era ausente transformou-se numa presença, e o que era fílmico, ausente, ganhou um índice corporal, direto, impregnado de uma minuciosa ritualização do cinema para si mesmo. Mais do que filmar com a película, todas as obras da dupla tocam diretamente com esse suporte de acetato, como uma forma de religar materialidade com performance.

A entrevista

A entrevista

Em Abril, poucos meses depois da première no Ausland, encontramos o Gustavo e a Melissa na casa-estúdio deles, em Friedrichshain, bairro da Berlim oriental bem marcado por uma arquitetura russa, um modernismo soviético. De forma animada, intensa e descontraída, falamos sobre de tudo um pouco: os anos de formação em Porto Alegre, as experimentações em Super 8mm, a importância da projeção como instante da arte cinematográfica, as falsas polêmicas sobre (o fim) e a produção em película hoje, a criação de um mercado mais específico para quem filma e projeta em 16mm ou 35mm; as redes e os coletivos que produzem em película (como o LaborBerlin), as viagens como mote estético, a escrita, a condição de estrangeiro e, claro, um olhar bem específico, mais distante, sobre o Brasil.

A materialidade e a performance foram temas que atravessaram a conversa, e pode-se, de forma preliminar, perceber três instantes distintos desses conceitos. O primeiro ocorre dentro do filme, já que Gustavo e Melissa atuam nas suas obras e criam, nesses enredos, condições dramáticas que realçam a performance. O segundo momento é a ênfase na projeção como um momento de interação entre os espectadores e os artistas. Por último a performance é compreendida como gesto que coliga o espaço entre os filmes, entre filmagens e projeção, num work in progress constante que tenta diluir as fronteiras entre a vida e a arte.

Parte I: Super 8mm, Porto Alegre

Cinética: Seus filmes foram todos realizados em película e lidam diretamente com essa materialidade. Como aconteceu essa relação?

Gustavo: Começamos a fazer filme em Super 8mm. Tinha um grupo em Porto Alegre, e nos conhecemos mais ou menos juntos… eu cheguei até um pouco depois, em 1999. Logo em seguida, conheci a Melissa, o Luiz Roque, a Mariana Xavier, enfim, todo um grupo que estava bem naquele ponto de ver filme junto e querer fazer filme. Já na segunda metade dos anos 1990, em Porto Alegre, tinha começado um movimento de filmar em Super 8mm.

Um pouco nos rastros do Giba Assis Brasil?

Gustavo: Exatamente. Tem o Deu pra Ti Anos 70 (1981), que é o início da Casa de Cinema de Porto Alegre, ali, no final dos anos 1970, começo dos 1980. Em seguida, o Gustavo Spolidoro e o Fabiano Souza retomam o Super 8. Então, pra gente que estava começando a fazer filme nos anos 2000 era bastante natural rodar e interagir com o Super 8mm, para depois passar ao 16mm e o 35mm. Não era algo especificamente com a película. Isso, na verdade, veio muito depois.

Melissa: Os filmes em Super 8mm eram feitos com um micro-orçamento e não existia escola de cinema no Sul, apenas uma cadeira, na PUC, que filmava em 16mm. Eu lembro que as pessoas filmavam em 16mm na cadeira de cinema da PUC. Na UFRGS, no jornalismo, podia-se estudar teoria de cinema com o Giba. Só teoria, porque não tinha equipamento para fazer nada. Hoje em dia tem vários cursos de cinema. Não sei se eu teria estudado cinema, mas foi isso: o grupo se conheceu e começou imediatamente a fazer filme. A câmera que a gente usava era do Giba, uma Canon, que ele emprestava. E o Giba era como o nosso guru.

Gustavo: Por o que falava. Era uma pessoa por quem tínhamos muito carinho. Eu lembro das aulas de roteiro dele. O Giba era bem metódico e buscava criar várias categorias e, por dentro delas, bolava um sistema. Isso foi legal de aprender. Mas enfim, formamos esse grupo e começamos a fazer filme em Super 8. E, se for pensar, já nessa época era super difícil, porque filmávamos e mandávamos o filme para os EUA para revelar, aí ele voltava, a gente montava e mandava para outro profissional na Califórnia, Mr. Paul Yost, para colar a banda sonora, e ele só fazia o serviço depois do pagamento. E sempre tinha o festival de Gramado para passar Super 8mm. Era todo um circuito de produzir, filmar, e em agosto exibir em Gramado. Vinha gente não só de Porto Alegre. Acho que em nenhum lugar do mundo, nessa época, se produziu tanto Super 8 como no circuito de Porto Alegre. A cada ano, produzia-se cerca de 30 filmes.

Deu pra Ti Anos Setenta (1981), Giba Assis Brasil

Deu pra Ti Anos 70 (1981), Giba Assis Brasil

Melissa: Eu me lembro que em 2001 eu acabei representando Porto Alegre na Mostra de Curtas de SP, na seção Super 8mm, organizada pelo William Hinestrosa, que chamou-se III Fest. de Cinema S8 de SP, e foi curioso porque eu subi doze vezes no palco para receber os prêmios, porque estava representando todo o grupo de Porto Alegre, que representava mais de metade da produção da mostra.

Gustavo: Nesse sentido o Sul é bastante curioso, porque tem sempre uma forma de resistência muito forte, assim como pode ser extremamente conservador. Quando comecei a trabalhar em um cinema, eu me lembro que queria passar o Câncer (1972), do Glauber Rocha, porque era um contexto dos 40 anos do golpe militar, e eu falei com a Dona Lúcia e foi inclusive o Hernani Hefner quem encontrou a cópia. Na época, eu comentei com um crítico de lá e a reação dele foi estranha e acabou me esfriando. E eu vi que tinha uma resistência bem forte com o Cinema Novo em Porto Alegre, mesmo do Gustavo, dos críticos, da imprensa, e do pessoal do cinema em geral… Essa resistência do Sul tem uma certa relação com o fato de a película lá ter permanecido tanto tempo. Mas essa resistência também foi impulsionada com o festival de Gramado, que conseguiu criar um mini-circuito, de todo ano produzir, mostrar, trocar, ganhar prêmio… enfim, a gente começou a fazer filme assim porque começava-se em Super 8.

Mas é curioso que vocês relatem uma época que também já é a chegada do digital. Quando, principalmente no documentário, vinha uma empolgação sobre a possibilidade de filmar mais, de não depender tanto da película. Eu me lembro que nessa época tinha uma expectativa sobre o Coutinho ou o Godard irem filmar em digital.

Melissa: É… mas nós nunca fomos do documentário. A questão da montagem e da película (e de ser à mão), por exemplo, era valorizada. No grupo, sempre montávamos os filmes dos outros, de todos, e esse manejo direto com película na montagem foi muito importante para mim e para o Gustavo. E a película sempre representou a necessidade de uma precisão maior. Era tudo muito composto. Tinha uma quantidade finita de filme e isso nos obrigava a planejar tudo e de uma boa maneira, eu acho… Era como funcionávamos e ainda funcionamos um pouco assim. Não pegamos muito material para avaliar e depois decidir. Ainda mais sendo uma dupla, essa necessidade de planejar se intensificou porque precisamos discutir bastante antes de filmar.

Parte II: Berlim, Projeção, Labor e a Película como matéria viva

Gustavo: Mas nesse caminho da película, passamos a filmar em 16mm, porque alguém tinha uma câmera, e aí, resumindo, nos mudamos para Berlim. Foi quando conhecemos esse pessoal do Labor, que é o laboratório de revelação, que o 16mm passou a ser a nossa ferramenta dominante, pois praticamente só filmamos em 16mm e é um formato com o qual temos uma proximidade maior. Mas eu acho que a nossa técnica e a nossa linguagem surgiram a partir dessa relação direta com o suporte. Foi todo um processo de familiarização com a câmera, com o material, e começamos a pegar, revelar, cortar, montar tudo e aí construímos nossos filmes já pensando nisso.

Melissa: É também importante pensar no ângulo oposto, no sentido de que o cinema da materialidade seria o trabalho na superfície. Não é nem um pouco isso. Recentemente fomos para Rotterdam mostrar Filme de Pedra pela segunda vez, num laboratório no qual as pessoas que trabalham têm uma certa homogeneidade, mais concentradas na visualidade do filme. Nesse contexto, nossos filmes são narrativos demais e o pessoal acha estranho… eles fazem careta porque trabalhamos com ‘narrativa’.

Mas acho que o que mudou foi o próprio contexto da produção de filmes no mundo todo. O Festival de Brasília, por exemplo, tinha uma sessão só para o 16mm, que era considerado como um gênero à parte. Hoje em dia até a projeção em película está acabando. É algo que parece cada dia mais minguado e acuado. O interessante é que vocês continuaram nesse mesma forma de produção.

Gustavo: Projeção em 16mm é o seguinte: você tem que viajar levando o seu projetor. Nesse sentido, acho muito triste os festivais imporem um padrão de película, projeção. Não entendo muito porque não dá para o realizador a escolha de como é que ele quer passar o filme. Claro que isso dá mais trabalho para o festival… Também fazemos mostras e eu sei a dificuldade de produzir. Para nós, como você viu naquela projeção, o ideal é passar o filme em 16mm. Em video parece mais o preview do filme.

Melissa: Ao mesmo tempo, nós trabalhamos com o que tem. O Cat Effekt (2011) e o Triangulum (2008), por exemplo, não possuem cópias em película. Eles foram filmados em película e foram finalizados digitalmente. É um outro processo de pós-produção que até então não tínhamos feito. No In the Traveler’s Heart nós vamos até o fim em 16mm, como era o objetivo.

Cat Effekt

Cat Effekt (2011)

Gustavo: Mas acho importante fazermos uma defesa do digital aqui. Eu vi os dois Derek Jarman restaurados agora na Berlinale (Caravaggio e Sebastiane), e acho que nem na época os filmes passaram tão bem, com a imagem tão cristalina, ressaltando a fotografia. O digital permite trabalhar a imagem, a cor, de uma maneira que a película não consegue. Porque quando você copia em película, para você acertar a luz de cada plano não é tão simples. Aí a cópia gasta rápido. Depois de um ano, ela já não tem a mesma intensidade de brilho, de cor… O Terra em Transe mesmo eles falaram que filmaram com um monte de negativo diferente, então era impossível ter uma fotografia homogênea. Mas quando você vê a cópia digital atual, você percebe esse trabalho de contraste e de dar uma unidade que talvez o filme nem tivesse. Então tem uma qualidade de projeção também que era muito mais rara.

Melissa: Hoje o negócio é híbrido e tem que ser e é ótimo que seja. E não aceitar essa hibridez seria um equívoco. Eu ouvi falar que o INA (Institut National de l’Audiovisuelle), na França, só aceita depósito dos filmes em película, porque os filmes estavam se perdendo, já que não há como fazer um depósito digital que dure mais que cinco anos. Então a Kodak inventou um filme específico para fazer internegativo e na França todos os filmes têm que ser depositados assim. Então, é uma prova de como não tem como uma coisa substituir a outra e não tem porque isso acontecer. Elas podem coexistir. Dá para corrigir a cor digital e fazer um print do filme muito bom? Ainda ter um negativo em película é seguro? Eu tenho medo de ter um filme que só exista em HD. Esse é um tema, de como guardar um filme. Porque somos nós mesmos que fazemos isso.

Agora, é interessante perceber como é o próprio olhar do espectador que muda. Ao ver uma projeção inteira em 16mm, como a que vocês promoveram e promovem, é impossível, para mim, não realizar uma certa ‘viagem no tempo’. Porque é um padrão muito violento de mudança. É quase como se fosse a passagem do mudo para o sonoro. O digital acaba expulsando a película, enquanto padrão de fato…

Gustavo: Com certeza. Nós não nos damos conta disso. Tem um namorado de uma amiga que pediu para sair durante a projeção, pois ele é epilético e para ele aquela vibração irritava. É curioso porque, para nós, essas ‘sujeiras’ ou movimentos mais abruptos da película são naturais, já que todo dia lidamos com isso. Estamos lá duas vezes por semana no laboratório, revelando, passando na moviola, projetando em casa, então estamos em contato constante com esse material.

Outro ponto que acho interessante na obra de vocês é a valorização do momento do ato da projeção. O live, que valoriza muito o instante da sala mesmo.

Melissa: Isso é bem novo no nosso trabalho e vem também a partir do material. Então fazemos todo o processo no laboratório e, ao final, em alguns casos, não temos como colocar som no filme. Tem filmes que são mudos, mas geralmente em alguns o som é bastante importante. E aí surge a questão de como apresentar esses filmes trabalhando a música ao vivo, como se fosse uma performance. Isso é bem novo. A primeira vez foi em 2011, com o Éternau Alterstereo.

Gustavo: A maneira que trabalhamos aqui em Berlim não tem um limite muito definido de dizer onde o filme começa e onde ele acaba. É uma coisa mais de produzir continuamente. E, ao mesmo tempo, tem uma vontade de mostrar os filmes. As performances têm relação com isso, com esse retrabalho do filme, de interagir num work in progress. A própria performance, ao vivo, e depois a conversa com o público já nos indicam uma relação de ida e vinda, de retorno ao filme. Acho que existe esse rigor da obra pronta e tem também esse lance da performance, de produzir continuamente e aí de ter necessidade de trabalhar esse material não só nós dois, mas de trazer a projeção para dentro do processo criativo.

Adriana: De experimentar mesmo durante a projeção.

Gustavo: Isso. Basta você pensar em como é que é feito um filme geralmente, entre o roteiro – mesmo que a gente não trabalhe muito assim – a filmagem e a edição. Nesse recorte, a projeção acaba não fazendo parte do processo. Quando você trabalha nesse esquema de ficar produzindo, produzindo, produzindo, a projeção acaba te levando lá para dentro também. É uma forma de trabalhar todo o ciclo e de ver todo ele como parte do processo criativo.

Melissa: Nessa sessão que vocês foram (no Ausland), ficamos pensando como seria o primeiro, In the Traveler’s Heart, como um filme acabado, para ser visto sentado, na sala, e o segundo, Filme de Pedra, teria um calor mais humano, inacabado, em processo e com presença. Isso é legal, um momento mais frio e outro mais quente. Filme de Pedra nós chamamos de uma performance, mas estávamos atrás do palco e não na frente, como já fizemos, e acho que quando fazemos a performance atrás da platéia gera uma série de questões: quem está falando, da onde vem o som? Nós nunca tínhamos feito dessa forma e eu gostei muito.

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Filme de Pedra (2012)

Cinética: Essa dúvida é muito legal. Eu gosto da presença da performance junto com os temas da pedra, da escultura que vocês vão trabalhando ao longo de O Filme de Pedra, que para mim têm uma relação material, da pedra, com a película, enquanto o som e a performance atravessam mais os espectadores, de forma sensível e direta. Essa proposta de ver pedra, muito escultural, de presença que é virtualizada pela imagem. E pouco a pouco o som realiza uma presença mais física, menos imagética, que valoriza o instante. E esse tipo de trabalho com performance é muito comum em Berlim. Pode ser no momento mundial mesmo, mas geralmente há uma tendência em abarcar a performance como uma presença coroporal.

Melissa: Na nossa exposição em São Paulo, no Paço (2012), foi lá o Bernardo Carvalho e perguntou: “a performance começa quando?” Enquanto isso, eu lá manipulando catorze projetores, correndo de um lado para o outro. Duas noites e tudo rolando, sem parar. Tudo pulsando. E eu: “você quer que e a gente tire a roupa?” (risos).

Gustavo: Acho que a palavra performance está sendo usada de uma maneira bem ampla e passa a significar aspectos bem diferentes. Para mim, o mais importante é essa impossibilidade de repetir. Porque um filme é uma coisa que pela natureza dele tu pode passar mil vezes, que ele é sempre o mesmo filme, e a performance não tem como. Mesmo se tu quiser, mesmo se eu encenar o Filme de Pedra duas vezes, não vai ser a mesma obra. Eu penso muito em performance nesse sentido, da impossibilidade de repetir.

Melissa Dulius

Melissa Dullius

Você falou um pouco sobre o LaborBerlin, que é esse coletivo e laboratório onde vocês trabalham diretamente com a película. Vocês podem descrevê-lo?

Gustavo: É um laboratório de pós-produção de cinema, de revelação, e aos poucos está aumentando. Chegamos aqui em 2007 e ele era um projeto de umas quatro pessoas; não tinha um lugar fixo, tinha uns tanques russos de revelação que você consegue encaixar ali o 16, o super 8 e até o 35mm, e esse pessoal com alguma experiência. Estava se formando um grupo para conseguir um lugar. Com o tempo, ele foi crescendo, e o que se pode fazer lá dentro foi ficando mais complexo. Hoje em dia, dá para revelar, copiar, colorido, preto e branco. Revelar Super 8, 16mm e 35mm. Dá para fazer ampliar de 16mm para 35mm. Tem uma truca, que é uma mesa de animação. Enfim, tem várias máquinas e cada vez está ficando mais completo.

O dinheiro vem de onde? Tem financiamento ou é do coletivo?

Gustavo: Uma associação (nota do redator: uma Verein, em alemão). Tem cerca de 30 membros e cada um paga 60 euros por semestre, o que dá 10 euros por mês, além de uma taxa de inscrição para evitar muita flutuação. Somos uma estrutura aberta, mas que precisa que o pessoal fique por lá, já que tem trabalho a ser feito, tem que pegar junto. A filosofia é essa do do it yourself. Não tem um curso ou nada, mas aquele que tem mais conhecimento técnico tem o dever de ensinar ao outro. E tu vai desenvolvendo o seu trabalho lá dentro e aí tem que pagar os químicos, mas funciona como uma estrutura de cooperativa onde se racham os custos e cada um desenvolve seu trabalho. Mas também não é só isso. Para mim ele é esse atelier, esse lugar de produzir, mas também é uma plataforma. Cada vez mais estamos produzindo sessões… acabam rolando convites. Porque tem uma rede de laboratórios independentes que se chama filmlabs.org, mas uns são diferentes dos outros. São visões diferentes, mas há toda uma rede que se comunica pela internet e acaba compartilhando equipamentos e que troca coisas. Então, o Labor é esse atelier, essa plataforma, essa rede que acaba recebendo convites para fazer exibições e assim fechamos programas do Labor. E é também um network.

Gustavo Jahn

Gustavo Jahn

Melissa: Temos assembléias mensais e ali é totalmente horizontal e anárquico. Qualquer pessoa pode entrar e começar a falar. Não tem hierarquia. É claro que tem pessoas mais experientes, mas todo mundo participa da mesma forma. Essa é uma característica de um coletivo e nesse sentido é como eles chamam aqui, um Kollektivbetrieb, que é gerido por si mesmo. Tem um mínimo: químicos, máquinas funcionando, e depois vai crescendo, como os galhos de uma árvore. Mas eu acho que essa outra estratégia de virar uma plataforma de exibição e de fazer network com outros laboratórios é uma coisa natural, porque estamos todos no mesmo barco.

Gustavo: Tem um tema que está surgindo agora e acho que vai ficar cada vez mais forte que é o da educação. Porque a gente está cada vez mais recebendo pedidos de fora, como professor da escola de cinema que quer fazer uma aula na moviola, porque, por exemplo, a Dffb (nota do redator: principal escola de cinema de Berlim) jogou a dela fora… Então estamos começando a virar uma referência. Um professor que está mostrando imagem em movimento e quer mostrar esse equipamento não tem mais onde ir, então não é só para quem quer fazer filme em película, mas para quem quer ter um contato mesmo que de um único dia com esse material. Acho que esse será o quarto pilar do Labor. Vai ter gente interessada em produzir filmes; outros em mostras e curadoria; e quem estiver interessado em fazer workshops, vai fazer isso.

E como é que vocês conseguem comprar as películas? Porque até onde eu sei deu uma boa diminuída na produção industrial… .

Gustavo: Eu ainda acho que é relativamente acessível. O que tem se falado é que vai ficar mais difícil o filme de cópia, que é chamado de positivo. Mas a gente ainda não sentiu isso. Comprávamos de um laboratório em Berlim que fechou, há um mês. Eles nos revendiam. Compravam da Kodak. O que está acontecendo é que esse mercado está se reerguendo, se remodelando e ficando cada vez mais específico. Têm companhias que estão abrindo, ou reabrindo agora. A Ferrania, na Itália, anunciou que lançaram uma emulsão nova para Super 8, 16mm e 35mm também. Está ficando mais específico. Em termos de exibição, no mercado de arte, por exemplo, tem muita gente que opta por produzir diretamente em película, e há ali um escoamento da produção. Há muita obra em película sendo produzida em galerias, feiras… remodelaram um pouco tanto o mercado de produção do material como sua forma de circulação. Eu também não sei como é exatamente na fotografia – e a gente também fotografa – mas eu nunca ouvi falar de fim da película para a fotografia como se fala no cinema. O que está acontecendo é que para trabalhar com esse material você tem que se planejar mais, saber mais quais são as fontes certas para ir atrás e normalmente tem que entrar num grupo, numa rede de laboratórios, que trabalha muito nesse sentido de uma certa proteção. Tem gente no nível mais handmade mesmo que está fazendo a própria emulsão.

Adriana: E qual é a diferença de realizar a própria emulsão?

Gustavo: Tu cria a emulsão, passa a emulsão na película, para você poder sensibilizar. Tu corta lá o poliéster virgem não sei de que tamanho, perfura ele. Tu faz o filme mesmo. Depois passa um pincel sobre a película e aí pode filmar e sensibilizar essa emulsão. E você cria mesmo a própria emulsão. A diferença no resultado é tu conseguir distribuir a emulsão na película.

Cat Effekt (2011)

Cat Effekt (2011)

Melissa: Porque não é industrial, mas bem caseiro. É por isso que a gente fala que o filme não acaba. Eu não acho que até eu morrer eu não vou ter película (risos). Talvez a nova geração, mas eu não estou preocupada.

Gustavo: O principal laboratório dessa rede chama-se L’abominable e eles vão fazer agora um workshop só sobre esse tema, que é a “handmade emulsion”.

Só mais uma pergunta mais técnica: vocês chegam a telecinar o filme ou montam direto na moviola? Quando vocês passam para o computador vocês tentam manter essa aura da película? Ou tentam para outra coisa? Eu digo no conceito… 

Gustavo: Temos uma maneira de editar bem mecânica. Dificilmente vamos fazer um efeito porque sempre pensamos em montar o negativo dos nossos filmes. E se fizermos um efeito digital não tem como passá-lo para o negativo. Então isso meio que orienta: montamos de um jeito que possamos, mesmo que dez anos depois, ter uma cópia em película.

Melissa: A coisa acontece mesmo de frente para a câmera… .

Parte III: Texto, roteiro e viagem.

Como é que vocês trabalham os roteiros dos filmes? Porque o texto tem um papel muito importante no filme de vocês. Mesmo quando ele é declamado… 

Gustavo: Não partimos muito de um roteiro, mas de uma organização das cenas por frases. Aí depois vem uma sequência e uma descrição. Mas é uma coisa mais poética mesmo. São frases que sabemos muito bem o que está sendo escrito ali. É uma situação, um clima que permite que a gente veja bem a cena. E como a gente trabalha entre amigos, quatro ou cinco pessoas, a gente não tem essa necessidade de trabalhar um roteiro.

Melissa: Mas ao mesmo tempo é tudo bem planejado. Fazemos uma decupagem antes de sair para filmar. Mesmo entre nós dois. Só não tem uma coisa “antes”… não tem um momento só de escrita e depois de produção. É tudo junto. (Nota do redator: Melissa procura e mostra o caderno com o roteiro e a descrição das cenas de In the Traveler’s Heart)

Gustavo: Isso é importante salientar, porque a nossa dinâmica de escrita e criação é bem definida pelo lugar onde vamos filmar. Quase sempre a cena é definida pelo nosso contato com uma locação, e aí começamos a escrever essas frases.

Melissa: E aí damos nomes para os lugares, para tentar defini -los. No In the Traveler’s Heart, a gente chamava “o pampa”, “o bosque”, “o lago”…

Gustavo: A história do In the Traveler’s Heart é isso: uma história até ele sair do mar, até ele chegar naquelas pirâmides solidificadas de gelo. Mas mesmo na segunda parte de Filme de Pedra quando saíamos das pedras e interagimos com as pessoas, quase essas todas cenas surgiram dos lugares… Teve um filme, o Fluxus (2009), que criamos na mesa de montagem um nome para cada cena e depois criamos uma música e uma letra que juntava esses títulos que demos. Porque o material, em si, gera mais coisas. O material gera mais materiais e aí precisa de música, letra. As coisas vão mesmo se multiplicando. É como um arquivo. Tu vai produzindo e vai sistematizando, criando categorias e daí toda hora tu volta, abre uma gaveta, retorna e utiliza aquilo. Esse trabalho de texto, de edição, vem junto. Dá nome às coisas, cria categorias, coloca em gavetas, e depois, de onde você estiver, você pode sempre ir trocando ou criando. Você tem e precisa das coisas um pouco à mão. A gente vai produzindo muito assim. Se precisa de uma música, cria a música, bota lá e, se combinou, então tá bom. Essa coisa do momento, da criação… o negócio é produzir o tempo inteiro e acumular.

Cinética: É curioso isso porque, no Brasil, o roteiro é sempre o ponto de partida para chegar num edital, que virou o modo operante da produção audiovisual. Sem roteiro você não consegue muito.

Gustavo: Quando a gente saiu do Brasil, em 2007, isso estava começando a ficar mais forte.

Melissa: Mas aqui na Alemanha o roteiro também é importante. Nunca conseguimos ganhar um edital, gente.

Mas vocês conseguiram construir uma obra sem precisar disso.

Gustavo: Acho que aqui funciona diferente, pelo menos na experiência que temos, que não enfatiza tanto o roteiro. O lance acontece de maneira mais fluida quando alguém já colocou o dinheiro. É um modelo mais de co-produção, bem europeu. A partir do momento que você já tem um tanto, as parcerias surgem e o filme tende a acontecer.

Essa relação também com viagem, deslocamento e exílio é bem marcante no In the Traveler’s Heart, mas parece uma linha comum aos demais filmes de vocês. Acho que é legal como vocês enfatizam um olhar de uma experiência de estranhamento do local e da cultura, às vezes como turista, como por exemplo ocorre com o filme no Cairo (Triangulum). Acho muito honesto, porque muitas vezes isso acaba camuflado dentro de uma moldura ficcional.

Gustavo: Fizemos esse movimento mesmo de ter vindo para Berlim e num primeiro momento tínhamos muita vontade de conseguir viajar. Esse lance da viagem já era uma vontade antes de vir para a Europa, e meio que tornou-se real. Éternau é sobre uma viagem de navio. Aparece lá: “próxima missão: Cairo”, e depois a coisa torna-se real. Fomos para o Cairo e fizemos um filme lá. Fomos para Moscou e filmamos. Fomos para a Lituânia e também filmamos…

O segundo ponto é um pouco sobre esses cineastas brasileiros que estão produzindo fora do Brasil. Como é que há cada vez mais um ponto de vista estrangeiro nessa cinematografia que foge um pouco da redoma nacionalista criada como uma herança do Cinema Novo – embora o ‘cinema gaúcho’ seja sempre mais separado nisso e não faça muita questão de participar desse mote.

Gustavo: É, acho que tem esse debate sobre as cinematografias nacionais, um pouco cinéfila, de pensar a partir de países. Ah, o cinema iraniano está bem, o cinema brasileiro está mal. Hoje em dia, não tem o menor sentido pensar em cinematografias nacionais. É uma coisa de outra época, vinculada a um tipo de cinema que não existe mais, que diz respeito ao papel que o cinema tem na sociedade. Na verdade, o cinema perdeu sua importância social. Na época do Fellini ou do Godard todo mundo comentava, falava, não só porque era o Godard ou Fellini, mas esses filmes tinham uma importância que não reverbera hoje do mesmo modo. Não estou nem falando do lance de uma obra de arte representar uma sociedade… Isso realmente perdeu o sentido. São outros interesses, tem outro papel, é uma outra coisa.

Melissa: Amanhã, por exemplo, a gente vai apresentar o Terra em Transe para mostrar a pessoas que não possuem a menor noção de quem é Glauber Rocha ou do cinema brasileiro. E aí eu escolhi um tema bem amplo que é os “intelectuais e o povo”, no bordão daquela frase do Bernardet (sic), “o pior filme brasileiro é melhor que o melhor filme estrangeiro” (nota do editor: a frase lembrada provavelmente é “Até o pior filme brasileiro nos diz mais que o melhor filme estrangeiro”, de Paulo Emílio Salles Gomes), porque é feito aqui, e isso faz cinquenta anos.

Mas isso continua, Melissa. Creio que no Brasil esse sentimento ainda é bastante presente.

Melissa: Aqui na Alemanha, essa busca pelas origens e pelas identidades é vista de uma maneira muito esquizofrênica que às vezes acaba por esbarrar no nazismo. Tem uma coisa de buscar a origem que é quase como o ‘bom selvagem’. Muito complicado. Você pode ver isso também de outra maneira. A identidade no Brasil também não é tão definida. Nós somos estrangeiros em qualquer lugar, mas quando anunciamos nossa produção o Brasil sempre está lá. Como matéria humana, mesmo nos créditos, que seja eu e o Gustavo, nós dois, que levamos nossa cultura fílmica.

In the Traveler's Heart (2013)

In the Traveler’s Heart (2013)

Gustavo: Os filmes vão ser essa equação de o que estamos trazendo, que é a nossa bagagem pelo fato de termos nascido e vivido no Brasil, com o contato com toda essa cultura e, por outro lado, o nosso confronto com a equação daquilo que encontraremos naquele lugar. A viagem vem um pouco dessa ideia de como levar o material e de o filme se multiplicar. Tu dá nome às cenas para depois vir outra coisa. Então o lugar tem um papel muito importante, tanto que a gente cria o roteiro para o lugar, que nos inspira quase como se o ar do lugar fosse moldar o filme e as formas. Se vamos fazer um filme na Rússia, ele inevitavelmente terá um aspecto russo. O mesmo ocorre se filmamos no Cairo. Então o lance da viagem vai um pouco nesse sentido de explorar lugares diferentes e ver, assistir como os filmes se formarão de maneiras também diferentes. Por isso eu falo que é uma equação, porque somos sempre nós, que seríamos a constante, e os lugares funcionam como variantes da equação. Daí os lugares nos revelam as formas que serão engendradas pelo filme.

Melissa: O In the Traveler’s Heart é um caso bem interessante porque é o resultado de uma residência artística de dez semanas na qual só ficamos fazendo o filme. Isso é muito raro para nós. Geralmente a gente mistura as filmagens com o dia a dia. Eu lembro que fomos para um lugar, levamos a câmera e fizemos o filme com sol… chamávamos a primeira parte de “Os adoradores do sol”. Pesquisamos o simbolismo em torno do sol e queríamos um filme atemporal, muito antigo, de uma época imemorial. E aí levamos muitas imagens, ícones.

Adriana: E como é que surgiu a ideia daquela máscara de candomblé que você veste?

Melissa: Ela surgiu a partir dessa referência do sol mesmo. Queríamos que o sol saísse. O tempo estava bom, mas às vezes ele aparecia branco e sumia de novo e daí aquilo era um pouco um chamado pelo sol. Fazer ele sair de trás das nuvens. A máscara é inspirada em fotos do Pierre Verger. No filme, eu também carrego uma machadinha dupla de Ogum.

Cinética: E vocês realçam essa superfície como um elemento do filme, porque o olhar do estrangeiro é sempre mais superficial, já que não compartilha de todos os significados. Poucos numa sessão aqui em Berlim vão saber que aquilo ali é candomblé…

Melissa: Ou mesmo a música (“Cutelinho”, de domínio popular, cantada à capela por Melissa no filme), é difícil um estrangeiro conhecê-la… .

Não emociona do mesmo jeito para um estrangeiro, o que não deixa de ser bonito, mas para mim, como espectador, me permite algumas concatenações que escapam, por exemplo, aos alemães naquela sessão do Ausland…

Melissa: Eu amo aquela música, desde criança. Eu e o Gustavo falávamos que ia ter uma música. Eu estava passando um dia na floresta (da Lituânia, no inverno), e ouvi uma pessoa cantando sozinha. E aí decidimos colocar uma música e ficamos pensando qual seria. Fui pesquisar e descobri que essa era de domínio público. Foi o Paulo Vanzolini que recolheu a música e escreveu a última estrofe, que acabamos não usando. Ele escutou a música de um vaqueiro no Mato Grosso. O Vanzolini tem um disco que chama Onze Sambas e Uma Capoeira (1967) e é nele que tem essa música. Para nós, o Brasil é isso. É todo tempo, é nossa identidade, mas não estamos aqui para representar algo específico. Nem tem como.

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