Educação Sentimental, de Julio Bressane (Brasil, 2013)

março 1, 2015 em Cinema brasileiro, Em Pauta, Filipe Furtado

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A pedagogia do sensível
por Filipe Furtado

“Um filme, uma película. Isto hoje tem um valor arqueológico. Estará em breve no museu das sensibilidades perdidas.”
Aurea em Educação Sentimental

Quando Educação Sentimental foi exibido nos festivais de cinema brasileiros do segundo semestre de 2013, chamou a atenção sua exibição ser em 35mm. Num cenário em que mesmo os filmes ainda realizados em película eram invariavelmente exibidos em DCP ou formatos inferiores, tratava-se praticamente do único filme fora das retrospectivas em que o formato foi preservado.  O interessante é que Julio Bressane a principio passa longe de ser um nostálgico que faz valer a escolha por preciosismo. Longe disso, o cineasta sempre foi um realizador muito prático – seus dois filmes anteriores (Rua Aperana 52, de 2012 e O Batuque dos Astros, de 2013) foram finalizados em digital, e, no começo dos anos 1990, quando a produção nacional quase parou, ele realizou uma série de médias e longas em vídeo (Galáxia Albina, Infernalário: Logodédalo – Galáxia Dark, Cinema do Cinema – Criação e Recriação de Imagem no Filme cinematográfico e Antonioni – Hitchcock: A Imagem em Fuga) num momento em que trabalhar com o formato era algo pouco comum. Julio Bressane sempre foi um cineasta que se adaptou sem grandes dificuldades às várias realidades de produção com as quais foi confrontado ao longo da carreira, logo a primazia e mesmo protagonismo da película em Educação Sentimental é uma opção estética.

A obra de Bressane sempre primou por um flerte com outras artes (música, literatura) e por uma crença que o específico do cinema está na carne, na maneira como, ao se aproximar dos seus atores, o cineasta empresta a ela uma potência sensorial e concreta que existe somente nele.  Se há um cineasta cuja obra a de Julio Bressane muito se assemelha este é Alain Resnais, cujo trabalho todo também era voltado para a construção de gestos e sentimentos, a despeito de frequentemente ser confundido como frio e cerebral. Não há nada de frio e cerebral em O Ano Passado em Marienbad (1961) ou Stavisky (1974), assim como não há em filmes como A Agonia (1976) ou Cleópatra (2007). Não é acidente que Resnais tenha passado os últimos 25 anos de sua carreira se dedicando a encontrar maneiras de realizar cinematograficamente peças teatrais antiquadas. Educação Sentimental é um título muito justo para aquele que é um dos filmes mais emotivos de Julio Bressane, no qual, a despeito de todas as discussões entre Aurea e Aureo, tudo se resolve na imagem de dois corpos dançando.

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Se frequentemente em filmes que colocam em primeiro plano a captação em película o que interessa são as possibilidades de textura que o 16mm ou 35mm permitem (uma forma de resistência à imagem limpa e codificada do digital), em Educação Sentimental o elemento sensorial ressaltado pela presença da película é o calor dos corpos.  O foco se move do quadro como um todo para as duas figuras humanas dentro dele – do estático para o realçar constante do movimento. Educação Sentimental é um filme de dança, e a imagem de Josie Antello em performance para a câmera é aquela que retemos sempre conosco. É pelo movimento dos corpos que Julio Bressane pode realizar a sua educação sentimental – movimento que ganha uma vida diferente quando apresentado em película, e é nesta diferença que o filme todo aposta.

Se algo aproxima a grande maioria dos filmes que ainda apostam na potência da película, é uma crença numa presença táctil que acredita que o filme apresenta espaços, corpos e objetos com uma força para além do registro. Pensemos aqui no momento em que Aurea destaca a coleção de porcelanas, quando Educação Sentimental articula esta ideia de permanência na presença de forma direta (em particular quando o diretor fecha o plano sobre uma das peças), ou na maneira como a casa que serve de cenário principal é apresentada sempre como um palco cinematográfico. A grande contribuição de Bressane é justamente, ao elevar gesto e movimento ao primeiro plano, aumentar o caráter físico do projeto.

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O momento mais frágil de Educação Sentimental são as sequências finais, quando o filme é tomado por seu próprio making of, especialmente num primeiro momento quando a intromissão sobre a ação bate com força e é difícil não lembrar que, assim como Godard, Julio Bressane costuma guardar para o vídeo seus momentos mais discursivos sobre a arte e de que esta intromissão do realizar sobre a ação é um cacoete autoral que o realizador já retornou diversas vezes. É, porém, nestes momentos finais, quando a organização destas imagens começa a registrar com mais força os pequenos gestos isolados (em especial, quando retomam os corpos de Josie Antello e Bernardo Marinho) que o projeto todo do filme e seu desejo de valorizar a sensibilidade física do homem se completa.

Educação Sentimental realiza por fim a profissão de fé de Bressane do cinema como música da luz (a película é vazada pela luz que a projeta, Aurea nos lembra). Como em vários de seus filmes, trata-se de um musical, e é um dos seus mais diretos e pedagógicos – um filme de educação, enfim, no qual estas ideias são colocadas em primeiro plano. É esta a forma de Bressane também investir na recuperação de uma sensibilidade perdida que, não à toa, Aurea aponta quando segura um pequeno rolo de filme (“guardei este filme como uma lembrança querida”). Trata-se de uma pedagogia do sensível exposta tanto por Aurea como, de forma ainda mais essencial, pela maneira com que a coreografia do seus corpo é capturada. Se Educação Sentimental pede pela película, é por acreditar que nela esta sedução da imagem ainda chega até nós de forma mais natural.

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