Editorial – Outubro 2013

Cinema em tempo de Brasil
por Fábio Andrade

Há cerca de dois meses, em uma reunião de pauta virtual da Cinética, externamos, de maneira quase sincronizada, um incômodo comum em relação ao trabalho cotidiano da revista em um período em que o país passa por transformações – duradouras ou não, mas carregando a potência de todo corte seco – que estão intimamente ligadas com aspectos do sensível e do simbólico. O incômodo vinha por, em grande parte, sentirmos uma conexão (mesmo que fosse pela desconexão) enorme entre os fatos e alguns sentimentos que vínhamos, ao longo do tempo, nutrindo em nossas críticas – fossem elas mais ou menos simpáticas aos filmes – em relação ao cinema brasileiro, tentando fugir, com essa constatação, tanto do “mea culpa” quanto do “não te avisei?”.

Se, por um lado, o ensurdecedor coro de “Sem violência!” se alinhava à percepção de um cinema brasileiro que trocou o conflito pela conciliação – e hoje parece pagar um preço alto por essa escolha -, por outro lado havia, nos coquetéis molotov e na violência institucionalizada (fosse ela física, no caso da polícia; ou simbólica, no caso de grande parte da imprensa), um sentimento que nos parecia em grande parte adormecido sob a pele dos filmes. Esse país em fervura baixa que surgia nas conversas de bar e que aparecia em alguns filmes recentes entrava, enfim, em franca ebulição. Mas com o aumento da temperatura, a água foi derramada e a sensação era de que o cinema brasileiro – e não só os filmes, ou seja, um cinema que inclui a crítica e várias outras áreas de atuação – se queimou severamente no processo.

Junto ao incômodo, surgiam grandes indagações: como escrever crítica de cinema que reflita este desconforto e, ao mesmo tempo, não abandone a especificidade de seu ofício? Se sentíamos que havia uma conexão profunda entre a batalha do sensível e do simbólico que agora se expressava fisicamente, nas ruas, e o trabalho de avaliação de obras de arte, como transformar isso em produção, em intervenção, em proposição de fato? Como fazer com que o momento sirva também como uma oportunidade para que a crítica e o cinema brasileiro repensem seus papéis em todo esse amarrado social e encontrem a dimensão de o quanto certos procedimentos (da crítica e do cinema) determinam comportamentos fora deste pequeno universo que chamamos de cinema brasileiro? Como abrir o gabinete à compreensão e à sensibilidade de um momento histórico que se dava justamente na reocupação do espaço público, falando de algo tão insular quanto a experiência cinematográfica? Como fazer crítica de cinema incorporando – pois, mesmo em último caso, essa incorporação se tornou inevitável – tudo que foi colocado em movimento nesses últimos meses, sem, com isso, criar uma pauta de críticas de passeatas?

Por outro lado, ao mesmo tempo em que certa sensação de impotência era compartilhada nas conversas e em nossa lista de discussão, esse ímpeto que leva as pessoas ao enfrentamento é algo que nos parecia em grande medida ausente do cinema brasileiro nos últimos anos – nos temas ou na própria maneira de se clivar uma obra de arte. Com a cordialidade dos ambientes festivos e a falsa obrigação de incentivar (ou melhor: de cumprir uma apreensão muito estreita de incentivo) a produção, o cinema foi, aos poucos, anulando sua capacidade de embate dentro de seu próprio meio (quanto mais em sua relação com o mundo, fora da sala). Se hoje vemos uma parte da população se defendendo ativamente com as armas que encontra da repressão institucionalizada (sejam elas as redes sociais, a OAB ou as pedras portuguesas da calçada mais próxima), esse mesmo voluntarismo de ocupar a linha de frente e enfiar os dedos nas narinas dos leões foi franca e programaticamente desarticulado do ambiente cinematográfico brasileiro. Como consequência desse falso consenso, nos embrenhamos em uma cinematografia em grande medida estéril, pois não há vida possível onde não existe pulsação.

Passamos os meses seguintes tentando encontrar essas chaves, tentando determinar as exatas conexões nervosas (que estão longe de esgotadas nestes primeiros textos) que sentíamos na vivência do cinema no Brasil, sabendo apenas – de maneira até certo ponto instintiva – que há fortes implicações em todo esse processo das quais o cinema não pode (e, na verdade, não tem mais a escolha de) se eximir. Buscamos respostas (a nós mesmos, que seja) nos textos que compõem esta nova edição, com pauta especial que abarca um amplo feixe de questões e filmes que nos parecem conectados a um sentimento do presente. Esse mesmo sentimento, porém, se esparrama por outras seções da revista e transcende, naturalmente, o cinema brasileiro, seja na análise da relação entre política e arte em Cedo Demais / Tarde Demais, de Straub e Huillet, nas relações entre a vida e a obra de Samuel Fuller, ou nas conversas que tivemos com Claire Denis – finalmente publicada, dois anos após ocorrida, coincidindo com a volta da diretora ao Rio – e com Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso. Em todos os casos, permanecem as certezas de que o cinema só acontece no fluxo da própria vida, e de que a crítica, como todo gesto de amor e ao contrário do coro das ruas, é um ato necessariamente violento.

Nesse sentido, é oportuno, e tristemente simbólico, que o Festival do Rio seja também atropelado pelas manifestações correntes dos professores do Estado do Rio de Janeiro e pela reação, como de praxe, absurda do Estado, afetando, por exemplo, toda a Premiere Brasil – seção de filmes brasileiros que têm estréias no Odeon, cinema localizado no meio das barricadas. A teia fica ainda mais complexa por o Festival do Rio ter o apoio da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro, hoje sob orientação de Sérgio Sá Leitão, que acumula o cargo à presidência da RioFilme, e que cada vez mais se posiciona publicamente de maneiras que nos parecem, no mínimo, profundamente condenáveis. Se, por um lado, permanece certo estremecimento em colocar no ar uma cobertura de um evento de cinema em grande parte financiado por uma gestão que nos parece, em enorme medida, política e artisticamente desastrosa – tanto da Secretaria de Cultura quanto da RioFilme, mesmo com os eventuais acertos –, por outro, permanece o gesto de fé de que uma instituição como o Festival do Rio já fez mais pela formação dos críticos da revista e do imaginário da cidade do que este mau momento é capaz de dar conta. Com o coração partido e os olhos e ouvidos atentos, começamos, aqui, mais uma cobertura do Festival do Rio. Boa leitura.