EDITORIAL – Março 2013

Após o fim, o começo
por Fábio Andrade

Aqui na CINÉTICA, nos despedimos de 2012 com um editorial que vislumbrava novos ares. Olhando em retrospecto, não foram poucos os editoriais nos últimos anos que se dedicavam a constatar os limites do presente, e que apontavam para o futuro com o desejo de olhar por outro ângulo, de re-situar a possibilidade crítica buscada pela revista no espectro onde ela se insere. Havia um gesto simbólico naquela despedida, e há gesto simbólico também na possibilidade de enfim inflar os pulmões com tudo aquilo que poderia, afinal, não passar de um vislumbre: bem vindos à nova CINÉTICA.

Se o tapete na entrada dá boas vindas, os costumes imperam que se deixe os sapatos à porta para em seguida mostrar, minimamente, cada canto da casa. A nova CINÉTICA é tecnicamente menor do que a anterior: trocamos a estrutura fragmentada em diversas sub-seções por apenas quatro espaços mais compactos, que hoje parecem melhor abrigar nossos desejos. Essa opção por certo minimalismo, porém, traz uma possibilidade de concentração que acreditamos servir melhor aos textos que hoje são produzidos dentro da revista, e que, na verdade, são sua verdadeira razão de existência. Uma apresentação mais clara de cada um desses espaços pode ser lida aqui, mas uma casa que precisa de mapa não é exatamente uma casa, e o uso cotidiano de cada cômodo tende a ser suficiente para se diferenciar a cozinha da sala-de-estar. Que todos esses espaços nos sirvam como canto propício à leitura.

As mudanças estruturais, porém, são frutos de transformações mais amplas e que já estavam em curso há tempos – afinal, uma revista como a CINÉTICA, que hoje já não traz em sua redação praticamente rastro algum de sua formação original, tem na própria mudança constante certo traço de identidade. Mais importante do que a apresentação, portanto, são as mudanças concretas na proposta da revista: a cada dois meses, a CINÉTICA ganhará uma nova edição, com pauta pensada e trabalhada pela nossa redação (e nossos eventuais colaboradores). Com isso, surgem seções completamente novas – não só a EM PAUTA, mas também a EM VISTA, seção de recorte espontâneo do vasto mundo do cinema, e que não tinha paralelos na organização anterior; além da EM CAMPO, que combina trabalhos que até então ficavam em setores distintos de nossas páginas. E se a presença mantida do EM CARTAZ reafirma o interesse da revista em um trabalho cotidiano, que sente nos dedos o calor de cada momento, o novo formato privilegia textos mais detidos sobre títulos que selecionamos deste cardápio possível – atualizado com maior frequência, mas sem o compromisso de responder ou exaurir essa fatia mais tradicional do mercado exibidor.

Uma casa, porém, é feita por tudo que habita aquele espaço. Como as mudanças foram motivadas pelas lacunas passadas no que gostaríamos de ter feito e não conseguimos, nada mais justo do que dedicar este esforço em primeira marcha à obra de um cineasta singular que, salvo uma já distante entrevista, permanecia ausente das páginas da CINÉTICA: João Pedro Rodrigues. Com um lançamento no Brasil (O Fantasma, seu primeiro longa), e presença muito dependente de mostras e festivais, os filmes de João Pedro Rodrigues há muito nos chamam a atenção, mas acabaram driblando o contato crítico mais detido – vazio que esperamos preencher (mas nunca esgotar) com os seis textos que ocupam a EM PAUTA. Rodrigues é um cineasta de uma originalidade latente que praticamente demandou que um novo lugar lhe fosse inventado, dada a impossibilidade de guardá-lo comodamente em gavetas já existentes. Esperamos que essa inquietação, tão cara aos espíritos livres – e que mantém essa autonomia mesmo diante do fascínio da História e das convenções -, tenha chance de se espalhar e permanecer em nossas páginas.

O contato intenso com seus filmes talvez tenha ajudado a disparar percepções e idéias sobre o cinema que começaram a costurar textos que surgiam espontaneamente dentro da revista. Se todo o cinema de Rodrigues é um embate com a morte, há desdobramentos desse mesmo sentimento nos quatro textos que ocupam a EM VISTA: um artigo sobre ATTENBERG!, da diretora grega Athina Rachel Tsangari; um novo olhar sobre o belo O Que se Move, longa de estréia de Caetano Gotardo; um ensaio sobre Motorway, de Pol-Soi Cheang, e Universal Soldier: Day of Reckoning, de John Hyams; e um olhar sobre o cinema de F. J. Ossang.

No EM CARTAZ, alguns filmes ganham nosso destaque: O Som ao Redor, que já tinha crítica de Luiz Soares Júnior (republicada aqui), recebe mais dois novos olhares; e Amor, de Michael Haneke, é fonte de debate, com dois textos que se colocam em lados opostos de uma mesma relação. Além disso, há novos textos para Caverna dos Sonhos EsquecidosDjango Livre, A Vida Útil De Pernas para o Ar 2, além do resgate de outros dois textos de nosso arquivo: César Deve Morrer, dos irmãos Taviani, e A Parte dos Anjos, de Ken Loach. E mais textos estão a caminho.

Na EM CAMPO, combinamos uma cobertura exclusiva e seleta da última Berlinale – com filmes de Hong Sang-soo, Wong Kar-wai, Gus Van Sant, entre outros – com uma entrevista bastante especial, que finalmente vê a luz do dia: o cineasta e crítico Luc Moullet. Assim como a presença de João Pedro Rodrigues denota certas afinidades, a publicação da entrevista de Luc Moullet – como em outro momento foi a pauta sobre Jonas Mekas – vem como um misto de amuleto e declaração de princípios, não só pelos filmes que ele faz e os textos que escreve, mas também pela leveza com que ele transita entre a crítica e a realização cinematográfica (como alguns de nossos redatores), reconhecendo as diferentes possibilidades de atuação para encontrar uma voz que parece estar justamente na interseção entre as duas coisas.

Há, ainda, uma última novidade, também há muito planejada: a CINÉTICA agora tem um braço paralelo onde publicamos versões em inglês para alguns textos publicados ao longo da história da revista. Começamos com três artigos, mas manteremos um fluxo semanal de atualizações por lá.

Todas essas mudanças, porém, não seriam possíveis não fosse o trabalho de todas as pessoas envolvidas na CINÉTICA, hoje e sempre. O arquivo de textos publicados entre 2006 e os dois primeiros meses de 2013 seguirá intocado e sempre disponível para leitura. E se há passos novos a serem dados, eles só apontam a partir das pegadas que marcaram o caminho até aqui, entre elas as de várias pessoas que já não têm mais relação direta com a revista. Esta mudança serve, também, como despedida a Eduardo Valente, que havia deixado a editoria no começo de 2011, mas seguia como importante ajuda no trabalho de colocar e manter a revista no ar até o momento. A CINÉTICA hoje segue sem seus fundadores, e talvez seja interessante perceber que, apesar da presença constante da morte (em sentido figurado, no caso – estão todos vivos e distantes da revista pelos cursos naturais da vida), tanto os filmes de João Pedro Rodrigues quanto vários outros que marcam esta edição de recomeço se concentram na vida que segue após o fim. Deixemos que a história siga como história, pois o presente segue nos levando à frente, imprimindo ritmo em nossos passos, como em um funeral à New Orleans. Que comece a música.