Dispositivo, substantivo concreto
por Fábio Andrade

Não é novidade que, nos últimos anos, o termo “dispositivo” tomou de assalto as discussões e a produção de pensamento sobre cinema no Brasil – um meio tão suscetível às modas e à produção conjunta quanto qualquer outro. Àquele momento, o movimento era de trazer ao cinema a categoria criada por Foucault, que se manifestava no Brasil sobretudo no pensamento sobre documentário: grosso modo, o dispositivo foucaultiano é um conjunto de regras que age sobre os seres viventes – termo talvez melhor solicitado, na produção brasileira, pelas “regras do jogo” dos filmes de Eduardo Coutinho, embora origens mais remotas possam ser traçadas. O dispositivo, no caso, era um conceito, uma abstração que visava juntar diferentes forças sob um mesmo guarda-chuva teórico. Era um esforço de nomear o que não tinha nome; um conceito, enfim.

É supérfluo dizer que a produção de pensamento sobre cinema rapidamente absorveu o uso do termo, consolidando-o no vocabulário de forma tão assimilada que, a esta altura, dispensa pautas ou conceituações. Naturalmente, como conceito, o dispositivo não tem valor em si, mas pode servir como ferramenta de aproximação dos filmes. Mas enquanto o dispositivo abstrato se consolidava, havia um outro dispositivo, este de natureza concreta, que um conjunto de filmes recente passou a, sucessivamente, colocar em crise: o próprio aparato cinematográfico. O esforço de abstração que foi buscar possibilidade de conceituação em um objeto concreto (um elevador é um dispositivo, uma catapulta é um dispositivo) terminou por descolar o termo, no cinema, de sua origem concreta. Afinal, o cinema já nasce de um dispositivo: o aparato cinematográfico. Mas por que falar da câmera, do sistema de captação, nos dias de hoje? E como fazer isso fora do nicho técnico e tecnólogico no qual o cinema está profundamente inserido, uma vez que à crítica o interesse está adiante, nos filmes?

Nos últimos anos, é notável o surgimento de filmes aparentemente desconectados que se unem em um movimento de restauração dessa crise fundadora – algo que estava no cerne da ontologia fotográfica de André Bazin, por exemplo – talvez motivado pela crise da relação com a materialidade do aparato cinematográfico. Esse retorno busca decifrar as diversas influências e determinações que o aparato (não só a câmera, mas também a cena, a história – o cinema, enfim) tem nos filmes. Com a eclosão do vídeo, a morte do cinema prevista por Jean-Luc Godard parece abrir à criação cinematográfica uma espécie de segunda chance, uma possibilidade de voltar ao princípio para começar tudo de novo. Se há todo um cinema que “já não é mais possível”, diante da virtualidade da imagem eletrônica (algo abordado frontalmente por Leos Carax em Holy Motors, seu doloroso lamento pelo fim dos motores), alguns filmes têm retornado ao princípio fundador do cinema para tentar descobrir o que ainda é possível, nem que seja registrar, em imagem e som, a realidade (as limitações) do próprio registro cinematográfico. É uma inquietação que se opõe à massificação do CGI no cinema de estúdio americano hoje, e que conecta obras aparentemente tão distantes quanto Caminho para o Nada, de Monte Hellman, Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami, Filme Socialismo, de Jean-Luc Godard, Holy Motors, de Leos Carax. São filmes que disparam um sentimento de mundo – um incômodo com o presente e um entusiasmo com o futuro – que já começa a se espalhar por outros filmes, outras cinematografias.

Há uma dificuldade notável da história do cinema em cercear em palavras tudo que veio depois da eclosão dos Cinemas Novos, com a consequente rebordosa pós-Maio de 1968. Na desorientação dos personagens de Antonioni, o cinema parecia chegar a um beco sem saída que se estende aos dias de hoje, com exceções ainda um tanto localizadas. Era um princípio de uma pulverização mais clara que coincide com o home video, e que vai se espalhar de maneira ainda mais incontrolável nos dias de hoje – não à toa, um dos termos mais usados no período recente foi justamente “fluxo”. A volta ao dispositivo, neste conjunto tão desordenado de filmes – mais um sentimento geral do que uma cena, um movimento –, parece possibilitar uma concentração na reflexão histórica sobre o cinema como não se via provavelmente desde os Cinemas Novos. Não se trata, portanto, somente de um volta ao passado; mas, de fato, de uma volta à origem, no sentido pós-ontológico de Martin Heidegger, que se funda não somente na existência, mas no pensamento do homem sobre o ser.

A percepção desse sentimento já vinha aparecendo, mesmo que de forma dispersa, em diversos textos publicados na Cinética. Desta vez, pareceu-nos interessante partir dessa constatação para localizar ecos, reverberações e fontes possíveis dessa busca por concretude, por uma experiência cinematográfica que seja, a rigor, física. É a este dispositivo – não só a concretude do aparato, mas também sua ontologia: as razões primeiras de sua invenção, e o que se desejava com elas; em resumo, o que diabos a humanidade buscava quando inventou um aparato capaz de registrar imagens (e, posteriormente, sons) em movimento – que retornamos com a pauta deste mês, no esforço de trazer de volta para a discussão uma materialidade necessária que, por muito tempo, parece ter sido impropriamente deixada de fora da equação conceitual.

Esse retorno ao passado e à concretude se revela, com isso, uma tentativa de mapear o futuro em sua virtualidade. Se o cinema segue acabando e o vídeo permanece como uma continuidade desconhecida do cinema, faz-se necessário voltar à origem para saber de onde viemos, por que viemos, como chegamos até aqui, para, então, pensar como reinventar essa arte. Em “O Que é Contemporâneo”, Giorgio Agamben dá pistas desse sentimento que vemos, hoje, manifesto de maneira tão intensa no cinema. “Os historiadores da literatura e da arte sabem que entre o arcaico e o moderno há um compromisso secreto, e não tanto porque as formas mais arcaicas parecem exercitar sobre o presente um fascínio particular quanto porque a chave do moderno está escondida no imemorial e no pré-histórico. Assim, o mundo antigo no seu fim se volta, para se reencontrar, aos primórdios; a vanguarda, que se extraviou no tempo, segue o primitivo e o arcaico. É nesse sentido que se pode dizer que a via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um passado remoto, mas a tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso viver e, restando não vivido, é incessantemente relançado para a origem, sem jamais poder alcançá-la”.

Os textos reunidos nesta EM PAUTA são apenas algumas manifestações (não necessariamente do presente, uma vez que a crítica é também um esforço de genealogia, um esforço de história) dessa “ruptura em continuidade”. Ao leitor, porém, aconselhamos o ímpeto investigativo de buscá-la também onde não se nomeia, pois esse sentimento não é cerceável em um pequeno conjunto de textos ou filmes. Essa contaminação fica especialmente clara em alguns dos filmes hoje EM CARTAZ, e que têm destaque nesta nova edição: Vocês Ainda Não Viram Nada, de Alain Resnais, e Doméstica, de Gabriel Mascaro. Outro filme que demanda nossa atenção nesta nova edição é O Que se Move, longa de estréia de Caetano Gotardo, com dois textos no EM CARTAZ, e uma entrevista na EM CAMPO. No mesmo espaço, há ainda alguns destaques do último É Tudo Verdade, que também acrescentam suas linhas à mesma discussão. E na EM VISTA, é vez de a revista se permitir pulverizar seu olhar por onde ele queira repousar, seja nos filmes de Walter Hill, Giulio Questi e Stephen Dwoskin, ou na tarde de Verão que marca O Verão de Giacomo. É uma edição movida por uma vontade de busca na qual esperamos, agora, ter a companhia do leitor.