EDITORIAL – Dezembro 2013

Habitando o vazio
por Fábio Andrade

Aqui na Cinética, o trabalho crítico se divide entre o juízo crítico de uma produção em tese mais diretamente acessível ao leitor (os filmes em cartaz, os festivais de cinema e o cinema brasileiro, em geral) e a vontade de chamar atenção para filmes e diretores que nos entusiasmam, mas que não necessariamente se encontram na ordem do dia. De fato, com a pulverização dos filmes na internet, a área de contato se expandiu de maneira extraordinária, o que, por outro lado, reforçou a necessidade de mediações, de uma curadoria que busque, neste campo infinito de imagens e sons, selecionar recortes e propor encontros. Como uma revista de base cinefílica, somos movidos pela vontade de compartilhar preferências, descobertas e redescobertas, na esperança de que aquilo que nos move e nos toca também possa mover e tocar o leitor. É uma iniciativa que visa preencher algumas lacunas perceptíveis na produção crítica em língua portuguesa (e às vezes não só) e, com isso, ampliar o conhecimento de um determinado filme ou cineasta.

Neste primeiro ano de nova Cinética, entre pautas que buscavam mapear e propor questões a partir de uma percepção de certas vibrações da experiência contemporânea do cinema, nos dedicamos também ao contato mais detido com a obra de dois cineastas que nos parecem fundamentais e com os quais ainda não havíamos tido um encontro mais pausado: João Pedro Rodrigues e Kiyoshi Kurosawa. Nesta última edição do ano, ampliamos o feixe um pouco mais, com uma pauta dedicada a um cineasta ainda mais negligenciado entre os curadores e exibidores brasileiros: o norte-americano James Benning.

Embora (até onde sabemos) apenas um de seus 54 filmes tenha sido exibido oficialmente no Brasil (Rhur, como parte do É Tudo Verdade 2010), esta aproximação se faz urgente por James Benning condensar e repropor diversas questões fundamentais ao cinema contemporâneo, em uma obra vasta e inquieta que se esparrama ao longo de mais de quarenta anos. Se, por muito tempo, Benning restringiu seus filmes a exibições em 16mm (seus primeiros lançamentos em DVD surgiram apenas em 2008 e permanecem raros e esparsos), a voracidade selvagem da internet serviu como terreno fértil para a circulação desordenada e tecnicamente nada rigorosa da maior parte de sua obra. Mesmo com essa grande variação de fidelidade técnica das cópias (mais grave nos filmes feitos em 16mm), o livre escoamento de seus filmes permite verdadeiras descobertas a respeito de um cineasta tão talentoso quanto incisivo em suas proposições artísticas.

Entre as esquetes marcadas de 11×14 One Way Boogie Woogie (ambos de 1977) e a observação dialética em seu Cabin Project – que inclui um livro, um Tumblr, instalações e (por enquanto) os filmes Two Cabins (2011), Postscript (2012) e Stemple Pass (2012) -, a obra de Benning cobre um terreno extraordinariamente amplo, que congrega documentário, ficção, instalação, land art, literatura, música, pintura, matemática, pop art, fotografia, paisagismo, política, geografia, sem nunca perder seu viés marcadamente pessoal. Como, em especial nos últimos anos, o cinema brasileiro se colocou mais intensivamente nesta trincheira entre o cinema e o museu com uma uniformidade geral de procedimentos e intenções, o pragmatismo materialista de Benning encontra um lugar extremamente particular nesse nicho, flertando constantemente com o vazio para ressignificá-lo, repreenchê-lo, de dentro para fora.

Como de hábito, a dedicação mais concentrada a um determinado foco de atenção parece projetar luz ao redor e contaminar as outras seções da revista. Nesta edição, nos detemos também sobre algumas outras obras e diretores que se colocam em terreno similar entre o cinema e as galerias e que repensam, constantemente, toda uma trajetória histórica de maneira a subsumí-la. É o caso de Apichatpong Weerasethakul, que esteve recentemente no Brasil e proporcionou alguns encontros e conversas que chegam, agora, às páginas da Em Campo. É, também, o caso de algumas experiências extremas proporcionadas pelo cinema recente e que se espalham por seções variadas da revista – como o curta-metragem Walker, de Tsai Ming-liang (na Em Vista, ao lado de filmes de Patrick Deval, Aloysio Raulino e Dan Sallitt), os estudos de luz e textura que também são Um Estranho no Lago, de Guiraudie, e Bastardos, de Claire Denis, e mesmo um blockbuster monumental como Gravidade, filme-sensação de Alfonso Cuarón (Em Cartaz). Fechando a nova edição, complementamos reflexões recentes sobre a produção brasileira com alguns novos textos sobre parte dos filmes exibidos na V Semana dos Realizadores. Boa leitura.