E Agora? Lembra-me, de Joaquim Pinto (Portugal, 2013)

novembro 1, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

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História da eternidade
por Filipe Furtado

Tão logo E Agora? Lembra-me começa, Joaquim Pinto nos informa que sua vida não é das mais interessantes. As pouco mais de duas horas e meias posteriores servem para desmentir tal afirmação. Pinto foi figura muito presente em boa parte do melhor cinema português (e europeu) nas décadas de 1980 e 1990, sobretudo como técnico de som, mas também como produtor – especialmente das obras-primas de João Cesar Monteiro, Recordações da Casa Amarela (1989) e A Comédia de Deus (1995) – e cineasta ocasional, e que desapareceu no começo da década passada. Os motivos ficam claros para o espectador que o desconhecia rapidamente; Pinto é um homem doente, convive há tempos com a AIDS e a Hepatite C, até que sua saúde piora e ele decide tomar parte de um experimento médico de um ano. O filme que vemos é um diário deste ano difícil, já que à doença são somados também os pesados efeitos colaterais dos remédios (como uma amiga que passa por processo semelhante lhe diz numa carta, “destruímos nosso corpo para tentar viver um pouco mais”).

Não se trata, porém, de uma crônica de um corpo que falha como tal sinopse pode a principio sugerir, mais um filme que busca abarcar toda a vida de Joaquim, seu passado, seu futuro, seus pensamentos, etc. Se E Agora? Lembra-me se assemelha a algum filme são alguns dos diários de Jonas Mekas. A despeito da perspectiva de Pinto certamente não ser a mesma do cineasta lituano radicado nos EUA, o que vemos na maior parte do tempo é a vida de Joaquim com seu marido Nuno e seus quatro cachorros na propriedade rural que eles administram, entrecortada por pensamentos e lembranças, e suas viagens ocasionais a Madri para seguir o tratamento experimental.

E Agora? Lembra-me não foge das dificuldades pelas quais seu cineasta-protagonista passa. Pelo contrário, haverá de certo algumas sequências bastante duras e uma franqueza em reconhecer os vários limites que a doença impõe a ele. Só que o movimento do filme será sempre expansivo e jamais se permitirá se fechar na autocomiseração. E Agora? Lembra-me é, sobretudo, um filme histórico, no qual o corpo frágil de Joaquim esta ali de passagem por entre aqueles lugares e pessoas, como tantos outros antes e outros tantos que virão depois. Não se trata, portanto, de um filme sobre a proximidade da morte, a despeito de sua honestidade sempre deixar claro que ela está à espreita, mas um filme sobre a sobrevivência. Joaquim Pinto, nos lembrará, sempre, que faz parte da geração dilacerada pela AIDS a partir de meados da década de 1980, e que, se ele não está bem, antes disso enterrou muitos amigos queridos. Sua presença diante da câmera por si só é uma vitória contra o tempo. Assim como o filme igualmente nos lembra de que em breve ele voltará ao pó e não muito depois a própria doença está fadada a desaparecer, substituída por alguma outra infecção ainda mais grave. Se E Agora? Lembra-me é um filme belíssimo, isto se deve muito a este gesto histórico, a esta certeza de que se pode partir de uma vida e, das suas memórias e perspectivas, recuperar toda uma história e um processo.

O gesto maior de Joaquim Pinto já está constituído na pergunta/afirmação do título: E Agora? Lembra-me. Diante de um dilema, da incerteza da vida, segue a necessidade de uma afirmação, a crença de que o cinema pode nos ajudar a colocar uma perspectiva maior sobre as coisas. “Lembra-me” sugere que o filme age sobre Joaquim, e é fácil observar de que se trata de um filme necessário para ele, que o ato de construir estas imagens tornam o processo do tratamento muito mais suportável para o cineasta, mas a conjunção das duas frases sugere justamente como o filme se abre para todos nós, de como ele parte de uma dor particular e tenta dialogar com cada espectador. E Agora? Lembra-me é o oposto de um espetáculo egocêntrico. Não é, afinal, falsa modéstia que guia a sua afirmação inicial; o que ele quer ao opor esta pergunta/afirmação é justamente tentar dividir uma experiência com todos nós, uma experiência que só é possível por tudo que Joaquim Pinto passou e representa, mas que não se restringe a ele. É um dos filmes mais generosos que me lembro de encontrar.

Nas primeiras sequências, o cineasta revela que o parceiro não gosta da ideia do filme e não quer participar dele. Durante uma boa parte da projeção, sentimos a longa negociação para que Nuno se transforme também em parceiro de realização, para que deixe de ser somente uma presença de cena contrariada. Um flerte constante para que Nuno se assuma co-conspirador no filme culmina com uma breve, mas marcante sequência de sexo entre os dois. Estas sequências caseiras alcançam uma força de retrato muito grande, o casamento raramente exposto de forma ao mesmo tempo tão dura e amável, a entrega de Nuno (sabemos que ele abandonou sua carreira de músico de heavy metal após a piora de Joaquim) ainda mais forte dado o reconhecimento por parte do filme das dificuldades que é cuidar de um ente querido com as dificuldades de Joaquim. E Agora? Lembre-me não foge da dureza que são os dias ali: Joaquim está fraco, Rufus, seu amado cão mais velho está doente, a terra do sítio sofre com a seca e as queimadas. É uma aspereza porém contrastada com toda uma candura de relações e olhar que sugere um olhar sobre casamento dos mais afirmativos. Cinema, Joaquim Pinto parece acreditar, é algo que, como a vida, precisa se fazer junto, daí a necessidade de trazer Nuno para dentro do filme, assim como a necessidade de acolher todos os amigos vivos e mortos que a lembrança permite.

Num filme dominado por um drama particular de um homem que a principio parece ter optado por uma espécie de isolamento, é notável justamente sua abertura constante para o mundo. De tempo em tempo, sequências de Joaquim a assistir o noticiário televisivo interrompem o filme e o colapso europeu do qual ele é mais uma testemunha se revela só uma parte da grande história da qual a doença de Joaquim faz parte e na qual eles se encontram, já que os cortes da saúde espanhola, assim como sua burocracia, se tornam novos obstáculos para o seu tratamento. Entre muitas outras coisas, E Agora? Lembra-me se revela um retrato dos mais duros da indústria farmacêutica e a distância que existe entre ela e aqueles que supostamente deveria ajudar, da impossibilidade da indústria da saúde de fazer valer uma vocação humanista. Esta abertura está presente, por exemplo, em como Joaquim usa o processo para se reaproximar de sua amiga Jo, que ele não via há anos e que se torna uma das personagens centrais do filme por meia da sua correspondência.

Ao mesmo tempo, o diretor registra com paixão as coisa que adora: seus cachorros, co-protagonistas sempre muitos presentes, mas também a terra portuguesa, que chega até nós sempre com grande força, e os insetos. O prazer de E Agora? Lembra-me com a natureza é um dos seus elementos mais marcantes, sobretudo nestes momentos em que o cineasta deixa sua câmera repousar sobre insetos, estes animais cuja existência vem e passa com uma velocidade incompreensível para todos nós. Haverá um longo plano de um inseto a morrer e mais tarde outro que sugere seu renascimento, pousando sobre um cheeseburger de Joaquim (“está com fome”, o cineasta observa). E Agora? Lembra-me é um filme atento aos menores detalhes, deseja filmar até as bactérias que trazem com ela as doenças que afligem o cineasta. A doença pode lhe tomar muitas coisas, mas jamais a curiosidade de olhar.

A morte, porém, está sempre à espreita – do plano fantasmagórico do raio-X do sorriso do cineasta que toma a tela ainda em sua sequências iniciais para nos dar boas vindas, até sua imagem final de um caminhão de aves sendo levadas a um frigorifico – mas ela segue somente parte não de um lamento, não de uma tragédia, mas de um trajeto enorme que o filme busca dar conta. Com o tempo, percebemos estarmos diante de um diário desta passagem, filmado a partir de um olhar de um viajante dos mais atentos às suas possibilidades.

Há ainda o registro de uma luta. Luta para viver, luta para filmar, com o tempo elas se misturam. E Agora? Lembra-me é um filme que faz dois movimentos distintos, mas complementares: registra um desaparecimento, mas no processo faz também um resgate. Está ali todo um mundo que sumiu, não por acidente, exceto por uma referencia a Loin (2001) de André Techine ser o último trabalho de set de Pinto, todos os cineastas que ele menciona (João Cesar Monteiro, Raul Ruiz, Werner Schroeter, Robert Kramer, Derek Jarman) já se foram. São todos retomados, assim como diversos amigos mortos, no ato de Pinto de compartilhar suas memórias conosco. Se um mundo some, Pinto parece nos dizer, é necessário este outro esforço de retomá-lo e torná-lo cinema. É preciso, afinal, extrair algum sentido dele, e não há tarefa para a qual o cinema seja mais adequado.

Esta ideia de que filmar é necessário ganha força à medida em que o filme se desenvolve e inclusive permite vermos os esforços de Joaquim e Nuno de realizarem um segundo longa ficcional (que deve ser lançado ainda este ano, no Festival de Roma). O filme e a vida aos poucos se tornam uma só, não por algum voyeurismo, mas porque o esforço necessário para eles, o desejo de se engajar com um material concreto, é o mesmo. Diante de E Agora? Lembra-me, um texto ou uma visita parecem insuficientes, pois o filme parece abraçar mais do que seus 164 minutos; olha para trás e adiante, existe numa passagem da eternidade sempre móvel e sempre disposta a permitir novas entradas, novos caminhos nos quais podemos nos perder.

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