Doméstica, de Gabriel Mascaro (Brasil, 2012)

maio 16, 2013 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Victor Guimarães

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Políticas do antecampo
por Victor Guimarães

A aliança entre o desejo manifesto de problematizar as relações de classe no Brasil contemporâneo e a invenção de táticas de aproximação anticonvencionais aos sujeitos filmados tem se tornado uma presença constante no cinema de Gabriel Mascaro desde seu segundo longa, Um Lugar ao Sol (2009). Assumindo diferentes modalidades e produzindo resultados muito diversos, esse duplo gesto – partilhado por filmes como Pacific (2010) e Câmara Escura, de Marcelo Pedroso (2012) – atinge uma impressionante radicalidade em Doméstica. Nos três planos que antecedem o aparecimento do título, somos apresentados a uma das mais ousadas estratégias de construção fílmica de que se tem notícia no cinema recente: um pequeno conjunto de adolescentes brasileiros – serão sete, ao longo da projeção – recebera, junto com uma câmera, a encomenda de realizar um documentário sobre as empregadas domésticas de suas famílias. Tudo o que vemos na tela são essas imagens, montadas em uma dramaturgia fascinante (cuja força já foi abordada por Fábio Andrade, aqui na revista).

A imagem que sucede o título é a de uma casa grande, branca, com um jardim vistoso a rodeá-la. Na banda sonora, ouvimos um locutor radiofônico: “Era uma vez uma ilha, em que moravam o amor, a alegria e outros sentimentos”. Um corte nos transporta diretamente para o interior da casa: Vanuza passa roupa enquanto ouve mais uma mensagem matinal no rádio. O gesto da montagem é eloquente: Doméstica quer penetrar o interior da ilha, adentrar os lares em que o amor e a alegria se misturam às relações de trabalho opressivas, os afetos aos poderes, a dominação velada à resistência possível. O “dispositivo de infiltração” (como nomeou Mariana Souto, em ensaio publicado na revista Devires) engendrado pelo filme é a porta de entrada para o cotidiano e a as angústias dessas sete personagens, que conheceremos uma a uma.

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Um dispositivo é também uma ilha, cercada de limites por todos os lados. Mas é só a partir dessa circunscrição precisa e calculada – partiremos dessas relações, dessas imagens, desses olhares, e nunca os abandonaremos – que o filme pode descobrir suas imprevisíveis bifurcações. A estrutura panorâmica de Um Lugar ao Sol cede lugar a uma montagem que opta pela constituição de blocos dramáticos centrados em cada uma das casas. Embora as histórias mantenham sua autonomia, a montagem tece relações subterrâneas entre uma e outra: as cenas do trabalho cotidiano, as interações entre patrões e empregados, os relatos das agruras da vida dentro e fora dali perpassam todo o filme, e adensam pacientemente as questões e os sentidos.

Nessa estrutura proliferante, que faz das relações entre quem filma e quem é filmado o foco central de nossa atenção, um traço escritural nos salta aos olhos: as múltiplas e intensas variações do antecampo como figura estética e política. Se as histórias dessas vidas nos tocam profundamente, isso não se deve apenas ao conteúdo narrativo colocado em cena. Doméstica é um filme que faz da atenção ao ponto de vista não somente uma questão incontornável para o crítico, mas uma condição da experiência do espectador. Cada plano do filme desafia aquilo que Jacques Aumont, em “O Olho Interminável”, chamou de uma “clivagem radical” – onipresente no cinema clássico, ainda majoritária em nossos dias – entre o espaço do drama (constituído pelo jogo entre o campo e o fora-de-campo e por tudo aquilo que pertence à cena visada pela câmera) e o espaço da enunciação (materializado pelo antecampo). A pergunta sobre quem detém a câmera, como filma, que forças habitam o quadro e suas bordas não é um detalhe da fruição, mas um vetor que nos instala na cena e nos toma de assalto a todo momento.

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Por força do rigor do dispositivo – mas também da potência da montagem –, tudo o que vemos na tela é permanentemente impregnado por um gesto que sabemos não ser o do cineasta, mas de alguém inteiramente inserido naquelas relações. O olhar daquele que filma estará sempre em questão, assim como as negociações para que haja filme. No quartinho de Vanuza, o filho dos patrões filma as mãos da empregada, no momento em que ela encontra uma fotografia que retrata um bolo de aniversário. “Lembra? Meu bolo!”, ela se dirige ao antecampo. Mas logo corrige, ainda incerta sobre o pronome possessivo adequado à situação: “meu bolo, seu bolo, né, Claudomiro Neto?”. Invisível na imagem, mas intensamente presente na cena, o adolescente se apressa em interrompê-la: “é, meu bolo que foi feito por ti”. Nos gestos mínimos, nos pequenos atos de fala trocados entre os dois lados da câmera, os afetos transbordam, os poderes vazam: o personagem que ocupa a cena solicita tanto nossa atenção quanto quem se coloca a filmar.

Esse modo de atenção impõe, à primeira vista, um distanciamento brechtiano: como, desde o início, as evidências das relações entre quem ocupa o centro da imagem e quem permanece nos “bastidores” nos são constantemente sugeridas, a operação do filme nos exige que vejamos cada plano com um olho na cena e outro em sua construção. É assim que acompanharemos a expropriação do corpo e da fala de Lena, personagem sempre relegada ao fundo do quadro ou ao fora de campo; é assim que perceberemos como Sérgio se recusará permanentemente a dizer aquilo que se espera dele, até o momento em que se retira da comemoração natalina para comer sozinho na garagem. No jogo para qual o filme nos convida, os vestígios da interação se depositam na imagem e se tornam matéria sensível: continuando um gesto já presente em Pacific, Doméstica se afirma como uma sorte de ensaio etnográfico em torno dos olhares, reconhecendo em cada gesto de mise en scène uma maneira de encarar o outro, de tomar posição diante do mundo e de si mesmo.

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No entanto, esse recuo fundamental não impede que nos projetemos de corpo inteiro naquelas vidas (as vidas que se expõem diante da câmera, mas também as vidas que se aninham atrás dela). Trata-se da solicitação de uma outra postura, da construção de um outro lugar para a deriva do espectador. Quando Alana se agacha para filmar Gracinha limpando a poeira depositada debaixo do sofá, ou quando a mesma personagem decide ficar acordada até tarde para espionar a empregada em seus hábitos noturnos, quem filma e quem é filmado adquirem o mesmo estatuto dramático. Campo e antecampo não são dois mundos apartados, mas lugares permeáveis, em profunda conexão e intercâmbio constante.

Em um dos ápices dramáticos do filme (que recebemos sob a forma de um sobressalto desconcertante), estamos dentro do carro dirigido por Vanuza, que conduz os filhos da patroa até a escola. Até então, quem habitava o antecampo era Claudomiro Neto, o adolescente responsável por filmá-la. No momento de se despedir e deixar o carro, no entanto, percebemos que Neto entrega gentilmente a câmera para a empregada, não sem antes repreendê-la por algum manuseio incorreto dos botões do aparelho. Por breves instantes, é ela que passa a ocupar o espaço de quem filma, dirigindo seu olhar para os adolescentes que saem. Essa inversão poderosa, contudo, só atinge sua máxima potência quando ocorre uma nova e decisiva troca de ponto de vista, que abala a estrutura que o filme constituía até então.

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Pacientemente ajeitada no painel do carro, já liberta da mão, a câmera agora se dirige àquela que, momentos antes, era observada pelos outros. Sozinha, longe dos patrões, como se diante de um espelho, Vanuza faz do enquadramento o receptáculo de uma performance inesperada: dirigindo – o automóvel e a cena – acompanhada pela canção de Reginaldo Rossi, ela cantarola a letra (“se o amor não presta e faz você tão infeliz/é bom cortar depressa o mal pela raiz/é bom tomar cuidado, não se machucar”) e chora copiosamente, inscrevendo em cada verso entoado um abismo incalculável de desilusões amorosas. “Mas eu me machuquei”, ela responde, conectando a fórmula romântica à experiência singular, inaugurando uma interlocução múltipla e improvável que envolve o cantor, a ouvinte, o amor distante… e, claro, o espectador. Quando Vanuza filma a si mesma, quando a tomada de palavra coincide com a tomada do poder de filmar, é a cena da política que se fratura e se reorganiza junto com a cena do cinema.

Já perto do final, nas interações dilaceradas entre Luiz Felipe e Lucimar, uma nova variação perpassa o antecampo e desafia nossas crenças sobre aquele universo. Ainda no início do bloco, novamente liberta da mão, a câmera capta o momento em que o adolescente se dirige à empregada, pedindo-lhe que autorize a realização do documentário: as posições de documentarista e de patrão se confundem no aceite previsível e incômodo; a cena do desencontro se expõe. No entanto, no decorrer das sequências compostas pela montagem, perceberemos que aquela figura aparentemente autoritária que se instalara no antecampo vai ganhando outras nuances, cada vez mais interessada em investigar as complexas relações afetivas vigentes na casa: ora confrontando-se à mãe, ora instigando uma postura crítica nas conversas com Lucimar, o adolescente tenta desvendar o intrigante mistério dessas amigas de infância que se tornaram patroa e empregada. Embora as respostas de ambas sejam evasivas e apaziguadoras, o incômodo gerado pela instigação vinda de quem filma se deposita com força nas imagens.

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De forma ainda mais potente, nos planos observacionais (em que a interação se faz menos presente), o antecampo se afirma em uma mise en scène altamente provocativa. Em um plano na sala de estar, o enquadramento é amplo o bastante para materializar – com um impressionante poder de síntese – a divisão do sensível que impera naqueles lares: do lado esquerdo do quadro, a mãe e a filha saem pela porta principal, a caminho da rua; do lado direito, a porta da cozinha, por onde entrevemos Lucimar em sua rotina cotidiana. Os espaços, os tempos, as ocupações e os trânsitos possíveis de patrões e empregados configuram mundos à parte, que a cena do cinema – por força da operação do registro, mas também da montagem – problematiza e desloca, diante de nossos olhos. Em um derradeiro movimento de câmera, toda a complexidade das relações entre os olhares se reacende e nos desconcerta uma vez mais: ao som de “Blowing in the Wind”, o enquadramento percorre de cima a baixo um conjunto de imagens fixas, movendo-se dos ingressos para os shows de artistas internacionais expostos em um painel na parede – índices da pujança econômica dos donos da casa – até a emblemática fotografia que retrata a empregada e a patroa, ainda crianças, mas já tão próximas e tão inescapavelmente distantes. Entre a pergunta de Luiz Felipe (“Você acredita que você tem liberdade”?) e a resposta positiva de Lucimar (a essa altura, absolutamente inverossímil) que encerram o filme, os versos da velha canção de Dylan parecem ainda ressoar: “How many years can some people exist / Before they’re allowed to be free?”.

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No momento em que constitui um espaço fundamental de investimento da sensibilidade do espectador – em uma vastidão de figuras que se multiplicam a cada plano – o antecampo adquire uma forma mutante, fazendo de um filme que lança um olhar belo e necessário sobre a realidade brasileira um território igualmente fecundo para a descoberta de outros poderes da experiência do cinema. Interpelado pelas domésticas que se dirigem aos jovens que filmam, exposto quando os adolescentes filmam a si mesmos, colocado em questão em cada imagem, esse espaço tão importante para a teoria da fotografia e tão desprezado pelo pensamento sobre a arte cinematográfica se torna um lugar político por excelência. A ferida no coração do documentário brasileiro aberta por Aloysio Raulino e Deutrudes Carlos da Rocha em Jardim Nova Bahia encontra nas relações entre os olhares dos personagens de Doméstica – patrões e empregados; quem observa e quem é observado; quem pergunta e quem responde (ou se recusa bravamente a responder) – não a cicatrização apaziguadora de um fim de linha, mas uma nova chaga exposta, que não cessa de sangrar. Quando campo e antecampo constituem um inesgotável espaço dramático, no qual os afetos ultrapassam os limites do quadro e os poderes se tornam afecção, é o corpo do espectador que já não pode mais ser o mesmo.

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