Dois Casamentos, de Luiz Rosemberg Filho (Brasil, 2014)

setembro 18, 2015 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

doisAs cicatrizes do texto
por Luiz Soares Junior

“Pela escuta, (…) pela sua maternidade, que se constitui em um engendramento do Outro através de si, por seu discernimento lúcido em relação a saber qual filho será o mais apto a receber a bênção paterna ( Isaac e não Ismäel, Jacob  e não Esaú), estas matriarcas reafirmam o sentido da eleição do povo: um arrancar-se ao mundo da naturalidade; uma ruptura do ser em sua simples complacência para consigo mesmo, mas também em sua vocação à responsabilidade para com o Outro- exatamente o oposto de uma idéia que consistiria em uma sobrecarga de privilégios e de direitos que legitimariam uma simples situação de fato. (…) A mulher seria portanto este intermediário privilegiado da reconciliação entre os irmãos , entre o eleito e aquele que não o foi, desta ligação entre eleição e universalidade”.

Catherine Chalier, As matriarcas: Sara, Rebeca, Raquel e Lia

“Senhor, guarda-me das mãos do ímpio; preserva-me do homem violento, daqueles que tramam minha queda. (…) Os arrogantes prepararam armadilhas contra mim, estenderam redes; no meu caminho, armaram emboscadas para me atacar”.

Salmos  140, 5-6

Segundo a fórmula já consagrada de René Girard, o romanesco surge da experiência mortificante do Desejo como um inapreensível pretérito perfeito, presente unicamente através da vivência enlutada do significante, invólucro de rememoração e indagação filosófica: aqui jaz. A lógica do significante como “bode expiatório” simbólico da presença preside a estes concursos fúnebres entre a palavra e a experiência. “A verdade do Desejo é a morte, pois todos os heróis romanescos acabam por se converter na morte, ao renunciar ao desejo metafísico. (…) O herói renega, a cada vez, a quimera que lhe inspirava seu orgulho”. Esta “renúncia ao desejo metafísico” se reflete na forma como o herói passa a ser o porta-vez assumido da experiência, e não mais o seu “objeto”; o herói se diz enquanto tal: o picaresco Quixote, Julien Sorel, Tristam Shandy, Frédéric Moreau, e finalmente a culminação desta operação no menino Marcel da Recherche proustiana: o herói é o espaço-tempo de uma enunciação, e não mais de uma experiência. Tudo aquilo que chega à narrativa (da qual ele é o lugar da enunciação significativa, ou seja: para-si) se encontra entregue à devastada cena do exílio, aos despojos da invasão. A palavra mata a coisa, revela Heidegger, e isto porque quando falamos já não estamos “lá”: este é o processo descrito pelo herói romântico; é uma desencarnação contida na substituição da vivência pela Idéia da vivência.

É assim que Dois Casamentos, de Luiz Rosemberg Filho, começa, na praça de guerra abandonada: luzem na obscuridade do fundo do plano, os vestígios (preciosistas embora, em seu esmero de chiaroscuro, sua burilação pela luz e pela treva) de uma cena desocupada pelo coro, desolada pela ausência do Divino e pela carícia de sua Alteridade. Restam-nos os artefatos (jóias; um corpete justo; sapatos) e os manequins encarregados de re-apresentá-los: a burguesa Carminha (Patrícia Niedermeier) é a incumbida de contar esta história (para Jandira, Ana Abbott, a moça do interior), suscitar um pathos morto, encarnar uma enunciação ferida de morte por um excesso de auto-consciência, de que o filme assume as cicatrizes até a luxuriosa exaustão. Mas tudo faz parte deste jogo – moderno, demasiado moderno – a que já podemos nos subtrair: Dois Casamentos não recua diante de nenhum jogo retórico ou refração luminosa propriamente cinematográficos, porque a única forma de encarnar verdadeiramente um texto e uma mise en scène teatrais é violá-los pelo luxuoso arsenal retórico do cinema. Travellings circulares, closes que recortam o espaço a contrapelo do corpo, fondus au noir que alquebram o devir do plano: qual o preço a ser pago para exprimir as anfractuosidades de uma consciência que, num duelo coreográfico preciso entre a luz e os corpos, tenta apoderar-se de Outra?

O cinema pode permitir-se tudo, pois possui, ao contrário do teatro, meios técnicos superiores para permitir-se tudo. Em Petra Von Kant (o filme, 1972), Fassbinder designa com contundência de golpe (não mais apenas de “cena”, mas de embate físico) o olhar de Marlene, a criada de Petra, aquela a quem tudo é dado a ver e, se possível, julgar: se, no teatro (o filme é antes de tudo uma peça, de autoria do próprio Fassbinder), o olhar “plástico” mas exterior da criada é dirigido pela iluminação, no cinema temos a possibilidade, experimentada pela câmera, de tornar maleável e cambiante esta plasticidade, presente sob diversos prismas; o olhar se encarna em um zoom, um travelling lateral. Experiência semelhante temos em Dois Casamentos: a teatralidade do texto e das rubricas é recortada, em sua evidência trágica (fatal, hic et nunc), pela lente da câmera, aqui esposando um repertório de meios usados para possibilitar que o texto e a performance do ator sejam apropriados por uma hermenêutica propriamente de cinema, na qual o espaço do corpo é possuído pelo espaço (do corpo) do plano.

Mas esta apropriação se ampara, por sua vez, em uma desapropriação (ou usurpação) de um corpo por outro, de um afeto por uma palavra implacável, da consciência que sofre o mundo (a mocinha do interior) por uma consciência que sabe/conhece o mundo; e portanto, “já não tem ilusões”, etc: Carminha, Jandira. O filme é este “balanço” entre expectações e leituras distintas (do mesmo espaço de um mundo que se refrata em dois: duas classes, dois corpus de vivência). Uma mise en abîme particular se engendra aqui: a usurpação do texto teatral pela retórica cinematográfica, e a usurpação da inocência de Jandira pelo discurso loquaz de Carminha (que sabe que tudo é discurso, que não há nada senão discursos onde se refletem relações de poder e de saber. E saber é poder). Se, no exemplo dado no início deste texto, Carminha, a burguesa, representa o herói romântico no que ele tem de desconsoladamente moderno – aquele que se sabe sujeito de um Logos, e tem por dever enunciá-lo em uma mortificante trama de experiências exemplares, típicas de uma trajetória que encaminha o em si ao para-si -, Jandira é aquela que ainda “crê”, afaga esta crença como se a um fruto dadivoso, e interpreta a perda deste fruto em termos de uma cruel alienação de seu próprio ser; Carminha, a perversa, aprofunda a cada ato a punhalada, pois também não pode crer que existam pessoas como Jandira; já não pode crer, e a exuberância formal do filme vai consistir justamente em tornar possível o pacto da crença de que só a imagem pode ser devedora: Jandira crê, e muito, Carminha não crê em mais nada; um filme é a clareira violenta onde a imagem terá de sofrer a violação da linguagem (aprender a significar, e isto exige o aprendizado de uma retórica, um modus operandi), e a linguagem terá de regredir ao balbucio tatibitati da fascinação imagética primeira, e nos extasiar: “O visível se tornou pobre, vazio”, confessa-nos a desconsolada e maquiavélica Carminha; é preciso voltar a encantá-lo, e isto não se faz sem esforço (sem mediação, mais-valia, linguagem). Mas prossigamos.

dois 1

Esta violação de uma sensibilidade por uma consciência implacável, este jogo tamisado de reflexos, este duelo agonístico entre consciências, só nos pode sugerir uma arena de morte: senhor, escravo, escravo-senhor, já sabemos o arché e o Telos deste embate. É uma arena do Feminino, mas isto não deve ser entendido no sentido literal de uma precedência da estesis (sensibilidade) sobre o Logos, ou de um tema tratado de forma amaneirada, supondo-se aqui que o amaneiramento deva se opor ao rigor. Um olhar, um discurso, uma re-apresentação feminina deve levar em conta o que a história do cinema nos legou de propriamente feminino – uma experiência de indefinível perturbação fenomenológica, onde as coordenadas do drama, as vozes enunciativas e o corpo da percepção sofrem revezes definitivos e definidores (jamais serão os mesmos, jamais seremos nós mesmos). Dos primeiros filmes de Dwoskin ao Deserto Vermelho (1964) de Antonioni, da Gertrud (1964) de Dreyer a Persona (1966) e Gritos e Sussurros (1972) de Bergman, dos Hiroshima Mon Amour (1959) e Marienbad (1961) e Muriel (1963) de Resnais ao Contos da Lua Vaga (1953) e Imperatriz Yang kuei Fei (1955) de Mizoguchi, o Feminino consiste na abertura de uma clareira traumática, a partir da qual a percepção e a cognição sofrerão a  inflexão de tempos, discursos, vozes, vidências outras: o fantasma assume o comando, os estados intermediários e alterados dominam a cena, as perspectivas se refratam; tudo é devaneio ou digressão, tudo estremece e ameaça ruir, pois o Feminino problematiza e difrata o Grund (o fundamento), lenta e causalmente construído pelo Masculino para afirmar e estribar o seu Poder sobre o Mundo (com a conseqüente elisão do Outro, sua manipulação e redução a ob-jecto, aquilo que se opõe/põe diante de minha consciência, etc): Ab-grund. A figuração problematiza-se (demistifica-se? revela sua origem espectral, o possível imanente à atual aparência), o tempo substitui-se ao espaço, tudo se rasura e cinde; tudo volta a zero, tudo deve recomeçar (et um copu de dés jamais…). Se a nomeação (Nome) é o meio através do qual o Masculino se elabora (fixação da coisa como objeto), o Feminino é o lugar do Verbo: ambivalência, polivalência pronominal, possível substituído ao presente da ação; a Sonambula de Donizetti é a personagem arquetípica deste estado limítrofe (da percepção, cognição, ação) a que o Feminino conduz (ou des-vela?). À semelhança da história do véu de Maia, não se trata exatamente de reinventar o Real (entendido aqui inclusive como o Fantasma in-significante lacaniano), mas de revelar o Real enquanto tal: absurdo, alusivo, inapreensível em seu mistero.

Aquilo que a palavra, privilégio acordado ao Logos masculino ao longo da história do Ocidente, retém e cicatriza, o Feminino suspende e rarefaz: a palavra poética (poiésis) é o seu dom. Se o Nome encerra (contém) a Significação, o Feminino eterniza a promessa: ontologia versus Hermenêutica. A palavra de Carminha é a princípio o lugar de um exercício essencialmente masculino, em que o Outro é o suporte objetal (objetivo, objetificante) de uma afirmação centuplicada de Si-mesmo; mas fatal e incisivamente esta palavra voraz é silenciada por uma voracidade anterior, que o filme encarna propriamente com seu tantálico desfile de suspensões (os “buracos negros” entre os planos) e inervações metafóricas: Dois Casamentos conta-nos a história deste estado de paixão (de passividade ontológica) frente à fragilidade de Jandira a que a personagem Carminha sucumbe; a sua lucidez in extremis revela-se o efeito de um masoquismo existencial (uma força advinda da fraqueza, uma palavra da ferida narcísica), de que o contato com a Outra é o revelateur: afinal, estamos diante de um duelo hegeliano de consciências; o escravo é o reverso do senhor, a caça do caçador… em uma pungente e fulgurante sequência final, pela excelência com que alia a inclemência da metáfora com a pujança da coisa, a escritura de que a personagem fora até então a porta-voz acaba por se encarnar no corpo de Jandira, e nesta troca o filme se consuma: Eu, tu… como no caso do poteiro Genjûrô, de Contos da Lua Vaga, o corpo é o mausoléu sobre o qual o fantasma inscreve seu legado último, e a subjetividade, enfim arrematada e arrebatada pela ruína do Si-mesmo, se encontra renovada por este sopro de Morte, como no verso da Divina Comédia: “como de plantas novas, renovadas por novas folhas”.

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