Dívida de Honra (The Homesman) de Tommy Lee Jones (EUA, 2014)

agosto 12, 2015 em Em Cartaz, Marcelo Miranda

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Em busca de um lugar comum
Marcelo Miranda 

“Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam. (…) A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto, de pressentimento muito antigo – um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.”

 Sorôco, sua mãe, sua filha, Guimarães Rosa

O que está contido no olhar de Tommy Lee Jones? Em Dívida de Honra (The Homesman, 2014), a questão tem duplo sentido. Olhar do corpo, pois em cena está o ator, veterano de quase 70 anos, persona imediatamente identificável e ainda exalando frescor inesperado, dentro do qual se acumulam mistérios indecifráveis a cada vinco no rosto e a cada meio sorriso irônico. Olhar da câmera, pois Lee Jones é também diretor, idealizador de todo um projeto de (re)construção do tempo mais voltado a propósitos íntimos (e intimistas) do que a representar com correção determinado período histórico.

A obra de Lee Jones como realizador é pequena e espaçada: são quatro longas-metragens em 20 anos, sendo dois para TV e dois para cinema. O aspecto bissexto intriga na mesma medida em que abre um leque infinito de possibilidades e especulações sobre que tipo de interesses move um ator de trajetória respeitada e bem-sucedida a eventualmente acumular a função e ele mesmo comandar uma produção tão de vez em quando. Instiga ainda a evidência de que todos os filmes assinados por Lee Jones se dedicam a olhar para um fora, para um além do visível nem sempre ao alcance do enquadramento, um olhar muitas vezes voltado a pensamentos e fantasias dos personagens, que os explicitam pelas palavras e também por imagens que os filmes convocam a partir da fala e do devaneio.

Não deve ser por acaso que três dos quatro longas assinados por Lee Jones dialoguem diretamente com a tradição do western: mais que “o gênero americano por excelência” (expressão de André Bazin hoje tornada clichê), de fato um gênero do movimento e da jornada indefinida por naturezas muitas vezes ainda a serem descobertas (a serem vistas) pela primeira vez – naturezas físicas tanto quanto interiores, menos próximas da busca consciente do que de uma ascese encontrada inadvertidamente pelo caminho. São também filmes nos quais Tommy Lee Jones assume a si mesmo como o branco anglo-saxão texano em contato com o distinto, o distante, o “outro” que, pela força das circunstâncias, aparece diante dele. Em Três Enterros (Three Burials of Melquiades Estrada, 2005), Lee Jones é o vaqueiro cujo melhor amigo, um mexicano ilegalmente imigrado, é assassinado, num engano patético, por um guarda da fronteira. O filme existe a partir de um olhar de fora (do diretor e também do personagem) e é conduzido na ânsia por justiça à memória do mexicano. A jornada, portanto, será a de capturar o responsável pelo ato e forçá-lo como companhia a encontrar o paraíso onde enterrar o corpo do amigo. A explícita necessidade em tornar o mexicano uma figura visível enquanto memória e individualidade está colocada desde o título original do filme, que o nomeia abertamente (Melquiades Estrada).

No caso de Dívida de Honra, a estrutura de road movie serve ao deslocamento sem ambição de atingir um aprendizado (o mais habitual em filmes que têm a viagem de mote). A alteridade colocada diante de George Briggs (Lee Jones) só existe enquanto ausência, enquanto fora de campo, muito mais como necessidade de convivência. Eis um dos artifícios mais contundentes do cinema de Tommy Lee Jones: o contato com o “diferente” não transforma radicalmente o personagem, mas o faz se mexer de outra maneira, compele-o a um movimento distinto do habitual e provoca a fissura ali onde ela não parecia ameaçar acontecer. Da ruptura pode surgir alguma coisa (dentro ou fora do mundo dos personagens), sem que os filmes se sintam compromissados a apontar o quê.

Aqui, de novo há Tommy Lee Jones dirigindo a si mesmo, desta vez numa inversão de papéis: ele é quem agora é forçado a ser a companhia. Se em Três Enterros a alteridade vinha em relação ao imigrante latino-americano, colocado em contraponto à suposta brutalidade centralista do macho texano, no novo filme a relação surge inicialmente na tensão de gênero entre o ex-soldado foragido da guerra e as quatro mulheres com quem ele deve conviver. Uma delas, Mary Bee Cuddy (Hilary Swank), transporta um vagão de madeira onde leva as três outras a um sanatório do outro lado do país. Trata-se, grosso modo, de um filme sobre homens e mulheres, ou sobre como o mundo intrinsecamente bruto vinculado ao masculino se relaciona ao mundo embrutecido da vivência feminina naquele ambiente e espaço.

O filme tem no subtexto a ideia de que, para o homem, a brutalidade vem sempre de fora (do Exército, de criminosos, de indígenas, de posseiros), enquanto, para a mulher, a violência começa por irromper dentro de casa, na base da vivência, na intimidade do casamento ou no olhar condenatório àquela que pede só um pouco de afeto. Na conjuntura, tenta-se, então, extirpar as mulheres que não mais servem à função estabelecida. Elas então “enlouquecem”, explodindo, através de espasmos excessivos, contra a imposição de um modo de agir cuja conveniência sequer lhes foi consultada. Sob o aspecto de reação feminina pelo descontrole do corpo e da mente, Dívida de Honra surge como um surpreendente filme político. Tal como Clint Eastwood, Lee Jones arquiteta, dentro da engrenagem de um classicismo técnico e narrativo presente no melhor que o cinema americano pode oferecer, um discurso moderno e provocativo que faz tremer e questionar as bases da tradição.

A palavra “discurso” é empregada aqui apenas como referencial. Dívida de Honra não é exatamente um filme de discurso. Mary é a condutora do vagão e a salvadora de George  quando ele, à beira do enforcamento, é visto por ela. A primeira pergunta dele, “você é um anjo?”, carrega um sentido de espiritualidade tornado concreto no filme por planos abertos, nos quais o céu é generosamente mostrado no quadro como integrante da vida diária. A crença religiosa tem um significante direto da natureza, que emoldura a fé essencial dos personagens. Sem discurso, compreende-se o terreno íntimo por onde o filme quer caminhar.

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Apesar de trabalhar na própria fazenda e ser independente num universo em que a mulher é vista como acessório do homem, Mary, mesmo em ambientes abertos na imensidão dos campos do Nebraska, é enclausurada em seus sentimentos. O fechamento para dentro de si surge na imagem, em reenquadros que sempre põem Mary emparedada, nunca voltada para fora, como se a ela restasse somente voltar para o interior, pois o exterior não lhe acolhe exceto sob a via do trabalho. Ao mesmo tempo em que explicitam um sentimento, esses planos também provocam, pelos quadros diegéticos dentro do quadro-limite da tela do cinema, um certo distanciamento da personagem: Mary nunca é totalmente revelada (nem psicologizada) pelos desdobramentos narrativos de Dívida de Honra; vê-la cercada por molduras colocadas no espaço a mantém lá onde ela não se dá a ver para além da superfície.

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É apenas quando Mary decide se movimentar para fora do espaço onde vive que o filme a liberta das molduras. Quando ela vai buscar a primeira das moças enlouquecidas, o enquadramento se divide entre ambas, com Mary posicionada frente à porta para dar início à missão que a levará a olhar para fora e para frente. Dali adiante, as molduras desaparecem, e Mary está por conta própria. O filme não mais se responsabiliza por ela, não consegue mais contê-la nem definir esteticamente as suas escolhas.

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A tragédia de Dívida de Honra será que a conquista de Mary em se mover pelo mundo vai fracassar justamente na questão da fé. Ela não consegue vencer as limitações que, de alguma forma, a mantém presa aos princípios da comunidade de onde saiu. Tendo salvado George da forca, ela mesma se enforcará, num oportuno simbolismo cristão do sacrifício da carne em nome da salvação do espírito. Resta a George – o homem misterioso e nunca realmente nomeado (numa sutileza exemplar do filme, “George Briggs” parece um nome claramente inventado de improviso) – concluir a missão e enfim ele mesmo se ver liberto. A libertação, porém, é apenas de fachada, não tem funcionalidade nem redenção. “A característica mais íntima da salvação: que sejamos salvos apenas no ponto em que não queremos mais sê-lo. Por isso, nesse ponto, há salvação – mas não para nós”, nas palavras de Giorgio Agamben. O personagem de Lee Jones constata o vazio de um mundo em constante alteração, um mundo onde não cabem mais nem ele nem Mary, mas com o qual ainda é preciso se confrontar, nem que seja para fazer jus ao desafio de simplesmente existir.

Eis a ascese (não gloriosa) do personagem: a confirmação da existência diante do desaparecimento do outro. Na tentativa de materializar essa percepção, George manda fazer uma lápide com o nome de Mary, na ação de trazer à visibilidade o corpo que se foi (como é todo o conceito de Três Enterros). Num acesso de bebedeira, porém, não percebe que a placa de madeira é lançada às águas, à indefinição do fluxo aquático que forma uma “realidade poética completa” (expressão de Gaston Bachelard). A dança antes feita ao redor do fogo é repetida agora sobre a água, no barquinho que leva George para o vazio, para o escuro da noite, para algum além onde o filme não dá mais conta de captar. O George Briggs encarnado pelo rosto e corpo de Tommy Lee Jones está, daqui adiante, também ele, por conta própria.

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