De Volta ao Jogo (John Wick), de Chad Stahelski e David Leitch (EUA, 2014)

março 1, 2015 em Em Cartaz, Filipe Furtado

devoltaaojogo

Instinto animal
por Filipe Furtado

O filme de ação funciona frequentemente de maneira a liberar um sentimento primário nos seus personagens e espectador. Não surpreende que uma das técnicas favoritas dos realizadores adeptos do gênero seja a de conter o tom até o momento em que lhe é permitido explodir. Nas mãos de estetas como Chang Cheh, trata-se de um cinema que por vezes levanta a pergunta: como produzir a beleza a partir de tamanha feiura? A força expressiva da coreografia existe em contraste com a grossura do impacto dos golpes e/ou tiros desferidos. De Volta ao Jogo é um dos filmes de ação mais interessantes dos últimos anos, muito por colocar em primeiro plano esses elementos essenciais ao gênero. É um filme de ação cujo primeiro passo para existir é reconhecer a necessidade da quebra do contrato social num meio de homens violentos (no caso, os assassinos profissionais e os gangsteres que os contratam).

O filme tem três autores: o astro Keanu Reeves, o diretor creditado Chad Stahelski e o produtor David Leitch (que aparentemente co-dirigiu o filme, mas não pode receber credito por imposição do sindicato dos diretores americano). Stahelski e Leitch são dublês com longas carreiras na área (Stahelski é o duble principal de Reeves desde Caçadores de Emoção em 1991) e ocasionalmente diretores de segunda unidade. Reeves é o raro ator hollywoodiano cuja presença constante em filmes de ação levou a um interesse real em artes marciais, que culminou na sua estreia na direção em 2013 numa produção chinesa muito interessante chamada O Homem de Tai Chi, notável pela sua contenção e pela precisão com que filmava os movimentos de seus atores (Stahelski serviu como coreógrafo no filme). São, portanto, homens de ação, com foco nas possibilidades expressivas da coreografia e uma preferência por filmá-la de forma clara e direta no lugar da montagem intensificada que tende a dar o tom nas produções americanas. São também homens de artes marciais que tendem a enxergar a violência inerente ao gênero com misto de distância e fascínio. Muito por consequência disso, De Volta ao Jogo é um dos mais bem imaginados filmes de ação dos últimos anos, capaz de produzir momentos de rara beleza, mas também um filme selvagem que procura descrever um universo mergulhado na completa selvageria.

A premissa do filme é tão simples que beira o risível: o filho de um chefão da máfia mata o cachorro do pistoleiro aposentado vivido por Reeves que, a partir daí, não descansará até matar cada um no caminho da sua vingança. O cão fora presente da esposa já morta e a forma como o filme o investe de valor acima de qualquer personagem humano com o qual Reeves contracena reforça como o projeto prevê uma redução do homem ao animalesco (o que por sinal permite alguns paralelos inesperados com Adeus a Linguagem, de Godard): a esposa morta se transmuta em cão, que se transmuta num movimento destrutivo constante.  As sequências iniciais sobre a viuvez de Reeves são as piores do filme, mostrando o claro desconforto dos realizadores com uma ideia de normalidade. É só quando o cão é assassinado e Reeves pode se entregar aos seus instintos primários que De Volta ao Jogo de fato começa, e o chamado à ação típico do cinema de aventura é aqui transformado num chamado ao animalesco. É um filme sobre um mundo que gosta de se pensar civilizado com suas regras e etiquetas próprias, e que é obrigado a encarar que os desejos que o movem são animais.

O filme revela um prazer imenso na construção da sua realidade paralela, principalmente na maneira com que trabalha com a sugestão – tanto para estabelecer como o funcionamento do seu universo é intricado, como para afirmar a impressão de que existem longas histórias entre Reeves e seus parceiros de cena, a quem jamais teremos acesso por completo. De fato, o que mantém De Volta ao Jogo ancorado e suportável diante do seu mergulho na selvageria é a atenção que o filme presta aos rostos dos seus muitos coadjuvantes profissionais (Willem Dafoe, Ian McShane, John Leguizamo, Lance Redick), enquadrados sempre com o mesmo cuidado de luz que invariavelmente revela rostos resignados à violência do seu entorno, assim como empresta a sensação e experiência de sempre terem estado naquele meio.  De Volta ao Jogo é um filme bastante contemporâneo na maneira com que se entrega à automistificação – seu desejo de transformar o protagonista num bicho papão que todos conhecem e temem –, mas se separa de outros exemplares recentes justamente por se preocupar em amparar tal mistificação como uma impressão de vivência real, de que os corredores de hotel e clubes noturnos que seus personagens habitam pertencem a um universo vivido e não somente desenhado para fazer valer sua trama, como bem condiz uma história sobre gente que vive de infligir dor no outro e não sabe como funcionar de outra maneira.

Stahelski e Leitch observam a ação a partir do paradoxo do impacto da sua selvageria, com o cuidado com que a propulsão que a desencadeia seja transformada em luz e movimento. De Volta ao Jogo é um raro filme de ação contemporâneo cujos gestos de seus personagens são registrados por um olhar que os encara com a pureza de um número musical, sobretudo naquela que é a sequência chave do filme: um tiroteio numa boate cuidadosamente posicionado na metade do filme. Existem cinco espaço distintos que o filme habilmente introduz antes da ação se iniciar e que recebem um tratamento de luz e encenação diferentes, com a ação se movendo do tiroteio ao mano a mano, enquanto os adversários de Reeves vão se diversificando – cada novo local, um problema diferenciado. É um primor de arquitetura e luz, mas também de imaginação, com novos elementos e situações sendo acrescentados de maneira a que a ação se renove e encontre novas possiblidades e sentidos.

Do gesto animalesco, chega-se ao encontro da luz com o corpo e a arquitetura. O paradoxo do filme de ação se reafirma: do urro gutural do troglodita violento, o cinema extrai uma beleza de formas com poder de sedução com poucos equivalentes.

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