Chantier A, de Lucie Dèche, Karim Loualiche e Terek Sami (Argélia/França, 2013)

junho 6, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

chantiera

O exílio da desdramatização
por Fábio Andrade

Chantier A começa com o enterro de alguém que o filme não distingue ou identifica, sob uma chuva pesada que confina a cerimônia debaixo de guarda-chuvas e capas de plástico. Em seguida, Karim Loualiche volta para sua aldeia natal na Argélia, trazendo apenas uma bolsa de viagem e uma câmera na mão. A imagem do filme, porém, assume um ponto de vista externo, que a princípio não reproduz ou incorpora a filmagem de Loualiche, tomando-o como personagem de um filme cuja instância narrativa nunca ficará exatamente clara (é uma reencenação? Um diário de viagem? Um caderno de memórias? Um filme sobre seu próprio processo de realização?). Ao reencontrar a mãe – momento que transparece não só que aquele encontro é mais raro do que ela gostaria, mas também que ele hoje vive bem longe dali (e, principalmente, que essa distância não é somente um rompimento geográfico) – Loualiche diz que gostaria de ter chegado a tempo para o enterro, mas que o acontecimento havia sido demasiado súbito para que ele pudesse se organizar.

Essa breve sinopse remonta de imediato a O Vento nos Levará (1998), filme de Abbas Kiarostami em que uma equipe de filmagem viaja para um vilarejo no interior do Irã e passa dias e dias aguardando a morte prevista de uma anciã, para poder filmar os rituais locais de velório. Mas enquanto no filme de Kiarostami a morte é o destino certo que parece nunca chegar, fazendo com que o tempo de espera seja longo o suficiente para que choques de percepção cultural e social se efetivem, Chantier A já parte do fim, da morte consumada, e de um atraso em relação a ela. Se O Vento nos Levará ainda acredita em uma possível reconciliação – nem que seja do homem consigo mesmo -, o filme de Lucie Dèche, Karim Loualiche e Terek Sami pode apenas filmar os destroços de uma relação já morta e enterrada, que perdura no extracampo do filme sem realmente tomar o proscênio.

O que, porém, está no proscêncio? Como diversos outros filmes exibidos aqui no Olhar de Cinema, Chantier A aposta menos em uma dramaturgia narrativa do que em um processo de acúmulos. O filme passa de locação a locação, de registro a registro, sem estabelecer uma conexão direta entre eles, coletando evidências de relações que talvez pareçam ainda mais esburacadas para quem não domina minimamente os costumes ou a história locais, mas que, ao mesmo tempo, acentuan a desconexão de Karim Loualiche – personagem e diretor – de uma realidade que já foi o barro original de seu próprio ser. Importa menos entender de onde se vem e para onde se vai (ou, se isso importa, é algo que se perdeu significativamente em algum lugar sobre o oceano, e não é hora de sair à sua cata), e mais materializar a sensação de que, independente de futuro e origem, é preciso saber o que não se é mais.

Essa opção, naturalmente, tem perdas e ganhos. Entre os ganhos, está a capacidade intermitente de o filme representar sem precisar construir, buscando recortes de mundo que criem composições espontaneamente expressivas, capazes de manifestar o drama sem precisar sobredramatizar a realidade. Entre os pontos fortes do filme, estão sequências em que a simples contraposição da figura de Karim Loualiche contra uma paisagem tão exuberante quanto hostil materializa a desconexão que, por vezes, o filme sente a obrigação de literalizar – como quando ele reencontra amigos de faculdade, que dizem que fazer cinema não é exatamente um trabalho, e que Loualiche tinha se mudado para a França apenas para se divertir. Essa relação, ao mesmo tempo curiosa e hostil, parece integralmente expressa nas caminhadas de Loualiche pelas áridas montanhas de pedra que ele explora como um turista de sua própria infância – momentos em que o simples desenho físico do plano supre a ausência de referentes que o filme toma como princípio – mas também em algumas sequências que se aproximam mais de uma dramaturgia menos refratária, como aquela em que crianças se divertem abrindo o corpo de um lagarto morto. Por outro lado, a opção por fazer uma viagem sem mapas, ou mesmo sem estradas, não raro resulta em uma desertificação profunda do espaço de ação e de conexão do filme que, se não chega à pura aleatoriedade, termina atestando sua incapacidade de conferir traço e sentido a um mundo em pedra bruta.

O limite de Chantier A está em ser exposto como uma bela e bem acabada urna funerária que guarda os restos ainda vivos de um mundo voluntariamente abandonado, mas que o faz mais por costume ou justeza do gesto do que por uma conexão real que se efetiva na vivência cotidiana e se materializa na obra, no fruto do trabalho. O exílio, aqui, parece carregar mais o embaraço do afastamento programático do que o trauma do rompimento forçado, e seu esforço de desdramatização termina por esburacar ainda mais o que já é, e sempre será, necessariamente lacunar, em uma didática de inversão que se retrai diante da possibilidade do choque e da construção de um mundo que – nem velho, nem novo – se atualize como possibilidade de presente.

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