Certo Agora, Errado Antes (Ji-geum-eun-mat-go-geu-ddae-neun-teul-li-da), de Hong Sang-soo (Coréia do Sul, 2015)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Do Arquivo, Em Campo, Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira

* Publicado originalmente na cobertura do Festival do Rio 2015

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Moral e escolhas
por Pedro Henrique Ferreira

Lidar artisticamente com uma fábula moral é sempre pisar em terreno arenoso. Isto porque a afirmação política de certos valores implica necessariamente enviesar a realidade para que ela sirva aos propósitos da fábula. E a arte, sobretudo o cinema, não existe sem a realidade. A arte idealizada é uma forma de publicidade: vende o peixe, mas não sai da sala do cinema tornando o espectador um pouco melhor. Isso tornaria uma fábula moral aquilo que ela é não é, com a diferença de que, para que a lição moral seja demonstrada, a fábula faz-se imprescindível. Não se trata de exemplificar. O que há de ser dito não pode ser explicado com uma ou duas frases. Sem qualquer dos fragmentos da fábula, a moral não se constrói. Ou melhor, não há moral que anteceda a existência da fábula. O diretor mal sucedido em seu ofício incorrerá imediatamente no erro de criar bipolaridades preto-no-branco, figuras representativas de certas posturas, eventualmente ridicularizando um dos lados para premiar o outro. O diretor pode até fazê-lo sem perceber que arte e discurso não são sinônimos; são quase antônimos, e o jogo é uma via de mão dupla: Dreyer, por exemplo, tivera um filme de propaganda rejeitado por ter transformado ele em arte.

Uma das mais instigantes fábulas morais cinematográficas dos últimos tempos é Certo Agora, Errado Antes, de Hong Sang-soo. O diretor sul-coreano investe no trabalho com imagens que evitam dar ao espectador o juízo moral pronto, fornecendo-lhe material para que tire suas próprias conclusões, embora aponte com certa clareza de que lado está. Hong Sang-soo frequentemente trabalha relações de espelhamento nas suas narrativas, ou situações em que uma coisa ecoa na outra, embora aqui o mecanismo seja conduzido à rarefação, e a trama se organize basicamente como um duplo, decisivamente mostrando coisas que se repetem quase ipsis literis. Narrativas partidas são padrão relativamente comum no cinema contemporâneo, de Wong Kar-wai a Miguel Gomes, mas aqui o mecanismo é operado de forma tão explicitamente visando a um modo de comparação entre as duas partes que talvez só tenha correlativo recente possível num filme como Síndromes e um Século (2006). Ainda assim, a peculariedade minimalista de Sang-soo é maior. No filme de Apichatpong Weerasethakul, a comparação era entre dois momentos históricos – o que ficou e o que mudou, embora os marcos temporais nunca fiquem totalmente claros –, enquanto aqui estamos diante dos mesmos personagens, o mesmo casal, como acontecia talvez em Cópia Fiel (2010), de Abbas Kiarostami. Mas enquanto lá a via de comparação era a de um relacionamento novo com um mesmo relacionamento velho, o filme de Sang-soo é ainda mais decididamente centrado na repetição, diante da mesma situação filmada duas vezes, com os mesmos personagens, nos mesmos locais.

O que muda então de uma parte para a outra? A atitude de seu personagem diante de um dilema. Certo Agora, Errado Antes é um filme sobre uma escolha moral e seus efeitos diferentes em ambos os casos. O título é inequívoco: existem dois momentos, duas ocasiões iguais; em uma delas, foi feita a coisa certa e, na outra, a coisa errada. O cineasta chega à cidade um dia antes da exibição do filme, conhece uma menina e se apaixona. Deve decidir se contará a verdade ou mentirá para ela. No primeiro caso, ele omite o fato de ser casado, e eventualmente a menina o descobre através de algumas amigas, tietes do diretor. No segundo caso, conta a verdade e, se não chega a consumar seu desejo, ganha uma grande amiga. No primeiro caso, termina como o cínico querido pelas tietes. No outro, como o sincero, capaz de tirar a própria roupa na casa de desconhecidos só porque estava com calor, e que não dá importância às tietes, mas consegue estabelecer um laço com alguém que então assiste a seus filmes dedicadamente. A tiete assiste ao debate, a amiga assiste ao filme. São pequenas, mas significativas diferenças.

Há um impulso moralizante e, no entanto, o filme não faz o menor esforço de coagir o espectador a concordar com ele. A trama é inteiramente narrada por tableaux e planos de conjunto, num trabalho impressionante de atuação, com ritmo lento que dita o tempo como um grande bloco de cotidiano. Como em Eric Rohmer, o naturalismo reverberante que é atingido conspira ao essencialismo, ao platonismo, mas o faz sem precisar armar-se ou vestir-se de outra coisa que não é. Não se trata somente de sutileza. É questão de realismo, de encarar o mundo e o cotidiano com certa naturalidade, de enxergar o desenrolar dos acontecimentos com simplicidade, conceber que não necessariamente o correto precisa ser premiado e o incorreto punido, que não vale sacrificar a verdade das coisas para se fazer afirmativas categóricas, que a liberdade do espectador é a liberdade inclusive de tirar conclusões do que é mostrado. Que o melhor a se fazer talvez seja entregar tudo em estado bruto, sem necessariamente facilitar a vida do espectador para que o discurso direto, arbitrário e sedutor o atinja. Que o cinema não faz leis pétreas ou mandamentos. Em suma, que, paradoxalmente, a arte faz julgamentos morais mais efetivos pelo que ela apresenta, pelo espaço-tempo que ela recorta e povoa, e não pela defesa de valores, máximas ou bandeiras. Diante dos dilemas morais, Hong Sang-soo parece dizer que as dúvidas são mais vivas e políticas do que as certezas.

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