Cemitério do Esplendor (Rak ti Khon Kaen), de Apichatpong Weerasethakul (Tailândia/Reino Unido/Alemanha/França/Malásia/Coréia do Sul/México/EUA/Noruega, 2015)

setembro 1, 2016 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

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O palácio revelado
por Luiz Soares Júnior

“But the first differentiation of its reflection in the manifested Word is purely Spiritual, and the Beings generated in it are not endowed with a consciousness that has any relation to the one we conceive of”.

Helena Blavatsky, A Doutrina Secreta

“De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na minha presença (parousia) como muito mais agora na minha ausência, assim também esperai a minha salvação com temor e tremor”.

São Paulo, Carta aos Filipenses, 2:12

Cemitério do Esplendor se abre com um teatrinho de operações táticas do Exército, que parecem guardar um hospital que agora serve de maneira particularmente intensiva a ilustrar a noção de Jogo, pois é uma instituição onde se creditam vários modos de ocupar o tempo, treinar o espírito, curar o corpo. Mas afinal, o que guardam industriosamente os soldados no filme? O segredo, o mistério, o místico como o mítico que habitam os tesouros ontológicos de Apichatpong Weerasethakul, consistem naquelas coisas poucas e definitivas a que só o olhar humano tem um acesso completo na Natureza, pois é a clareira da Revelação – ou seja: do encantamento das coisas pelo sentido. São o espaço, o tempo, as brincadeiras da luz sobre as superfícies, os corpos humanos, naturais, infra e supra-visíveis – pois contemos igualmente, em um cinema tão generoso para com o ser, com os mortos e os deuses, que nos escrutam sempre pela “brecha” de fora de campo aberta pelas narrativas entabuladas pelos personagens destes filmes, sempre tão empenhados em contar e recontar histórias, do sempiterno e imemorial ao hic et nunc do detalhe natural, naturalista mesmo: mas seriam opostas estas dimensões? Me parece justamente que em seu cinema elas coabitam exemplarmente e acabam por desaguar em uma terceira, fenomenologicamente exuberante, onde o ocluso como o manifesto, o visível e o invisível “aparecem” sinergicamente no mesmo ente, e toda a arte de Apichatpong consiste em restituir uma percepção em aparência inocente (leia-se: transparente) com o auxílio meticulosamente paradoxal de mediações históricas que tem sua raiz no cinema moderno “plano sequência, locação e luz natural”: a inocência revelada.

Sua câmera cerimonial, a uma distância sempre “vista Lumière” das coisas e dos homens, sugere-nos uma suntuosa relação de culto para com tudo o que se manifesta; e vejamos bem: mesmo em redutos interiores, estreitos ou habitados por personagens ensimesmados, onde tudo deveria coincidir com o Centro e o Dentro da consciência humana, Apichatpong constrói estes planos imensos, assombrados pelo espaço ominoso do Mundo, onde uma consulta médica (devidamente entrincheirada à direita extrema do campo, como se a “dar passagem” para tudo o que vai entrar) deságua no contracampo de uma galinha com seus filhotes passeando pelo campo; e assim como na profundidade de campo do “plano-clareira” nos mostra o primeiro encontro da médium e de Jenjira, também somos assaltados pela diligência das pessoas em brinquedo ou contemplação no parque, ou pela inflexão horizontal que uma bicicleta expedita lá no fundo imprime ao plano.

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Os planos parecem percutidos por uma lógica musical de deriva, pois as dimensões a princípio irredutíveis acabam por contaminar-se mutuamente, até que não façam sentido senão como recíproco e alucinógeno beat: um homem que caga no meio da floresta, o altar de deuses carnavalizados, as enfermarias bruxuleantes e o decrescendo vertiginoso das escadarias de um shopping entram em necessária fusão – e certamente o fondu encahînée interminavelmente flutuante com que passamos do shopping para a enfermaria é a figura retórica indispensável para demonstrar como seu universo é impensável sem esta genética interatividade entre mundos. Como para o padre do campo de Bernanos, para Apichatpong tudo é sagrado, e no sentido de sacer, separado: único e definitivo, e assim propriamente anti-natural, pois o que conta para o sagrado não é mais a temporalidade cíclica da Natureza, votada à repetição, mas uma temporalidade de culto, onde o que se celebra é justamente o caráter incomparavelmente precioso do que se cultua; todos os fenômenos devem ser levados em consideração na economia do Uno, apreendidos e sopesados pela pregnância do olhar, dignos de nota e de canto (de canto e de conto).

Aliás, o que faz o seu cinema senão cantar e contar, celebrar e narrar aquilo que é? A celebração é affaire de temps: plano sequência judicioso, onde o que nos aparece precisa de um tempo para afinal impregnar o corpo do observador com as emanações do objeto, e assim possibilitar uma Unio mystica fenomenológica entre o que observa e o que é observado, até trocarmos de posição e mira e nos perdermos, envelopados pelo vibrato da fascinação. E o conto, a princípio de base rapsódica, mas de fatura solidamente ontológica, imantando os fenômenos e os não-fenômenos (os possíveis, imaginários, virtuais) com as ressonâncias de uma Verdade essencial, à altura da mão mas tantas vezes reticente ao olho, e que aqui advém à superfície com a diafaneidade de um sonho partilhado com a mãe – a Verdade, aliás, qual seria? a consangüinidade originária entre ser e Nada. Se o seu cinema é feito de interatividade entre dimensões, mundos e experiências a princípio irredutíveis é porque o Ser é oxigenado pelo Nada: assim, nada pode bloquear ou limitar a interação entre, por exemplo, o visível e o invisível, e os circuitos do imaginário podem presidir aos consórcios do humano com o décor ou com o Outro.

Se os micro como macros, ausentes como presentes, animais como humanos mundos “raccordam” em sua teia de tamisadas, graduadas interações do circuito do ser, é porque este é um perímetro aberto pela embocadura “de base” do Nada (aliás, a noção budista de nirvana não está nada distante de nós aqui). Falo especificamente desta sequência belamente ilusionista em que a jovem médium apresenta para Jenjira a sala do trono imaginária do palácio desaparecido. Aliás, não seria justamente este um cinema de médiuns, de intensivas relações entre seres e mundos para nós separados, vasos comunicantes enfim reconciliados, para além do espaço-tempo ordinário atomicista, em um espaço tempo energético, pós-newtoniano, onde a ousia metafísica não mais vige, e portanto acessamos estados e percepções pré -metafísicas substancialistas, em todo caso outras metafísicas? O Palácio aparece-nos enfim revelado pelo ente paradigmático, limiar e horizonte, onde estas interações e interregnos entre ser e Nada, como do Eu e tu buberiano e do theatrum mundi romano, advém: a palavra. O conto em Apichatpong (lembremo-nos aliás de seu relato capital para se pensar esta relação entre palavra, revelação e ser: o cadavre exquis Misterioso Objeto ao Meio-dia, de 2000) é o lugar onde o “canto” deságua, mas este telos modifica consideravelmente a Natureza do objeto, pois agora a Natureza, até então celebrada pelo gênio plástico do cineasta mas cega (em si), tem finalmente olhos para ver, à semelhança mimética do que acontece no humano, único ente onde o vento revoluteante sobre as árvores, o pio dos pássaros como o attacca súbito de um último quarteto de Beethoven não apenas são, mas são significativamente, para um Outro à espreita que se encarrega de impregnar o Nada que é o Ser com poderes invocativos, presentificantes, de associação, analogia e projeção – em suma: de para-si e de fantasma – inexistentes na matéria primeira.

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Quando o conto chega e se entroniza no filme, a Natura passa a ser plenamente significativa, e a colcha de retalhos das impressões, abastadas de ser mas afásicas até então, reverberam e ressoam sentido, Logos, presença finalmente presente para o detentor do dom: (…) “olhar que se abre na clareira do ser” (Heidegger, Holzweig). Ao realizar a passagem do em-si do ser para ao para-si do ser visto através da rapsódia recontada por personagens “filmados em um plano sequência Actualités”, Apichatpong corresponde igualmente aos poderes de presentificação do “lado Lumière” e – na medida em que o conto consiste em uma mise en scène pela palavra de eventos visíveis e invisíveis que se fecundam e esclarecem mutuamente – ao gênio infra-estrutural do cinema de Méliès, recriando a res segundo valores e princípios da fantasmagoria (aqui, de um povo, uma cultura). A palavra é iniciática, na medida em que complementa significativa e restrospectivamente os eventos cegos que a imagem experienciou em sua carne e tempo: a “revelação” do palácio para Jenjira claramente divide o filme em dois, e corresponde no domínio da significação do conto à epifania imagética do fondu entre o shopping e a enfermaria iluminada de neon: onde termina o ser e começa o sentido, onde estes se encontram e na morte se desvencilham absolutamente aparece apenas quando o processo de imantação e reverberação recíprocas, enfim acabado, é ativado no imaginário devaneante do espectador liberto do filme.

cemiterio4Os filmes de Apichatpong duram, e talvez só comecem a fascinar o espectador, muito tempo depois de terminados, pois o domínio atingido por suas rêveries místicas (porque centradas na analogia) radicalmente realistas envolvem o místico como o mítico, mas também os nichos mais rasos como sublimes da imanência – uma visita ao shopping, alguém que defeca, alguém que cura -, abrangendo a tudo e a todos de forma indiscriminada, já que, como nos lembra o Eclesiastes, não há nada de novo sob o sol, e todo o imemorial tesouro deve permanecer o Mesmo: espaço, tempo, corpos e a brincadeira da luz e da sombra sobre as superfícies.

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