Caverna dos Sonhos Esquecidos (Cave of Forgotten Dreams), de Werner Herzog (Canadá/EUA/França/Alemanha/Reino Unido, 2010)

março 11, 2013 em Em Cartaz, Fábio Andrade

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O fim é o princípio
por Fábio Andrade

Um preâmbulo em dois parágrafos: Em uma de suas entrevistas a François Truffaut, Alfred Hitchcock fala de Disque M para Matar com palpável desdém. O diretor parecia guardar como memória dominante do filme a imposição do estúdio de produzi-lo em 3D, que o teria confinado a determinadas abordagens de filmagem que lhe pareciam tolas. Quem teve ou tiver a chance de assistir a Disque M para Matar em 3D – ao menos no original, com os dois projetores 35mm rodando em sincronia, como pude ver – provavelmente concordará que Alfred Hitchcock estava parcialmente certo, e parcialmente errado. De fato, a imposição dos leves contra-plongées interceptados por objetos que ressaltassem a perspectiva que “salta da tela” com o 3D tem, ironicamente, maior efeito na versão plana do filme. Nela, os ângulos criam certa claustrofobia extremamente bem vinda àquele potente kammerspiel, passado quase que inteiramente em um único apartamento. No 3D, a expansão do espaço dilui o confinamento e nos abre outras rotas de fuga. Há, é claro, a força icônica da mão estendida para nós no clímax emocional do filme, mas em geral o uso do 3D como distensão da tela sobre o espectador resulta em uma irônica artificialidade. Lembro-me, ainda, da nítida sensação ao ver U2-3D – um dos test drives da nova investida da indústria no formato – de que todo aquele esforço de imersão em um show de rock não conseguia contornar a impressão de que estávamos não diante de uma banda, mas de avatares criados em computador. O mesmo poderia ser dito sobre Pina, com polaridade invertida. O 3D, curiosamente, nunca foi forte em impressão de realidade.

Mas volto à outra metade da concordância parcial com Hitchcock, pois a genialidade de Disque M para Matar – a rigor, já flagrante na versão plana – transborda em ao menos dois momentos do uso do 3D, que poderiam se tornar paradigmáticos se o filme não tivesse ficado por tanto tempo indisponível neste formato. O primeiro plano em questão é justamente logo antes da tentativa de estrangulamento, em que a câmera gira ao redor de uma Grace Kelly estática, abandonada no centro do quadro a uma ameaça que já nos foi mostrada. O segundo é o plano frontal de Kelly em seu julgamento por assassinato, no qual a atriz fita a câmera, contra um fundo neutro que muda levemente de cor com uma nada realista manipulação de luzes. São, ambos, momentos em que o filme foge de seu registro realista – duas licenças poéticas – como pequenas bolhas de suspensão em que a personagem flutua, impotente, sem qualquer controle sobre os rumos de sua vida. Em ambos, Hitchock usa o 3D para aumentar a sensação de irrealidade, descolando a personagem do fundo, e empurrando o cenário absolutamente chapado para os planos mais profundos da tela.

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Chegamos, por fim e por princípio, aos arredores da caverna de Chauvet, onde Werner Herzog começa seu Caverna dos Sonhos Esquecidos, carregando sob o capacete este preâmbulo e pouco mais de cem anos parcamente conhecidos de história do cinema. Logo no primeiro plano do filme, um pequeno resumo de intenções e um mapa dos pontos a serem conectados: a câmera flutua rente ao chão, por entre as acentuadas perspectivas de um vinhedo – os galhos retorcidos das parreiras são podados e organizados em linhas absolutamente controladas, produzindo pequenos caminhos pelos quais se pode transitar, e que a câmera aproveita para pronunciar no tédio da terceira dimensão sobre nós, com direito a pequenos torrões de terra que voam da tela feito pixels mal formados. O plano é longo, inesgotável em uma única frase, e a pontuação se torna ferramenta estratégica: a câmera levanta vôo e, de repente, filma o lago e a montanha que guardam a entrada da caverna. A profundidade, porém, imediatamente se inverte, abandonando a perspectiva que salta da tela. O 3D, afinal, já tem profundidade, o que torna a insistência na perspectiva um simples gesto de soberba. A caverna que se recolhe na ausência de ponto de fuga convida o espectador a adentrar as reentrâncias da imagem, a conhecer tudo que se esconde para dentro – e não para fora: é um detalhe essencial – da tela plana do cinema.

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A perspectiva – a manipulação das linhas da composição plana, de forma a reproduzir uma impressão de profundidade do mundo – é uma das mais incontornáveis criações do Renascimento, que se impõe no cinema (pela primeira vez ou não – há cavernas de nitrato e acetato fechadas ou abertas que nunca pude entrar e que inibem as afirmações categóricas) com a chegada de um trem em 1895 na estação Ciotat, pelo cinematográfo dos Lumière. Poucos cineastas ousaram se desvencilhar dela, ou mesmo trabalhá-la de maneira não-ontológica. Yasujiro Ozu, por exemplo, limitava seus pouquíssimos planos em perspectiva a serem ou comentários sobre a ação ou dado de construção dos personagens – a necessidade de perspectiva, afinal, é uma visão de mundo intimamente ligada à burguesia ocidental. A perspectiva, porém, é bela, harmônica, e o cinema é tão refém da beleza e da harmonia quanto nossos próprios olhos. O primeiro plano de Caverna dos Sonhos Esquecidos é de uma eloquência rara nesse sentido: há, ao mesmo tempo, o reconhecimento absoluto da necessidade de uma tábula rasa diante das primeiras pinturas conhecidas pela humanidade, recônditas nas profundezas daquela imagem que se topografa para dentro da tela, e a noção de que elas só fazem sentido, só existem, porque viemos do lado de cá, do império da Perspectiva, da História e da Cultura. Para olhar para esses bisões, rinocerontes e cavalos desbastados na parede do mundo, é preciso abandonar a História. Mas como não falhar nesta missão?

Em uma das conversas que Herzog tem com diversos arqueólogos (e outros especialistas cujas especialidades eu não saberia nomear) ao longo de Caverna dos Sonhos Esquecidos, chama a atenção a com um jovem francês – que o espectador facilmente reconhecerá como “aquele que trabalhava no circo” – sobre a possibilidade de reconstituir o passado a partir do que restou na caverna. A conclusão é simples, mas serve como bastião moral ao filme: não é possível reconstruir o passado; no máximo, é possível recolher os cacos do presente e imaginar, inventar um passado a partir disso. Esse mínimo desvio permite um salto de milênios: se o passado é algo a ser inventado a partir do que sobrou no presente, nada mais justo do que trabalhar justamente nessa lacuna, no encontro ruidoso de quem entorta o tempo como se dobra uma folha de papel. Nada mais justo do que ancorar esse olhar de um ponto muito específico – do lado de cá, do lado do vinhedo – e buscar a ferramenta ideal para se transmitir esse encontro com um outro para nós inatingível. Somos eternamente separados pela barreira da História.

Pois toda consideração a ser escrita sobre A Caverna dos Sonhos Esquecidos, este filme, é de raiz histórica. Serge Daney dizia que cabia ao cinema encontrar imagens que ainda não foram filmadas. Poucos cineastas hoje carregam essa meta de maneira tão física e literal quanto Werner Herzog, viajando aos quatro cantos do universo em busca de um grão que ainda não tenha sido visto pelo cinema. Ainda assim, o que é buscar o que ainda não foi filmado se não uma afirmação da própria História? Qual sentido essa frase teria para os homens que pintavam aquela caverna, por motivos tão diferentes dos nossos ao criar uma obra de arte? Qual o sentido em falar de uma obra de arte feita antes que esse conceito fosse sequer esboçado – ou, ao menos, perpetuado como fortuna histórica? O que pensaria o jacaré albino da necessidade de filmar o que ainda não foi filmado? “… somos todos devorados pela febre da história e deveremos ao menos disso nos dar conta”, escreveu Nietzsche.

A Caverna dos Sonhos Esquecidos, portanto, só é um filme extraordinário por assumir esse handicap: o filme parte de um lugar de absoluta inadequação ao objeto filmado. As reverências das portas fechadas a vácuo, dos praticáveis que criavam pequenas trilhas de metal por entre os estalactites de calcário… nada disso faz qualquer sentido como preâmbulo para uma obra criada a sabe-se lá quantas mãos, no intervalo de pelo menos 5000 anos entre seu início e sua “conclusão”. Nada disso ajuda a desvendar se o lobo e o menino de oito anos deixaram pegadas amigáveis, inimigas ou absolutamente dessincrônicas, em séculos diferentes reunidos na casualidade de um mesmo lugar. E o que A Caverna dos Sonhos Esquecidos parece afirmar, todo o tempo, é que nem o lobo nem o menino dão a mínima para o que nós faremos com esse legado que eles nos deixaram sem saber, de maneira casual e involuntária, pois eles não compartilham nosso respeito à História. Se tomado de maneira excessivamente literal, Caverna dos Sonhos Esquecidos é o decreto do fim da crítica de cinema. Rasguem os dois parágrafos iniciais e joguem Hitchock e Lumière na fogueira, pois nada disso será capaz de nos transportar de maneira tão intensa ao longo do tempo, para um momento em que tudo que diz respeito a uma operação como essa provavelmente ainda não tinha sequer sido inventado.

Mas o que há em comum para justificar esse encontro em uma base mínima de igualdade, de um diálogo não só possível, mas que se sente no eriçar constante dos pêlos dos braços ao longo da projeção? Em primeiro lugar, uma notável constatação: Herzog precisa voltar aos princípios mais recônditos da História da Cultura para justificar a existência do 3D. Pois o 3D – como a luz trêmula e as mudanças de exposição que simulam o colorido bruxuleante das fogueiras que permitia que as pinturas fossem feitas ou vistas (será? E se as pinturas fossem feitas nos lugares mais escuros da caverna justamente para nunca serem vistas?) – é não só um gesto político do cineasta, que se irmana ao trabalho de movimento e profundidade da superfície (“uma forma de proto-cinema”, diz o homem da História e da Cultura) e à posição histórica daqueles artistas ahistóricos, mas principalmente nos permite achar a partilha possível entre experiências tão distintas de mundo: o encanto com a brutalidade daquelas imagens, com a profundidade dos traços, a sensação de movimento provocado por cada protuberância de rocha milenar, o contraste, o brilho (será que o brilho da caverna coberta em pó de diamante já existia quando foram feitas as pinturas? Será que ele é só nosso?), as cores. Mesmo que não acessemos o significado histórico daquelas obras – logo, significados que inventamos pra elas, partindo do provável equívoco de que o homem primitivo (outra expressão histórica) também precisava de cultura – e que elas se curvem para dentro da tela, há esse aspecto bruto e irrefutável da matéria que só se revela nesse esforço de aproximação igualmente representado pelo 3D, pelas luzes bruxuleantes e pela câmera que sai do vinhedo e bate à porta da caverna. Cabe, no fim das contas, o que o olho apreende sem a necessidade de relativizar entre aspas.

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Mas se somos homens da História e da Cultura, é porque a História e a Cultura nos ajudam a entender e explicar o mundo – ou ao menos de criar a ilusão de entendimento e de explicação – de maneira mais eficaz do que é possível encontrar nessa brutalidade. Partindo dessa relativização, a crítica de cinema volta a ser possível e o contato com aquelas pinturas e com as mediações que nos levam até ela não só sublinham com maior clareza nossa condição (não é todo filme que me faz ter a irrefutável consciência de que sou fruto da História e da Cultura, por mais irônico que isso possa parecer), como permitem também uma possibilidade de transcedência: e se, por um momento, nos colocássemos no lugar desse outro, sabendo que não podemos ser ele? A História dá a volta e o passado comenta o presente: não é à toa que encontramos, em A Caverna dos Sonhos Esquecidos, uma das mais justas definições involuntárias já dadas ao cinema de Apichatpong Weerasethakul, quando um dos entrevistados fala de dois conceitos simbólicos fundamentais para o homem primitivo (e lembremos que Primitive é o título de um longo projeto do diretor tailandês): “fluidez” – a maneira como um homem poderia se tornar um bicho, como um árvore poderia se tornar um homem, e como todos os entes vivos podem migrar entre diferentes organizações da matéria viva – e a “permeabilidade” – o trânsito constante entre o mundo material e o espiritual. A compreensão do passado – ou seja, o respeito à História – se torna possibilidade de arte ao ganhar, justamente, esse aspecto prático, o mesmo que é inibido pelas redomas e cordas que protegem as obras em museus… se torna possibilidade de arte ao permitir a escrita de uma nova História.

Por mais que esteja interdito ao toque – como estão interditas ao toque as pinturas nas cavernas –, A Caverna dos Sonhos Esquecidos traz essa materialidade, esse conhecimento funcional, para dentro do filme de diversas maneiras – mas nenhuma com a clareza do pesquisador que se veste como um esquimó e toca “Star Spangled Banner” em uma flauta ancestral recriada a partir de um fragmento encontrado, recomposto pela imaginação do homem moderno (vejam só! É uma escala pentatônica!). Mas a cada lança arremesada em que somos convidados a imaginar o dilaceramento da pele de um cavalo, e a cada momento em que somos lembrados de que não podemos sentir o cheiro daquela caverna, a experiência sensível diante do mundo – do passado, do presente, da História, da Cultura – se reconfigura na afirmação de sua própria limitação. Ver é uma (ilumin)ação formada e definida pelo não-ver. A possibilidade de expressão no uso do 3D – a possibilidade da arte, por si – está em ancorá-lo na inabalável desconfiança de sua capacidade de dar conta e se parecer com o mundo como o enxergamos.

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