Cannes, um festival que rosna

março 1, 2015 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

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Jauja (2014), Lisandro Alonso

por Pablo Gonçalo

No judgement here… positive, negative,
good, bad… They’re just images and sounds,
very very innocent in and by themselves, as they
pass through… As they go and they go. Very very
innocent. Yes, people are bad, cinema is innocent,
innocent. People are not innocent. They are not”.

Jonas Mekas

1. À margem dos filmes

A côte d’azur, na franja do mediterrâneo que une e separa a França da Itália, abriga, todo mês de Maio, algo que ultrapassa o glamour do mais renomado festival do mundo; que vai além das diversas ansiedades que dissemina; expectativas midiáticas, comerciais e cinéfilas. Seriam muitos – e contraditórios – os epítetos e chavões necessários para singularizar Cannes. Local de ‘resistência’ do cinema de autor, espaço de livre comércio – com forte cara de feira – onde filmes de todos os continentes são avaliados, criticados, negociados e vendidos. Incontáveis filmes enviados, mais de quatro mil jornalistas credenciados, centenas de distribuidoras, produtoras, cineastas, atores, críticos e profissionais  afoitamente circulando para agenciar contatos mais valiosos.

No entanto, nos seus secretos bastidores, o que singulariza Cannes é o seu teor reflexivo. Como em nenhum outro evento é o próprio cinema – como instituição, tradição, comércio e linguagem – que é colocado em xeque. Ou, por outro ângulo, é o cinema, como rosto e acontecimento, que se mostra, que fica transparente e visível para todos que por ele são magicamente sugados e – entre projetos, gravações, projeções e debates – a ele dedicam suas vidas. Como evento, Cannes transforma-se num meta-festival, no qual, junto aos holofotes e ao tapete vermelho, são tensionados e debatidos os dilemas dos possíveis espaços – oficiais e ‘alternativos’ – de fruição, crítica e sensibilidade estética dessa arte intrinsecamente industrial.

Cannes 2014 foi marcado por alguns impasses interessantes. Se a curadoria do festival, hoje, é também influenciada pelas forças das distribuidoras mundiais, como bem frisou Godard no filme-carta que poetizava sua ausência, anuncia-se, nessa penumbra, o paulatino esgotamento tanto de uma forma de curadoria como de um modo predominante de distribuição. No seu percurso histórico, vislumbra-se que Cannes ganhou relevância, de um lado, no contexto da política de autores e, de outro, numa forma de trazer o panorama mundial – na esteira das cinematografias nacionais desvalorizadas – para o centro do debate da história do cinema. Cannes, assim, transformou-se, de forma minuciosamente conceitual e profissional, num festival que revela – e distribui – autores e ‘filmes de arte’ para o mundo. O esgotamento desse projeto torna-se claro por estar circunscrito a concepções de ‘autor’, de ‘mundo’, de ‘cinema’ e de distribuição que destoam, gradativamente, das forças motrizes do cenário contemporâneo. Aos poucos, os valores da produção cinematográfica pendem para uma dinâmica de produção mais diversa, permeada por um potente anonimato (ora de coletivos de resistência, ora de modelos ‘s/a’, como na Pixar); são agenciamentos mais distantes da sala de cinema – e mesmo do circuito de arte. Aos poucos, o próprio mundo torna-se policêntrico, e Cannes, assim, sequer possui força, ou capacidade, para espelhar ou revelar as principais inovações da arte que festeja, mesmo desse cinema que elege a sala e a projeção como o seu espaço sagrado. A produção cresceu e diversificou-se numa escala exponencial, cheia de nichos, estilhaços e explosivos, e a própria ideia de uma essência da linguagem cinematográfica é totalmente descabida frente ao atual contexto.

Se, antes, Cannes revelava talentos, inquietações e agendas estéticas desconcertantes, hoje, sua teia de valores parece mais centrada em apontar tendências do mercado mundial do cinema alternativo, em descobrir binômios de autores-públicos e valorizar a intermediação entre a distribuição e os cineastas. Há uma rica pulverização de telas e de formas de assinaturas que não cabe mais em festival algum – sobretudo no formato dos anos 1950 sobre o qual os mais importantes festivais foram arquitetados. Há uma disparidade, um hiato histórico – justamente hoje, quando os espaços oficiais de produção e circulação revelam-se tão empedernidos e indiferentes às multiplicações de trocas e circulações peer to peer, dos torrents, downloads e de uma cinefilia que podemos chamar como 2.0. A pergunta subsquente é mais óbvia: como resguarda-se o tom da crítica e da produção de diferença de discursos num local como Cannes – e em vários outros festivais internacionais – onde boa parte dos comentários midiáticos (e resenhas críticas) sobre os filmes parecem contaminados por uma dinâmica de release? Onde pulsaria um veio mais inquieto e turbulento entre curadoria, inovação da ‘linguagem cinematográfica’ e novos espaços críticos?

Minha proposta, neste debate e nessa primeira aventura por Cannes, é caminhar junto aos cães que perambularam em três filmes, sendo dois da competição oficial e um da Un Certain Regard. Sim, com os cães, que, nos filmes, não são restritos a personagens, símbolos ou metáforas, mas que revelam-se como amálgamas de sensações amorfas. Como os cães para rosnar, latir, morder e não aceitar o estranho pathos, indecifrável, desse Festival que, com uma conduta ímpar, vem tecendo uma história da delicadeza nas telas.

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Saint Laurent (2014), Bertrand Bonello

2. O pedigree e o ‘mal do autor’

Mais do que francês, Cannes é um festival fortemente europeu. Uma irônica coincidência situa o principado de Mônaco a poucos quilômetros da croisette, e a aristocracia monárquica de lá, em outros anos, frequentaria os mesmos jantares (mais glamourosos, obviamente) dos atores, diretores e produtores do mundo inteiro. Nessa dança entre emblemas, brasões, logos e bandeiras – tônica comum num contexto de União Européia – consegue-se ver como as marcas são degustadas, exibidas, ora embaladas ou vestidas por essa aristocracia globalizada, ora desvalorizadas ou mesmo redescobertas. Numa palavra, Cannes não é apenas a principal marca de um festival de cinema, mas intrinsecamente um festival que precisa de marcas; que necessita descobrir, criar, valorizar e disseminar logomarcas. E por marcas podemos compreender tanto os ‘autores’ e os artistas como, de forma mais discreta, as distribuidoras que buscam justamente destacar nomes, talentos e estilos.

Saint-Laurent, o último filme de Bertrand Bonello exibido na competitiva do festival, é exímio em narrar como uma das maiores marcas do mundo – as famosas três letras YSL – foi construída e consolidada. Curiosamente, o estilista francês é retratado como um indivíduo delicado, sofisticado, melancólico, com trejeitos proustianos, mas que também desce ao inferno pop e volátil do submundo, onde as tentações dos prazeres não possuem limites. Na penumbra do gênio artístico, Pierre Berger,o parceiro de vida inteira do estilista, é filmado como um empresário frio, calculista, um sujeito ganancioso que ergue os alicerces econômicos e transnacionais da marca YSL. Com o passar dos anos, a paixão dos dois esfria e eles são, sintomaticamente, religados pela obsessão da compra de quadros modernistas e pelo afeto com o cão Moujik, um bulldog brindle pied que torna-se a principal companhia do estilista. Numa das orgias de Saint-Laurent, Moujik acaba tomando pílulas com as drogas do seu dono e morre de overdose. Sem conseguir lidar com essa perda, Saint-Laurent insiste em encontrar novos Moujiks e perpertuá-los como faziam (e fazem) as famílias nobres dos regimes monárquicos, e assim, até o final da sua vida, o estilista chegou a ter o Moujik IV como companhia. De tão extravagante, o caso passa a revelar um sintoma.

Embora esta seja uma leitura externa ao filme, pode-se perceber aí, nesse enredo e em Saint-Laurent, um maneira cultural de valorização que parece ser uma tônica comum nas relações entre arte, artistas e as indústrias criativas da Europa. O bulldog brindle pied é uma raça rara, um pedigree bastante valorizado, que Saint-Laurent procura, a todo custo, perpetuar. O pedigree é tanto um mote de origem – no sentido sanguíneo e hereditário das famílias aristocráticas ou de côrte – como uma forma de reprodução, interna à perpetuação do status, da marca ou da raça; assim, ele interage com um afã externo de ver, perceber e lidar com esse sangue, por assim dizer, tido como mais nobre. Em alguma medida, as tônicas aristocráticas de Moujik revelam mais do que uma sofisticação ‘inata’ de Saint-Laurent, do que uma forma de valorizar essa sofisticação. Inigualável na arte de manejar marcas e discursos, a Europa, no lado reverso da tônica pós-colonial, desenvolveu ao longo dos anos uma forma de sofisticação que migrou da aristocracia para todas as etapas de produção e circulação do capital – um código cultural e um decoro de valorização que, num contraste, é totalmente diferente do norte-americano ou asiático. Nesse contexto, a Europa valoriza a arte – o estilo ou a marca de artistas – da mesma forma como classifica seus vinhos, por terrenos, com julgamentos de sommeliers (ou da mesma maneira como importa os mais valiosos jogadores de futebol do mundo inteiro para tornar mais precioso o espetáculo para seus cidadãos e, assim, revendê-lo a outros país).

Com filmes não é diferente. Cannes é um festival que precisa de pedigrees, de marcas, de assinaturas para se revestir de democrático e de julgamento equânime numa valorização essencialmente aristocrática. Embora arriscada, a afirmação é necessária. Os pedigrees talvez estejam intimamente relacionados à política de autor e às formas como toda a história e crítica cinematográfica foi construída; ou seja, a valorização do diretor (que distingue, por exemplo, Cannes do Oscar); a ênfase na mise en scène; um diálogo constante em revelar a Hollywood que a própria Hollywood desconhece, pretere ou ignora; e uma forma de valorizar os enredos dos filmes dentro de uma pauta política e de um filtro de interesses estritamente europeu (que pode ser facilmente percebido nos piores melodramas que circulam por lá). Chamemos esse balaio de “o mal do autor”, tal como Villas-Matas enfatiza a necessidade dos editores descobrirem e venderem autores. Tacitamente, essa tática do pedigree, esse mal do autor, atravessa produtores, curadores, cineastas, críticos e espectadores; como se na premiação de Cannes houvesse sempre a descoberta de uma nova marca, de um cineasta original, cuja linhagem, como as várias séries de um produto, devesse ser seguida de perto, com atenção.

É claro que essas observações são mais sobre as formas de acontecimento na cena cinematográfica mundial do que propriamente sobre cinema, estética e arte. E, aqui, sequer problematizo o tipo de cinema que por lá circula, apenas saliento que muitos outros cinemas, esteticamente com forças similares, não fariam sentido algum em Cannes, por não compartilharem desses crivos. Não estamos diante apenas de um festival para ‘cachorro grandes’, mas para filmes, diretores, autores, produtores (e países) que conheçam os códigos, as regras de etiqueta, o decoro um tanto secreto e enigmático dos trejeitos europeus, e que, assim, nessa interação, saibam como desfilar com seus filmes (ou cães, tanto faz), meigos, domesticados, e ainda tirar palmas e opiniões políticas da diversificada platéia que frequenta o Palais.

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Jauja, Lisandro Alonso

3. Ou vira-lata, ou intruso

Cannes, por outro ângulo, é um festival generoso e extremamente aberto a novos diretores. Nessa tônica, um dos exemplos mais notáveis seria o número expressivo de co-produções presentes tanto na competição oficial quando na Un Certain Regard, na Semana da Crítica e na Quinzena. De fato, são muitas as co-produções, embora, obviamente, a ampla maioria conte com participação de fortes distribuidoras do antigo continente e a parceria com televisões alemãs e francesas. Mais do que revelar essa relação de lobby entre distribuidoras e a curadoria de festivais (o que mereceria interessantes pesquisas mais detalhadas), as co-produções engendram uma possibilidade de discurso vinda de países periféricos e astutamente orquestrada pelos países centrais. Para além dos filmes, há uma intricada geopolítica – da distribuição, dos discursos nacionais e da valorização estético e temática – uma repartição do espaço e dos mapas em cada projeto que aciona, pela co-produção, um mosaico de lugares de fala e a possibilidade de ocupar espaços, simbólicos e econômicos, que nunca estão vazios, mas sempre em disputa.

Arguto como poucos, Jauja, de Lisandro Alonso, é um dos filmes mais conscientes dos paradoxos da co-produção. Há, nas suas sequências, um hiato – geográfico, político e temporal – expresso enfaticamente desde o seu início. O enredo acompanha uma dupla viagem ao desconhecido de um pai e uma filha, na Dinmarca do século XIX. De costas, eles olham para o horizonte e tudo o que está do outro lado é tanto um chamado ao perigo como revelador de forças humanas que não são, por assim dizer, civilizadas. Entre um quadro e o próximo, uma elipse, uma travessia dos mares, e chega-se à costa Argentina. Aqui (neste outro lado da costa) acontece algo selvagem, sem formas definidas, que se expressa com vigor nos rostos contorcidos dos desbravadores e caçadores de índios. A viagem dentro da viagem leva a uma fuga pelo deserto ou a um encontro com os acontecimentos obscuros guardados pelas terras incautas e habitadas por perigosos índios. Mais do que um anti-western, Lisandro Alonso filma tempos imemoriais, forças de desbravamento e de exploração que carregam consigo, no seio dessa hybris européia, um vetor e um bumerangue cuja ganância e fúria explosiva não deixam ninguém imune.

Não como um mero acaso, o filme é uma co-produção da Argentina com a Dinamarca e também possui a participação de fundos de outros países europeus. Como se sabe, uma das possíveis (e mais valorizadas) contrapartidas das co-produções é a bi-nacionalidade das equipes, das locações, das filmagens, do elenco, assim como das línguas faladas no filme. De forma provocativa, Lisandro Alonso não apenas se apropria de todos esses elementos em Jauja como os deixa explícitos, evidentes, e os problematiza ao longo do seu enredo. Entre a Europa e os desertos argentinos, há, curiosamente, apenas um cão magríssimo que coliga os dois instantes e os dois espaços do filme. Um vira-lata sem nome, sem importância, sem valor simbólico e narrativo que, contudo, torna-se o guia do capitão Gunnar Dineses (Viggo Mortensen) quando ele se perde e fica face a face com a morte, diante daquela amplidão inóspita. De forma enigmática o cão está ferido, doente, com filetes de um sangramento que se espalha entre sua couraça, seus pêlos e seus passos. Mesmo baqueado ele não solicita compaixão; anda, caminha, altivo, como quem guia um cego. Esse mesmo cão é visto séculos depois, numa elipse radical que merece a surpresa da descoberta.

É um cão sem raça, portanto, que expressa os próprios paradoxos das co-produções. De forma irônica e subversiva, Lisandro Alonso parece realçar menos os laços comungados pela co-produção do que os mútuos interesses, os jogos de exploração e de apropriação nos quais esses filmes costumam estar envolvidos. Mais, ele traduz os hiatos culturais e os deixa soltos, sem sentido, sem fechamentos, tais como são. Um cão ferido, portanto, que talvez carregue consigo uma doença perigosa, que se alastrará do continente invadido ao território invasor. É uma contaminação que não passará pela imagem da cópula nem compartilhará o instante do estupro. É como uma infecção que a possibilidade dos dois continentes (nos lapsos entre o ocupante e o ocupado, nos dizeres de Paulo Emílio) torna-se tanto manifesta quanto expressa uma possibilidade e um perigo. Um hiato no qual encontra-se uma incômoda poesia.

Na parte final do filme, o cão expressa a sua situação limítrofe. Desterritorializado, incerto, ele vagueia sem saber se é um convidado exótico e/ou um intruso que incomoda. É perigoso – e tentador – tirar qualquer aforismo político sobre esses gestos de Alonso, que são camufladamente políticos. Há algo de guerrilha, uma forma de subversão dos valores, como se agora o lado mudo – o lado outro do Atlântico – quisesse falar ou balbuciar algo. São palavras impronunciáveis, que sequer seriam faladas, mas, quem sabe, latidas. Como uma infecção, o cão de Jauja não emite som algum. Ele está lá para desprogramar e, dialeticamente, acaba vendo, produz imagem enquanto é visto e circula de forma timidamente domesticada. Mais do que uma figura – um conceito ou uma ideia – é uma imagem que se impõe.

Adieu Au Langage - 67th Cannes Film Festival

Adeus à Linguagem (2014), Jean-Luc Godard

4. Roxy

Mais enfatizado que nos outros dois filmes, o cachorro em Adieu au Language, filme de Jean-Luc Godard que esteve na competitiva de Cannes, transforma-se num enigmático protagonista. O cachorro chama-se Roxy e vive no cotidiano, entre um homem e uma mulher, e as câmeras 3D de Godard captam seu andar trivial, seus passeios sem um rumo fixo. É pelos olhos do seu cão que Godard tenta desvendar um pouco do status das imagens contemporâneas. Num contexto em que as cenas vistas pelas câmeras (e dado instantâneo das imagens) não geram diferenças nem permitem uma afecção ao passado, o ato de olhar passa a ser sempre atual, isomorfo, sem choques de percepção. O 3D que olha o cão é opaco como os seus próprios olhos. Esse zoomorfismo da imagem também revela como a corrente super-realidade visual e técnica ofusca uma sensibilidade inerente à projeção da imagem. Entre seus sussurros, e sua voz trêmula, Godard afirma que o cinema deixará de ser pictórico e, para tanto, pinta, em 3D, o seu último amigo e companheiro.

Roxy não é um nome sacado ao acaso, pois remete a um título néon de cinemas de rua que, antigamente, poderiam ser encontrados em qualquer cidade do mundo, numa metrópole ou mesmo num vilarejo mais remoto. Não é preciso ser um observador muito atento para constatar que esbarrar com esse modelo arquitetônico (esse Roxy, cão-cinema) é, hoje em dia, uma tarefa quase arqueológica. É nesse amplo intervalo temporal que o cachorro, o 3D e a o pessimismo de Godard se instalam. Trata-se do ocaso de um tipo de imagem, de um tipo de filme e de uma prática cinematográfica que foi o seio de formação do cineasta franco-suíço e da sua geração. Mais do que a morte de um tipo de cinema – chavão comum que ignora a força de metamorfose, amparada, talvez, em Sísifo e Fênix, do aparato audiovisual – Godard chama a atenção para como o modelo da mise en scène e da cinefilia perdeu o sentido, tende à rápida obsolescência e, num ritmo incontornável, torna-se arquivo, passado.

Mesmo diante dessa concepção um tanto apocalíptica, Godard parece, nos seus últimos filmes, não aceitá-la totalmente e por isso buscaria sempre brechas, formas de atuação que, por meio das últimas inovações tecnológicas, insiste em atualizar um ‘projeto de cinema’ que é seu e, em parte, da sua geração. Extremamente irônico, o trailer de Film Socialisme (2010), por exemplo, acelera o tempo de visualização e mostra o filme na sua íntegra nos dois minutos do teaser. De tão simples, a estratégia passa a ser provocadora, como se o filme inteiro – tal como é e precisa ser vendido – estivesse ali, como embalagem, mas vazio, impossível de ser percebido. O curioso é como, no lançamento de Film Socialisme ainda em Cannes 2010, Godard encorajava o acesso livre do filme pela internet e afirmava ser a favor dessa prática (que na Europa é para lá de ilegal), como se, transitando livremente por este espaço ainda hoje não ocupado pelas distribuidoras, emergisse um vetor de intensa troca cinéfila, e o próprio cineasta estimulasse essa força de resistência frente ao ocaso que, cheio de amargura, profetiza.

Em Kahn Kanine (2014), Godard filma e declara uma carta aberta que remete à sua ausência à última edição de Cannes. A logo do festival é acompanhada pelo letreiro “seleção natural”. O tom é de um exílio (no sentido mais figurado, é claro), de alguém que está em outra ‘pista’, que não faz parte mais do jogo da distribuição e que se sente mal, incomodado, em alguns ambientes… . Ele remete à maio de 1968, quando o cinema era um dos artífices de resistência política, impulsionado pelas idas e vindas entre a cinemateca e a rua. E, durante as suas férias – continua a voz trêmula da carta – Godard se refugiaria em sua casa, entre as ruínas do totalitarismo, talvez cercado por imagens mais íntimas.

A figura do cão não está presente apenas no título, Kahn Kanine, pois há o mesmo Roxy que surge em Adieu au Language; no filme-carta, mais uma vez, ele figura como um dos poucos momentos de imagens ‘belas’, pueris, menos sombrias ou nostálgicas. Entre suas cenas, ele afirma que procura os verdadeiros fauxs raccords que se anunciam, como se o cão, última obsessão de Godard, fosse um enigma que traduzisse tanto a fúria irracional do festival como seus instantes de sutileza e poesia. Na sua inocência canina, Roxy seria menos um cinema abandonado do que uma aposta, meio estranha, de encontrar essa tal verdade, como Godard sussurra, entre as falsidades festivas que cerceiam seus filmes, no exato momento em que eles deixam de ser apenas seus.

5. Curadorias como constelações: arquivos e histórias dentro da história

Há um momento dentro da cinefilia tradicional em que a febre por ver filmes específicos, sejam novos ou antigos, passava por frequentar cinematecas e festivais. Talvez mais do que em qualquer outra arte, a escassez e a dificuldade de acesso eram constantes inquietações que atingiam os cinéfilos. É claro que, em tempo de torrents e compartilhamentos pela internet, esse panorama mudou um pouco e tende a ser algo mais específico e paulatinamente mais difícil de ocorrer. No entanto, a história da história do cinema enfrenta, inevitavelmente, esse descompasso entre o tempo dos filmes e o tempo em que a realidade da distribuição cinematográfica permite o acesso de públicos.

É nesse contexto que o surgimento das cinematecas e o dos festivais de cinema assumiram, dos anos 1950 aos nossos dias, um papel fundamental de valorização e de dinamização das produções. De um lado, ocorreu uma aguda dinâmica entre curadoria e crítica (sempre pendulando entre os arquivos e os novos lançamentos) que soube criar espaços novos, ‘alternativos’, além do modelo de distribuição da Big Picture. Mais recentemente, e por outro lado, mostrou-se como se essas estratégias de distribuição, que na Europa possuem as TVs públicas como um dos seus principais alicerces, acabou gerando novos monopólios de discursos, de valorização, e é eivada por fortes tons geopolíticos.

Essa equação torna-se um tanto complexa após a chegada da internet. De tão inflamável, ela sequer conseguiu, até o momento, exibir uma face mercadológica mais coerente, e é nesse lapso de quase duas décadas de compartilhamento saudavelmente anárquico e sem regras claras que um outro tripé entre a curadoria, a distribuição e a crítica torna-se tão possível quanto necessário. No cerne dessa dinâmica, percebe-se como as últimas gerações inauguraram novos manejos para o arquivo audiovisual (como conceito e, mais importante, como prática), que, de forma curiosa e inusitada, inventam outros espaços temporais e uma nova agenda espacial.

O arquivo – algo amplo que vai além da dinâmica das montagens com found footages – recombina informações já prévias, já dadas e torna-as ontológica e infinitamente manejáveis. O manejo do arquivo está na base da máquina de Turing, que por sua vez, é o pilar do computador moderno e de todas as suas derivações. O arquivo, como monstro neutro e amoral, fagocitou todas as etapas do que chamávamos de cinema: a filmagem, a projeção, a distribuição e a memória audiovisual. É nessa dobradura, nessa curva da história, que o próprio tempo cinematográfico parece multiplicado e que, de uma forma muito peculiar, deixará, pouco a pouco, os lançamentos mais obsoletos e ultrapassados. Se tudo torna-se arquivo, é melhor esperar o arquivo chegar no seu computador do que ir ao cinema, ao festival ou à cinemateca.

Ainda é imponderável saber como essa dinâmica impactará as curadorias dos festivais, contudo, festivais no modelo de Cannes, pelo seu porte e pela sua pretensão, serão cada vez mais vistos como um balaio de gatos; como feiras de negócios afoitas por novas vendas. Dada a produção exponencial como um fato contemporâneo, as curadorias que quiserem realmente mapear as antenas sensíveis das ‘últimas’ inovações terão que trabalhar com outro tipo de imersão temporal. Assim, talvez, os lançamentos ganhem mais sentido se forem trabalhados em intervalos trienais (ou mesmo sem recortes temporais definidos), nos quais o tempo de redescoberta dos arquivos seja justaposto à ansiedade dos lançamentos. Como uma aposta, persistirão os festivais que descobrirem o tempo extemporâneo dos arquivos, já que hoje o contemporâneo tornou-se obsoleto, inflamado, ultrapassado e, pior, desnecessário.

O segundo impacto dessa intromissão do arquivo é um novo recorte geopolítico, no qual as vozes do e para o mundo possuem feições bem diferentes do recorte pós-colonial praticado por Cannes. De um lado, há um claro declínio da importância das nacionalidades mesmo, como produtores das cinematografias mais independentes, como se as novas combinações e trocas já ocorressem entre paisagens transnacionais, dinâmicas, sem fronteiras, e faladas em várias línguas. Se isso é tema em vários filmes exibidos em Cannes, aos poucos transforma-se em prática de cineastas de países periféricos que vão migrando suas estratégias de distribuição fora do eixo ‘eurocêntrico’. Os filmes feitos na Ásia (e aqui junto mercados bem distintos como a Coréia do Sul, o Japão e a China) é um desses vetores: um mundo paralelo que poucos festivais europeus (e dos países centrais) conseguem decifrar ou interagir. Por outro lado, as trocas de filmes pela internet tornam-se cada vez mais horizontais, diretas, quase site a site, numa velocidade tamanha que ignora os mapas e os recortes territorais. Será ingênuo, nesse contexto, afirmar que algum festival representa o cinema mundial, já que não há mais mundo que comporte tanto cinema.

De fato, importa pouco se Cannes conseguirá, a médio e longo prazo, responder a esses desafios. Mas como um meta-festival que serve de modelo – e vitrine – a milhares de outros festivais, é inquietante perceber como pode ocorrer uma perigosa apatia diante desse contexto, e como é um pouco parte do seu DNA de sobrevivência conseguir responder a tais desafios. Na Cahiers du Cinema de Junho de 2014, Gilbert Jacobs concedeu a sua última entrevista como diretor do Festival de Cannes, cargo que ocupou por trinta e oito anos. A entrevista é uma aula sobre os trabalhos de bastidores que permeiam a curadoria: visitas frequentes a cineastas, jantares, convites, apostas em novos diretores, e algumas poucas frustrações. Percebe-se ali uma forma de valoração e de curadoria aderente à tonalidade dos anos 1970, tanto de agenda cinéfila e crítica mundial quanto de interação com o mercado. Jacobs é agudamente consciente que esse tipo de prática é menos condizente com mundo atual e, com elegância, sai de cena para abrir espaços a novas práticas de curadoria. Nos próximos anos, e bem lentamente, Cannes trará as suas respostas a essas brechas a esses cenários. Como festival da excelência e exímio que é, continuará valendo a pena acompanhar as suas palmas. Ainda assim, como um vício da crítica que precisa colocar em crise até mesmo os festivais que mais admira, seguiremos os rastros, os rosnados e os enigmas compartilhados por aqueles cães.

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