Boyhood, de Richard Linklater (EUA, 2014)

março 1, 2015 em Em Cartaz, Fabian Cantieri

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A troca
por Fabian Cantieri

“A Word is dead
When it is Said,
Some say.

I say it Just
Begins to live
That Day”.

Emily Dickinson

Boyhood ficou conhecido – tanto internamente, durante o desenvolvimento de suas filmagens, como para o público que ansiava vê-lo – como “o projeto de 12 anos”, o filme que cometeu a proeza de perdurar mais de uma década, relatando as transformações de uma família, em especial o amadurecimento de um garoto texano chamada Mason (Ellar Coltrane). Richard Linklater, como bom cineasta americano, não se apropria do dispositivo para criar um jogo em volta disso; pelo contrário, usa as ferramentas griffithianas mais clássicas da transparência para dissipar qualquer referência à ideia do artifício. Os “12 anos” são como uma necessidade narrativa, o dispositivo como instrumento fundador de uma estória.

O elemento mais incisivo dessa fundação são suas elipses. Quando a mãe (Patrícia Arquette) diz para os filhos que vão se mudar, a filha chora, o filho pinta as marcações de altura na parede, eles entram no carro, ele olha pela janela do carro e mal vê seu amigo na bicicleta acenando adeus. Quando o carro estaciona na casa nova, corta para Mason se arrumando para a escola. Seria uma elipse corriqueira se, em vez de cortar alguns segundos, não cortasse um ano. Num dia que está passando mal, Mason acompanha a mãe na aula. Um flerte acontece entre ela e o professor e, da cara de estranhamento de Mason andando para trás, corta para ele alegre deitado num pula-pula. Poderia ser o dia seguinte, mas é mais um ano. E assim vai: da bola de chiclete estourada para o padrasto servindo bebida alcoólica, do bilhete consolador da menina na sala de aula ao passeio de bicicleta, temos sempre passagens de tempo que se confundem em distâncias, fragmentárias, como aprendemos a enxergar o cinema, criando uma coesão sintática que naturaliza o olhar. Deixamos de avistar buracos ou distinguir “fases da vida” para acompanharmos uma estória, uma só vida, que, por acaso, como tão freqüente, acontece num corpo de tempo alongado.

Por entre o escorrer desses momentos filmados, Linklater faz questão de filmar elementos que sabe que se tornarão datados no futuro – como a menina cantando Britney Spears, Mason jogando gameboy ou vendo um programa de televisão. Até pontua sua fase de Harry Potter-maníaco como uma daquelas etapas que sempre se recorre a buscar na memória para recontar um pouco como éramos. Dentro dessa estrutura, era preciso que o que marcasse cada momento fosse uma experiência em vida, e não rebuscamentos formais. Boyhood é um filme que dificilmente poderia ser filmado em digital, pois a escolha da película que fixa a plasticidade e a resolução do quadro é como o dedo de um demiurgo que se prova inalienável aos acontecimentos ao longo dos anos – o quadro como destino traçado, onde cada ação é um (im)previsível rabisco.

O Black Album – coletânea tripla que mistura a carreira solo dos quatro Beatles – que o pai dá para Mason é uma perfeita analogia de uma combustão desses rabiscos, de encontros em um coincidente espaço-tempo. Existe um grande consenso generalizado sobre uma magia, ou sintonia fina para os menos místicos, que se dá pela comunhão inspirada dos quatro juntos ali nos anos 1960 e que se esvai musicalmente ao fim da banda. Nesse sentido, a própria trajetória futura dos seus integrantes quebra o paradigma romântico da figura do gênio, pois ali a genialidade não era congênita, mas brotada de uma relação; não estava nas composições de Paul e Lennon, na maestria instrumental de George ou na alegria juvenil de Ringo. Estava entre os quatro. O pai tenta recriar isso, pondo suas músicas lado a lado pra ver se gera alguma combustão. Não deixa de ser outra forma de ver um filme tomando forma ou o próprio ofício de um encenador: junta-se elementos combinatórios improváveis como princípio de ignição de uma magia. Ou chame-se arte.

Existem poucos diretores como Hitchcock, que dizia se entediar nos sets e que, se pudesse, deixava qualquer um fazer a filmagem em si, porque o trabalho mesmo era feito antes, com os storyboards. Além dessa fala falsear muita literatura sobre o cineasta que comprova que muitas das idéias surgiam no calor do momento da filmagem, ela é o contra-senso mor de um chavão do cinema: o de que um roteiro deve ser destruído assim que se pisa em um set (Antonioni costumava dizer que um roteiro são “folhas mortas”, “páginas que pressupõem um filme e que sem ele elas não têm razão de existir”). Os filmes de Linklater são as provas mais translúcidas de um roteiro sendo queimado em cena e se transformando em vida. Na trilogia do Antes (1995/2004/2013), essa vida nasce de um espaço vazio que precisa ser preenchido por estórias; aqui, a vida desse rapaz chamado Ellar Coltrane precisa ser reconstruída em cena, transformar-se em Mason e ganhar sentido por conta própria. Não há teleologia ou arco enquanto há meio do caminho, pois não se sabe o que há de acontecer (Lorelei Linklater pediu ao pai para ser morta pois não queria mais atuar; Richard Linklater acordou que Ethan Hawke manteria o projeto caso ele morresse). Boyhood é uma estória, por princípio, sem definição, que se faz só caminho, que se joga ao aberto do devir, que conclui – sem nunca se fechar – na abertura de um novo olhar.

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Ao conhecer os novos futuros amigos da faculdade e topar sair com eles numa caminhada, Linklater corta para Mason não mais falando com seu companheiro de quarto, mas com a menina que desperta uma nova conexão. O que segue é a sua marca mais decodificada – um plano em steadicam de um bonding, com os dois conversando e andando, falando cruciais amenidades, se conhecendo e se aproximando de uma troca mais profunda até chegar ao cruzamento de olhares sentados numa pedra. Uma troca de olhar-insight – a percepção que a experiência nos molda; uma troca de olhar presente –, a ansiedade pela compreensão de que ali algo transcende; uma troca de olhar alegre – caem relacionamentos; novos se criam e o homem se vê capaz de lidar com o tempo.

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Existe uma certa fonte de sabedoria na juventude que se prova inesgotável enquanto dura. A chamada vida adulta é a marca desse esgotamento, de um transbordamento empírico que faz com que a novidade apreendida, por mais inédita, já não carregue o frescor vidamudante, como diria Joyce, autor tão caro a Linklater. A velhice é o dar-se de encontro com a inevitabilidade do tempo que carrega a morte e a intransigência de um passado.

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O sentimento de desespero que se dá com a mãe ao fim é inversamente análogo à sensação de Mason: enquanto ela se depara com a intangibilidade de se relacionar às coisas – seus maridos se foram, seus filhos partem para outra vida e sua casa é agora vazia – e queda sem nada, Mason embarca na leveza de uma liberdade ainda irreconhecível: sem pais, irmã ou namorada de balizas, sobra um mundo. O nada é o que resta a ela e o que sobra a ele. Dickinson versava que “o perigo aumenta a soma”. Mason se depara com o início do perigo e a mãe se vê sem ter o que somar. Mas do embate entre o olhar do futuro e passado, entre o saudosismo, o temor e a esperança, fica o entrosamento de um tempo que só pode ser alcançado ao passo da vivência contínua dos dias presentes sob a veia concreta da relação humana: na troca de experiências com o outro.

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