Boi Neon, de Gabriel Mascaro (Brasil, 2015)

setembro 1, 2016 em Cinema brasileiro, Colaborações especiais, Em Cartaz

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A imagem estéril
por Francis Vogner dos Reis

Mesmo sem ter visto Boi Neon, o leitor já deve saber que o filme articula situações e personagens que compõem uma “nova realidade”. O que seria essa nova realidade? Ou melhor: o que compõe essa nova realidade? A cada cena o filme de Gabriel Mascaro exemplifica com situações simples, calcadas nas transformações relativas às questões de gênero e de trabalho no sertão. Homens e mulheres aqui não obedecem aos tradicionais papéis sexuais/sociais. Galega (Maeve Jinkins) dirige um caminhão, o vaqueiro Iremar (Juliano Cazarré) costura e desenha roupa femininas, Júnior (Vinicius de Oliveira) é um vaqueiro vaidoso que faz chapinha nos cabelos e a garota Cacá (Alyne Santana), gosta de cavalos, o que não é algo necessariamente relacionado à orientação de gênero, mas aqui parece fora do protocolo em um universo de vaqueiros homens. O que torna Boi Neon mais atraente ainda é que esse novo estatuto de realidade se dá no Brasil profundo, território que outrora no cinema brasileiro foi lugar das culturas tradicionais onde se cruzavam o popular-regional com constrangimentos históricos (latifúndio, coronelismo e suas vicissitudes) e as opressões de gênero e classe. O filme concebe esse sertão novo sem traços de violência mais preponderantes: a pobreza não é miséria, o trabalho não tem a mácula (ao menos detectável) da exploração e há a possibilidade de um horizonte existencial para além do enraizamento histórico-social. É nesse encontro do “agora novo” com o devir que se faz Boi Neon.

A ideia de força e delicadeza perpassa Boi Neon e tem sua melhor imagem no cavalo que aparece em coreografia, ou na mulher vestida de cavalo, delineando a natureza ou a condição animal (bruta e sublime) dos corpos que alternam vigor e graciosidade – sintetizadas na figura equina. Ambos, mulher e cavalo, aparecem em planos escuros, iluminados por uma luz central ou lateral, como se estivessem em palco, tenda improvisada ou picadeiro, procedimento que dá visibilidade central aos corpos.

Até ai tudo bem, tudo justo, tudo bonito, tudo sexy. Todas essas qualidades descritas e relacionadas acima poderiam compor um bom release que certamente não mentiria no que diz respeito aos propósitos do filme. Mas se Boi Neon é semelhante a um comercial de calça jeans é porque visa nos vender algo. E tenta nos vender o que?

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O filme de Gabriel Mascaro é um catálogo de imagens com demasiada consciência e cálculo da sua força expressiva. Lá estão os traços estilísticos do cinema contemporâneo na mistura de hiper-realismo com minimalismo e no desejo poético do artifício – os manequins reconstruídos e customizados, a luz neon, a música pop e a dançarina cavalo. O sertão de Boi Neon é transfigurado também na presença da indústria (no caso, de roupas) que se assemelha a uma espécie de parque temático vazio, porque em construção. Novo mundo, novo em folha, sem ruínas, o que quer dizer que o presente aqui não se move no outrora.

De fato, transbordam elementos de analogia e aproximação com o cinema contemporâneo internacional. Sua carreira nos festivais é a conciliação entre elementos estilísticos comuns nesse circuito com uma imagem de cinema brasileiro cultivada no estrangeiro, um imaginário de festivais ou retrospectivas de cinema brasileiro que recorda sempre Cacá Diegues como “grande autor” brasileiro, que dirigiu Os Herdeiros (1970), Xica da Silva (1976) e Bye Bye Brazil (1979). Em Boi Neon, a memória de Bye Bye Brazil é evocada sem muito esforço, seja em suas aproximações óbvias, quanto em suas distinções – de matiz histórica – fundamentais. Ambos os filmes acompanham um espetáculo popular itinerante (mambembe, no caso da caravana Rolidei de Diegues; tradicional-profissionalizado, no caso da vaquejada de Mascaro); ambos se passam em um Brasil profundo absolutamente transformado por um economia desenvolvimentista (do governo militar em Diegues; dos anos Lula-Dilma, em Mascaro); em Bye Bye Brazil o personagem de Fabio Júnior migra para ganhar a vida, enquanto em Boi Neon o personagem deseja migrar de profissão, não necessariamente de território, mais por desejo do que por necessidade. Por um lado, o otimismo de Bye Bye Brazil existia em virtude da perspectiva de novos tempos a partir da abertura política, fazendo do subdesenvolvimento um emblema de pacotilha tropicalista. Boi Neon, por sua vez, é um filme positivo, um road movie sem percurso, que aparentemente já chegou em algum lugar: diferentemente de filmes da década passada em que os personagens evadiam em fuga (Cinema Aspirinas e Urubus; O Céu de Suely), em Boi Neon o lugar é esse, a condição do personagem está conciliada com seu espaço, pois as circunstâncias acenam com a possibilidade de transformar o sonho do protagonista (ser estilista) em realidade. Sublinhamos: o mundo de Iremar é mais do desejo do que da necessidade, sem oposição, sem dialética.

Boi Neon não é um filme oficial (de propaganda política), mas é sedutor e suavemente persuasivo em sua imagem de texto e pretexto (no sentido publicitário). Para tanto, a economia libidinal do filme funciona com exata conformidade às agendas contemporâneas: uma agenda de costumes aliada a uma agenda estética, configurando, assim, a imagem de uma “realidade nova” e excitante.

Se as agendas sociais positivas e afirmativas têm a vocação de apontar o contraditório e afirmar o diferente em uma sociedade fechada ao que não é o padrão tradicional e hegemônico, como uma história que lida (supostamente) com a desconstrução dos papéis de gênero se esmera simplesmente a descortinar um admirável mundo novo abrindo mão de construir os conflitos inerentes às suas questões? O filme lança questões que a priori são fortes, e nelas neutraliza o conflito. Por que a necessidade do conflito? Porque sem atrito e sem o choque de elementos heterogêneos tudo será mero e puro nivelamento. Armadilha ideológica.

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Fácil é legitimar Boi Neon pelo que ele tem de perfeitamente legitimável (seus temas, sua empatia visual, seu sucesso), como também é conveniente deslegitimá-lo, para um olhar mais carrancudo, por ele ser um filme que responde habilmente – conscientemente? – ao figurino do mercado de “cinema de autor” dos festivais internacionais, no lastro, é claro, de outros filmes – brasileiros ou não – que já ocuparam esse lugar com mais estardalhaço midiático.

No entanto, o que interessa aqui não é só entender como Boi Neon responde à parafernália carreirista dos festivais e ao emblema “cinema brasileiro no exterior”, mas como, de fato, ele funciona (ou não) internamente. Boi Neon é um problema estético mais complicado do que Ventos de Agosto (2014), pois agora Mascaro parece dominar – e capitalizar – melhor os “efeitos” da plasticidade de seu trabalho. Ele foi do exercício visual vaporoso de seu filme anterior para a fetichização do estilo.

A melancolia serena dos fins de tarde no curral de bovinos e a exasperação dos corpos na luz noturna dão a dimensão dessa atmosfera em que cada bloco do filme tem um trabalho de representação dos personagens e seus ofícios, nas falas peculiares e nos seus desejos declarados em uma “beleza” plástica que nos transmite suas mensagens sem ruído algum. Temos signos e categorias, e nada existe a despeito ou à parte disso.

Boi Neon harmoniza as energias dos corpos com o espaço. Vemos, então, uma série de energias que são represadas e se recusam, inclusive, à entropia, tão comum em filmes nos quais os corpos se atraem e se repelem. Muitas situações são apresentadas, têm graça particular em seu aspecto plástico, mas permanecem como energia parada, texto e pretexto absolutamente visíveis e esgotados. Cada sequência apresenta uma situação significativa, mas com poucas implicações. Anseios, sonhos e desejos são relatados, mas nada tem consequências de fato; são blocos de ação que não avançam ou não recuam. Até mesmo uma aparente ambiguidade de seus pontos de partida – o bruto e o delicado, a força e a suavidade – faz, dos conflitos, conflitos neutros, por mais contraditório que esse termo possa parecer. Um exemplo é a famosa cena da trepada numa fábrica. Geise (Samya de Lavour) é o hiperfeminino, grávida. Iremar é o hipermasculino, de pau duro. Mais “sutil” do que isso, impossível. A cena de sexo entre Geise e Iremar acentua essas categorias. A grávida e o pau. Um filme cisgênero, mais tradicional do que parece. A sexualidade é concebida de um ponto de vista estritamente idealista, instintivo e natural. Isso poderia ser belo, se não fosse de uma visualidade de persuasão publicitária. Iremar, Galega, Geise e Júnior, nesse sentido, são mais categorias do que personagens. Eles existem como pretexto.

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Poderíamos dizer que um cineasta como Maurice Pialat também se amparava em uma narrativa de blocos que afirmavam a força da parte antes do todo e recusava grandes construções dramáticas. Mas, Pialat em cada cena expunha um conflito poderoso de consequências tortuosas, concebendo a matéria dramática nos corpos, modulando as energias. Como em muitos filmes do cinema contemporâneo, não é isso que acontece em Boi Neon. As cenas mantêm uma temperatura média: morna. São um meio termo entre a simulação de transgressão e um questionável bom gosto: softcore.

Os paus duros, sejam os do cavalo ou de Iremar durante a cena de sexo, não são colocados ali para “chocar”, como já se disse, mas certamente existem para agregar valor a um filme que trata de sexualidade. A aproximação entre o homem e o animal – de força, virilidade e graciosidade –, falseia uma analogia, porque homem e animal em Boi Neon têm uma heterogeneidade bem visível: não ocupam os mesmos espaços; o homem usa a força do animal para o trabalho, seu sêmen para a especulação do mercado pecuarista e até mesmo sua imagem para o espetáculo inefável da sedução. Seus homens e mulheres não estão sequer a um passo da animalidade. A pista é falsa. No fundo, o importante nisso tudo é seu regime de visibilidade que não deixa dúvidas de suas intenções e estratégias. Tudo está às claras. Tudo é emblemático. Suas formas são ilustrações bem-acabadas de seus temas. O que importa é a força de uma imagem que se deseja potente, quando, na verdade, como força estética, é estéril.

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