Boi Neon, de Gabriel Mascaro (2015, Brasil)

outubro 15, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Fabian Cantieri

Boi-Neon

1 + 1 = infinito
por Fabian Cantieri

Boi Neon parece apresentar um estudo de gênero, uma provocação sobre a sexualidade, mas também um panorama de Brasil. O filme de Gabriel Mascaro, a princípio, sugere um questionamento: “E se a figura do vaqueiro tão tradicionalmente viril quisesse ser um estilista, profissão tão reconhecidamente feminina?”. Espertamente, ele não simplesmente inverte os fatores, como O Segredo de Brokeback Moutain­ cria um caubói gay, desvirtuando traços do típico machão (pois assim, seu protagonista simplesmente se re-enquadraria nas gavetas sexuais pré-estabelecidas: “um ser com um forte traço feminino quer ser estilista – portanto, gay”, como se fosse uma coesão lógica de sentido). Mascaro, com seu novo filme, quer abrir um canal de diálogo com um processo cultural deflagrado desde meados do século XX, que vem forçosamente implodindo ideias míticas sobre os arquétipos do que vem a ser o masculino e o feminino.

Estes símbolos “trocados” de gênero perpassam por todo o filme: não só o sonho profissional de Iremar (Juliano Cazarré), como a habilidade mecânica de Galega (Maeve Jinkings) ou a vaidade de Junior (Vinícius de Oliveira) com seu cabelo de chapinha  – todos com uma suposta característica que abrange o espectro do que “deveria” pertencer a uma categoria do sexo em questão. Mas, de novo, se não vemos inversões de papéis, este alargamento dos padrões homem-mulher, da tese à prática, recai sobre falsas sugestões: no fundo, Iremar não é um homem sensível, mas um homem bruto, tal qual quase todos ali, só que com um sentimento de não-pertencimento àquele lugar; Galega, por trás da superfície de caminhoneira-dançarina, às vezes deixa escapar seu lado conservador – não gosta que Cacá (Alyne Santana) se apegue tanto aos cavalos, diz que é por motivos econômicos, que nunca teria essa grana, mas na realidade quer que Cacá, ao invés de grudar-se com Iremar, fique perto dela, na cozinha. Cacá é o verdadeiro eixo desbravador: despreocupada, sem frescura e sonhadora – só pensa em passar mais tempo com os cavalos, vê revista de mulher pelada, sua roupa é muitas vezes um espelho das roupas de Iremar (como na cena dela conversando enquanto ele serra um manequim), inicialmente tem nojo de bosta, mas na hora da pressão por aliviar a dor do boi pega o cocô sem pestanejar, não tem vergonha de chorar quando cai de cara na bosta e machuca o braço, mas mesmo não conseguindo mexê-lo direito, segue em frente, sai de casa e “vai pra rua”.

Seu plano na cerca, com um cavalo de brinquedo de asas coloridas e luz rosa na cabeça, não é só um set piece do filme, como um plano que reflete a orquestração fílmica: não é um plano vazio, de respiro, como Ozu costumava criar (nestes, é preciso a ausência de qualquer personagem para dar o tom de “nada”, sem que implique em certa inutilidade de roteiro – é questão de ritmo, pois), mas também não há propriamente uma narrativa, há no máximo sinais – bois e neon –, todos lá misturados, indissociáveis, a partir deste novo tempo político brasileiro. Boi Neon é um filme de sinais – nem metáforas ou simbolismos per se, mas de indícios de um rumo de Brasil.

O universo da agropecuária (falemos do termo concreto ao invés do nome fantasia “vaquejada”) é um universo de desigualdade tão acentuado, senão mais, do que muitos centros urbanos. Nele, os grandes fazendeiros, que hoje são vistos como grandes empresários, lidam diretamente com os peões, muitas vezes sem uma classe média mediadora. O que vemos no filme é que essa classe dos peões é uma classe ascendente, classe que enfim se dá ao direito de gastar seu dinheiro com supérfluos: Junior com a chapinha, Galega com pacotes de calcinhas, Iremar e seus perfumes. Muito dinheiro nesse meio corre solto, como se percebe nos leilões dos cavalos, e algum trocado acaba chegando enfim nas mãos desses trabalhadores. Sobra o pouco para o consumo de desejos, não o suficiente para uma mudança de vida como sonha Iremar. Ao conhecer Geise (Samya de Lavor), parece conseguir tocar a realidade de seu sonho e até realiza um fetiche ao transar com ela em cima da mesa de costura, mas volta logo à labuta diária dos bois. A economia ascendente dos últimos governos do PT que reconfiguraram o Nordeste dá a sensação de empoderamento, mas é feita para adquirirmos perfumes, fragrância de um novo ar, nunca um novo ar de fato, este é ainda inalcançável.

Neste sentido, Iremar não é figura tão grande de inovação, mas um velho personagem, mais um que sonha com o êxodo; adaptou-se aos costumes por uma questão de necessidade, mas não quer mais pertencer aquele mundo. É um deslocado, “estrangeiro natural”. Nasceu boi e quer ser neon. Por enquanto é os dois, mas, ao contrário da personagem de Regina Casé em Que Horas Ela Volta?, que foge de sua realidade de empregada doméstica para reintegrar-se à velha família tradicional “vó, filha e neta” (um sonho conservador, portanto), Iremar fica no imaginário, no campo etéreo do “quem-sabe-um-dia”, o sexo com Geise é apenas crossover de um sonho.

A cena de sexo, aliás, que também encerra sua outra proposição – a de um mundo se desbinarizando – marca antecipadamente uma conclusão que nunca teve real desenvolvimento. Um dos primeiros planos do filme acomete à ludibriosa impressão de sua homossexualidade: ao tirar as medidas de Galega, Iremar ignora despreocupadamente a bunda em sua cara. Depois disso, veremos reiterações, como o plano do desenho à Bic na Playboy e falsas oposições, como ele limpando o caminhão cheio de bosta com as mãos. Dessa dualidade de traços que não quer se ver como dualidade de gêneros, chegamos enfim à cena do sexo, com o desenlace de um arremedo tricky: “Ele gosta é de mulheres”. O problema de Boi Neon não é o de abdicar-se de uma narrativa aristotélica, sem que se entregue radicalmente à experiência de um estar-aí da natureza do campo repaginada, mas, ao fim, fugir de ambos os caminhos sem que nem ao menos se tenha dialogado com esse mundo de fato. Quem se resume a macho e fêmea são bois e vacas. Sobre a gente, há todo um meio do percurso, travessia. Desse rico prefácio, a afasia de uma importante cavalgada sem rumo.

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