Bloody Beans (Loubia Hamra), de Narimane Mari (Argélia/França, 2013)

junho 4, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

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Prisioneiros
por Filipe Furtado

Bloody Beans é um filme de proposta muito clara: a diretora Narimane Mari reúne um grupo de dezessete crianças argelinas e as coloca para construir um exercício de auto-ficção alegórica sobre a independência da Argélia. A crença do filme é de que, ao reimaginar a luta pela independência argelina pelo ponto de vista infantil, seria possível localizar nela um frescor ausente das fabulações habituais sobre o momento. Logo, trata-se de um filme sobre a representação de uma luta que, ao mesmo tempo, opta por representá-la por uma chave que exalta um ideal de resistência e, ao encerrá-la no corpo e nas ações de um grupo de crianças, aliviar seu peso com as associações de doçura e inocência que o olhar infantil traz consigo. O protesto, portanto, vem acompanhado de um tom agridoce que termina por diluí-lo – e, nesse sentido, há certa similaridade com alguns filmes brasileiros recentes, sobretudo após os garotos sequestrarem um soldado francês, que é posteriormente cooptado pelo grupo.

No desenrolar do filme, não há espaço para muitas variações de registro. Desde o primeiro momento, às crianças cabe o papel de avatares de uma proposta alegórica determinada a priori, algo que por vezes gera uma tensão curiosa com a pretensa liberdade de encenação que ele deseja localizar no seu dispositivo. Esta encenação fechada, porém, resulta num filme reiterativo que com poucos minutos estabelece suas ideias centrais, e, a partir daí, mais as preenche do que as desenvolve. Bloody Beans se fecha sobre si mesmo, incapaz de fazer o movimento que torne seus conceitos concretos. É notável que, num filme dominado pela ideia de ocupação/opressão, estes sentimentos jamais cheguem à tela com força. No filme, as coisas existem frequentemente como um dado resolvido antes de a câmera começar a rodar. Acredita-se demais que a presença das crianças por si só permitirá que as operações do filme registrem com pregnância, e, nos seus piores momentos, o filme pouco faz além de tentar vampirizar a presença de cena delas.

Os ocasionais momentos de força de Bloody Beans surgem quando esta busca por uma representação de resistência dá frutos, especialmente numa longa sequência na qual o corpo das crianças envolto em sombras é coreografado para a câmera de maneira que este encerrar da alegoria de luta anti-colonização na figura infantil finalmente encontre uma justificativa. O movimento que o filme desenha da luz natural até as sombras é um dos seus maiores achados, encontrando algumas sequências fortes na escuridão.

Bloody Beans é mais feliz justamente nos momentos em que permite ao imaginário das crianças primazia nas formas de encontrar tal representação de resistência. Em suas sequências mais fortes, os corpos dos garotos escapam do simples dado simbólico e alcançam uma representação fantasmagórica do ressurgimento do reprimido colonial, em um momento em que a Europa precisa lidar cada vez mais com sua herança colonial. Nestas fugas, escapa-se da diluição rouchiana, e o procedimento buscado pelo filme tem a fluência e o impacto de representação politica que ele deseja.

Aos poucos, porém, qualquer potência que o projeto tenha alcançado vai se diluindo. Num filme sobre a representação, é fatal que ele fracasse exatamente em conseguir dar forma para seu desejo de resistência, à parte algumas sequências isoladas. Bloody Beans foi realizado na ocasião dos cinquenta anos da independência argelina e é visível que suas imagens jamais são capazes de dar conta do peso simbólico do projeto de Narimane Mari. Pode-se pensar, por exemplo, na situação logo no começo do filme em que as crianças salvam uma mulher estrangeira, e todos os elementos de cena são tão sobrecarregados de significado que a ação termina engessada e sem vida, como se estivesse lá exclusivamente para avançar a bula do filme.

Na sequência final, as crianças recitam o poema de Antonin Artaud sobre ser ou desobedecer (poema que o filme retoma novamente numa cartela no fim dos créditos, e não deixa de ser significativo que nela ele esteja em três línguas), mas o que falta a Bloody Beans é ser ele próprio capaz de desobedecer às próprias amarras do seu projeto. O filme termina prisioneiro de uma impressão do lirismo como forma de resistência, incapaz de reconhecer que desejar resistir pela poesia é bem diferente de alcançá-lo. Entre a arte e a política, há muitas formas diferentes de opressão, e Narimane Mari encena menos a fuga de uma delas do que a submissão a outra forma de opressão: os meninos de Bloody Beans escapam do político, mas terminam prisioneiros de um projeto simbólico.

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