Beira-Mar, de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon (Brasil, 2015)

janeiro 25, 2016 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Marcelo Miranda

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As aparências não enganam
por Marcelo Miranda

Beira-Mar, filme de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, se desenvolve como uma narrativa de falsas aparências. Na superfície, tudo é semelhante àquilo que se pode enxergar: uma praia é uma praia, um rapaz é um rapaz, um grupo de amigos é um grupo de amigos, uma família desconjuntada é uma família desconjuntada. Beira-Mar será todo dedicado a descontruir essas aparências iniciais, somando novas camadas ao visível e ambicionando, com isso, atingir outro status, outra percepção que ultrapasse as superfícies pelas quais as ações se apresentam.

Como objeto artístico em si – a materialidade da forma, o fim mesmo da proposição da narrativa que se apresenta –, o filme é também ele modulado por aparências: inicia-se como um drama familiar, torna-se um drama de juventude e se conclui com um momento de libertação sexual. Diferente da camada apenas de narração, que se faz clara e objetiva na vinculação a um cinema de desenvolvimento de personagens e exposição de sentimentos, a camada de construção não se descola da insistência em reiterar sentidos e imagens a serem transmitidos de maneiras pretensamente eficazes e funcionais.

Em seus estudos sobre imagem, Deleuze aponta a chamada “narração orgânica” como sendo aquela na qual “os personagens reagem a situações, ou então agem de modo a desvendar a situação. É uma narração verídica, no sentido em que aspira ao verdadeiro, até mesmo na ficção”. Neste regime, tem-se a independência do objeto mostrado em relação ao meio no qual ele aparece, ou seja, esse objeto vale “por uma realidade supostamente preexistente”, desvinculado de outros significados. Aquilo que aparece não se relaciona com seu entorno, sendo invariavelmente o mesmo elemento qualquer que seja o espaço que ele ocupa. Seu sentido é fechado apenas em si. Essa narração orgânica se faz predominante em Beira-Mar já desde o início. Após um prólogo de apresentação, os dois protagonistas se deslocam de carro ao som de Daniel Johnston a cantar “My life is starting over again” (adiantando o desenlance de um dos garotos). Ao chegarem no destino, os amigos ocupam uma casa de praia. Um deles abre a janela. No fora de campo, ouve-se o barulho de ondas do mar. Um corte seco joga o título do filme (Beira-Mar) em tela preta. É a mesma reiteração supostamente poética que se vê, por exemplo, na câmera em panorâmica vertical para cima até enquadrar o céu, para então aparecer o título O Céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006).

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Vários elementos em Beira-mar têm estes tipos de funções específicas que não lhes permitem ser outras coisas senão aquelas pelas quais foram “contratadas” – desde a fotografia esmaecida que tenta retratar a confusão interna de Martin (Mateus Almada) até o cabelo pintado de azul de Tomaz (Maurício José Barcellos), a emular o mar que será justamente o signo de transição para o recomeço de Martin (o seu “starting over again”). O descolamento da reiteração nunca acontece, por mais que a narração tente construir pontos de travessia entre as várias frentes tratadas pelo filme – em especial nos encontros de turma, quando a ação parece se interromper para deixar que aqueles jovens vivam alguns instantes apenas deles. Mas, de novo, são só aparências: o mecanismo do filme está em pleno andamento também aqui. A interação lúdica entre os amigos em festa, ao som repetitivo dos versos de No Porn (“Eu sei quem eu sou, eu sei onde estou”), nada tem de fortuita. Entre olhares, danças e risos, uma ação levará sempre a uma reação que se encaixará direitinho nos desdobramentos do filme.

A atmosfera geral remete aos vazios afetivos e visuais de Michelangelo Antonioni ou Sofia Coppola, mas Beira-Mar permanece na superfície sobre a qual tanto quer avançar: seu tempo obedece a seus movimentos, e vice-versa, sem um se desligar do outro para deixar o fluxo andar com as próprias pernas. O filme se trava e inibe a libertação que a camada narrativa tanto trabalha para dar aos personagens: não existe “crise da ação” nem alguma desorganização que desafie “tensões e resolução de tensão, conforme objetivos, obstáculos, meios e até mesmo desvios” (Deleuze). Apesar dos poucos diálogos, dos sentimentos represados, da falta de informações e de detalhes de determinados acontecimentos, Beira-Mar é um filme de estrutura fechada, de engrenagem bem apertada, sem um alívio que lhe permita romper com suas limitações.

O arco dramático pulsa como a maior das preocupações, sem se permitir arestas, ainda que o filme venha embalado como uma jornada aberta a possibilidades. Talvez para Martin e Tomaz, na camada narrativa, tudo esteja mesmo ainda por acontecer; para Beira-Mar, o filme, tudo está integralmente resolvido desde o primeiro plano. A mise en scène se ressente disso, pois as cenas são construídas para atingir objetivos programáticos – fica então evidente que, se o objetivo já está dado, que se passe para o próximo, e assim sucessivamente. Beira-Mar é como a ilustração de um filme que ele não é, algo como o desenho ruim de um sonho maravilhoso, porém impossível de ser transfigurado para fora da cabeça e da lembrança difusa do sono.

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