Através da Sombra, de Walter Lima Jr (Brasil, 2015)

janeiro 25, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Marcelo Miranda

* Cobertura da 19a Mostra de Tiradentes

atravesdasombra01

A falta do gesto
por Marcelo Miranda

Na aproximação com a novela de Henry James A Outra Volta do Parafuso (The Turn of the Screw, 1898), o filme de Walter Lima Jr se aproxima, antes ainda, de um título essencial na cinematografia de suspense: o clássico Os Inocentes (The innocents, Jack Clayton, 1961), sempre citado como exemplo de construção de atmosferas e no jogo de luzes e sombras da fotografia em preto e branco referencial. Não que a versão brasileira da mesma história deva qualquer tipo de satisfação à produção britânica, mas o fantasma permanece lá quanto mais Através da Sombra se atrapalha ao tentar emular algum tipo de clima ou ambientação que vá além do padrão de um “cinema de qualidade” cujo maior feito é deixar às claras a riqueza técnica da produção requintada. A grande questão é: para quê?

Pois se o filme de Walter Lima Jr busca no excepcional material literário de James a sua inspiração, pouco disso sobra na transposição propriamente dita, fora a história-base adaptada para a realidade brasileira dos anos 1930. O substrato político-econômico, com referências e imagens da queima do café ordenada pelo governo Vargas, serve de cortina de fumaça para as assombrações de Julia (Virginia Cavendish), como se seu crescente enlouquecimento fosse reflexo direto, no corpo e na alma, das necessidades de mudanças exigidas ao país dali adiante. Julia, porém, é tratada pelo filme simplesmente como a personagem atormentada de um drama sobrenatural que se vale dos clichês mais comuns do gênero e que sabota as próprias intenções. Se Paulo Emilio de certa forma apontara a “incapacidade criativa de copiar” do cinema brasileiro comercial, em Através da Sombra, com derivações de códigos de narrativa e suspensão diretamente herdados de toda a tradição do gótico e do terror em casarões ocupados por espíritos e entidades, o “criativo” não aparece, sobrando apenas a “incapacidade de copiar”. A comparação entre os filmes brasileiro e britânico, assim, surge como um espectro – este, verdadeiramente assombroso.

atravesdasombra02

O suspense de Através da Sombra parece permanecer nas intenções, nunca na materialidade. As cenas se sucedem no esforço de apresentar o enredo fixado de antemão e que precisa frisar o que narra. Não basta a Julia entrar em polvorosa com as possíveis aparições de gente morta no casarão: é preciso que ela se desespere, se atire no cenário, grite e berre que está vendo fantasmas, e repita o quanto for necessário, para que ao filme não sobrem maiores dúvidas. Nesse sentido, a decupagem é um dos maiores entraves à fruição, pois o que Julia vê nunca parece estar no mesmo espaço que ela ocupa. Falta um tanto da “montagem proibida” defendida por André Bazin – “quando o essencial de um evento depende de uma presença simultânea de dois ou vários fatores da ação” –, para que “o imaginário tenha na tela a densidade espacial do real”. Deixando de lado as exigências “realistas” das ideias originais de Bazin, o que nos interessa nelas, aqui, é perceber o quanto Através da Sombra se ressente da ausência de uma montagem que valorize suas próprias cenas, que permita aos conflitos entre a protagonista e seus temores realmente acontecerem (um bom exemplo contrário a isso é a cena de Julia enxergando o fantasma pelo reflexo do espelho, ambos no mesmo plano, em contraponto ao vazio que de fato ocupa o espaço para onde ela olha). Mais do que televisiva, a montagem é simplificadora, priorizando planos de reação (que acabam por exigir dos atores algo que nem sempre eles têm a oferecer), e não planos de ação (o que talvez libertasse o filme rumo a algo menos apressado do que fazer a personagem gritar e sair correndo).

É um fracasso um tanto triste, de fato, pois o cinema de Walter Lima Jr já soube, como poucos, trafegar pela seara do clássico em contato com o moderno (Menino de Engenho ainda um grande exemplo) ou de mergulhar sem pudores na perturbação da forma, do fragmento e dos sentidos de afecção e de política (A Lira do Delírio, um dos maiores filmes brasileiros, mas também A Ostra e o Vento, último belo filme do cineasta até aqui). Os Desafinados (2008) já apresentava um cinema de desequilíbrio, em que tudo parecia ter vontade de acontecer e não acontecia; Através da Sombra tem mais centralidade e rigor, mas permanece como um produto envelhecido, travado nas próprias ambições, como se apenas estar ali, na existência enquanto produto fílmico, bastasse como gesto. Mas falta um que o retire da inércia, e essa ausência carrega um misto de frustração (por lidarmos com um cineasta de importância) e de resignação (por, afinal, tratar-se de um filme que nos parece incapaz de gerar maiores reações).

Share Button